Autor: David W. Tschanz

O profissional que se especializou na coleta de todos os medicamentos, escolhendo o melhor de cada simples ou composto, e na preparação de bons remédios a partir deles, seguindo os métodos e técnicas mais precisos, conforme recomendado por especialistas nas artes da cura.

– Abu al-Rayan al-Biruni, c. 1045 CE.

A definição de farmacêutico de Al-Biruni poderia ter sido escrita hoje. Ao longo do caminho das simpatias e do xamanismo ao método científico, muito do pioneirismo foi levado a cabo ao longo de alguns séculos por estudiosos, alquimistas, médicos e polímatas do Oriente Médio muçulmano, e suas regras, procedimentos e experimentos são, em grande medida, praticados quase universalmente hoje.

Rodeado por figuras que indicam sua tutela de médicos mestres (a figura à direita pode representar o médico grego do primeiro século, Dioscórides), um saydalani – como um dos primeiros farmacêuticos era chamado em árabe – é retratado trabalhando em seu dispensário, no qual estão pendurados uma variedade de vasos para produção alquímica. A ilustração vem do Iraque do século XII.

No Ocidente e no Oriente Médio, a medicina antigamente como um todo era principalmente uma mistura das práticas gregas, indianas, persas e romanas posteriores que progrediram durante a maior parte do milênio. Textos sobre medicamentos eram comuns, mas a maioria dessas materia medica eram simplesmente listas de plantas e minerais e seus vários efeitos. No início do século VII d.C., a Europa e grande parte do Oriente Próximo haviam se enfraquecido culturalmente, e as conquistas das artes, ciências e humanidades helenísticas que não haviam sido apagadas estavam em uma lista de “espécies intelectuais” ameaçadas de extinção.

Em meados desse mesmo século, a ascensão do Islã trouxe consigo uma nova sede de conhecimento. Essa abertura para a pesquisa começou a salvar e, eventualmente, a expandir muito do que o mundo clássico havia perdido. Em nenhuma área isso foi mais verdadeiro do que no campo da saúde, onde os médicos recebiam orientação de vários hadiths, ou ditos do Profeta Muhammad, como este relatado por Bukhari: “Deus nunca inflige uma doença a menos que faça uma cura para ela”. Da mesma forma, Abu Darda narrou que o Profeta disse: “Deus enviou a doença e a cura, e Ele indicou uma cura para todas as doenças, então se tratem medicamente”. Essas palavras atribuíam a responsabilidade de descobrir curas diretamente ao médico.

Um século após a morte do Profeta em 632 d.C., uma das primeiras abordagens sistemáticas aos medicamentos estava em andamento em Damasco, na corte dos governantes Omíadas. As mordidas de cobras e cães, assim como os efeitos nocivos de escorpiões, aranhas e outros animais, eram motivo de preocupação, e as propriedades venenosas de minerais e plantas como acônito, mandrágora e heléboro negro foram exploradas. Como na maioria das áreas da medicina da época, os médicos gregos Galeno e Dioscórides eram considerados as grandes autoridades no assunto e, a partir de suas obras, os escritores muçulmanos discutiam com particular interesse os venenos e as teriagas (antídotos).

A morte súbita não era incomum nas cortes reais e era frequentemente atribuída, muitas vezes erroneamente, a envenenamento. Não surpreendentemente, o medo do veneno convenceu os líderes omíadas da necessidade de estudá-los, detectá-los e curar seus efeitos. Consequentemente, grande parte da farmácia islâmica primitiva foi realizada por alquimistas que trabalhavam com toxicologia.

O primeiro deles foi Ibn Uthal, um cristão que serviu como médico para o primeiro califa omíada, Muawiyah. Ibn Uthal foi um alquimista notável que conduziu um estudo sistemático dos venenos e antídotos. Ele também foi descrito como sendo o assassino silencioso de Muawiyah, e em 667 ele próprio foi envenenado em um ato de vingança pelos parentes de uma de suas supostas vítimas. Outro médico-farmacêutico cristão, Abu al-Hakam al-Dimashqi, serviu ao segundo califa omíada, Yazid.

O filho de Yazid, Khalid ibn Yazid, tinha um interesse particular pela alquimia e empregou filósofos gregos que viviam no Egito. Ele os recompensou bem, e eles traduziram livros gregos e egípcios sobre química, medicina e astronomia para o árabe. Um contemporâneo de Khalid foi Jabir ibn Hayyan, chamado Geber no Ocidente, que promoveu a alquimia como profissão, estabelecendo as primeiras bases para a pesquisa química e bioquímica.

Esta representação de um antigo farmacêutico europeu aparece no Tacuinum Sanitatis, uma tradução latina do século XIV do Taqwim al-Sihah (Cuidado com a Saúde) de Ibn Butlan do século XI.

Esses primeiros alquimistas islâmicos provaram ser meticulosos e persistentes em seus experimentos, e fizeram cuidadosos escritos dos resultados obtidos. Eles projetaram seus experimentos para reunir informações e responder a perguntas específicas e, por meio deles, surgiu a “alquimia científica”. Evitando crenças não comprovadas (superstições) em favor da compilação e aplicação de procedimentos, medições e experiências demonstradas que pudessem ser testadas e reproduzidas, seu trabalho representou o verdadeiro advento do método científico.

O papel da alquimia científica não está sendo superestimado. No século IX, a tendência, abordagem e tipo de informação que circulava nos manuais de alquimia árabes representavam alguns dos melhores trabalhos neste campo. A metodologia cuidadosa que os alquimistas desenvolveram servia em todos as áreas, incluindo a farmácia.

No processo de experimentação na confecção de amálgamas e elixires, foram utilizadas importantes substâncias minerais e químicas, como sal amoníaco, vitrióis, enxofre, arsênico, sal comum, cal virgem, malaquita, manganês, marcassita, natrão, borato de sódio impuro e vinagre.

Entre os simples de origem botânica, utilizaram-se erva-doce, açafrão, casca de romã, aipo, alho-poró, gergelim, rúcula, azeitona, mostarda e líquen. Resinas importantes, como de olíbano e acácia, foram usadas, bem como produtos de origem animal, incluindo pelo, sangue, clara de ovo, leite (fresco e azedo), mel e esterco.

Esta página do Kitab al-Diryaq (O Livro dos Antídotos), um guia do século XIII para plantas medicinais, também do Iraque, destaca o papel da botânica na farmácia islâmica primitiva.

O equipamento de laboratório consistia em tachos, panelas, tubos, retortas, alambiques, cadinhos e vários aparelhos de destilação; travessas de cobertura, potes de cerâmica, copos, almofarizes e pilões (muitas vezes feitos de vidro ou metal); bem como tripés, balanças e frascos medicinais. A gama e o escopo das operações alquímicas incluíam processos frequentemente usados ​​hoje: destilação, sublimação, evaporação, pulverização, lavagem, drenagem, cozimento, calcinação e condensação (o espessamento de compostos líquidos).

Embora a tradução de livros científicos gregos, persas e indianos para o árabe tenha começado sob o califado omíada, ela floresceu no século IX sob os abássidas em Bagdá. Hunayn ibn Ishaq, com seu grande conhecimento de siríaco, grego e árabe, foi provavelmente o maior dos tradutores, e suas obras incluíram a maior parte do corpus de Hipócrates e Galeno. Fermento intelectual, reforçado pelo apoio dos membros do mais alto escalão do governo, pavimentou o caminho para cerca de 400 anos de grandes feitos. Os métodos de extração e preparação de medicamentos foram transformados em arte e essas técnicas tornaram-se os processos essenciais da farmácia e da química.

Um farmacêutico chamava-se saydalani, nome derivado do sânscrito para um vendedor de sândalo. Os saydalanis introduziram novos medicamentos, incluindo – não por acaso – sândalo, mas também cânfora, sena, ruibarbo, almíscar, mirra, cássia, tamarindo, noz-moscada, alúmen, aloés, cravo, coco, noz-vómica, cubeba, acônita, âmbar cinza, mercúrio e mais. Além disso, introduziram o cânhamo e o meimendro como anestésicos e os distribuíram na forma de pomadas, remédios, elixires, manipulados, tinturas, supositórios e inalantes.

Como acontecia na Europa e na América até os tempos modernos, muitos médicos proeminentes em terras islâmicas preparavam eles próprios alguns medicamentos para seus pacientes. Embora Al-Majusi, Al-Zahrawi e Ibn Sina sejam todos bons exemplos, eles são, na verdade, exceções, pois o médico em geral costumava dar boas-vindas ao papel especializado de um saydalani, cujo trabalho provou ser tão distinto da medicina quanto a gramática é da composição.

Um manuscrito francês do século XIV retrata alquimistas trabalhando. Cerca de 500 anos depois, o químico francês Henri Moissan foi retratado trabalhando em seu laboratório na l’Ecole de pharmacie de Paris, embaixo.

No início do século IX, Bagdá viu uma rápida expansão das farmácias privadas, uma tendência que rapidamente se espalhou para outras cidades muçulmanas. Inicialmente, elas não eram regulamentadas e eram gerenciadas por pessoal de capacitação inconsistente, mas tudo mudou quando os alunos de farmácia foram preparados em uma combinação de exercícios em sala de aula juntamente com experiências práticas do dia a dia com medicamentos. Decretos dos califas al-Mamun e al-Mutasim exigiam que os farmacêuticos passassem nos exames e se tornassem profissionais licenciados, comprometidos em seguir as prescrições dos médicos. Para evitar conflitos de interesse, os médicos foram proibidos de possuir ou compartilhar a propriedade de uma farmácia. Os farmacêuticos e suas lojas eram inspecionados periodicamente por um muhtasib, um inspetor de pesos e medidas nomeado pelo governo que verificava se os medicamentos estavam misturados corretamente, não diluídos e mantidos em potes limpos. Os infratores foram multados ou espancados. Os hospitais desenvolveram seus próprios dispensários associados aos laboratórios de manufatura. O hospital era administrado por um conselho de três homens composto por um administrador não médico, um médico que servia como mutwalli (decano) e o shaykh saydalani, o farmacêutico-chefe, que supervisionava o dispensário. Por volta dessa época, a farmácia desenvolveu sua própria literatura especializada. Se baseando primeiramente na materia medica de Dioscórides de cerca de 500 substâncias e, em seguida, também no médico nestoriano Yuhanna ibn Masawayh, um farmacêutico de segunda geração, que escreveu um tratado inicial sobre plantas terapêuticas e aromáticos.

Foi um colega mais jovem, Abu al-Hasan Ali ibn Sahl Rabban al-Tabari, que disse que o valor terapêutico de cada medicamento precisava ser conciliado com a doença em particular, e pediu aos médicos que não fornecessem simplesmente um remédio padrão. Ele identificou as melhores fontes de componentes, afirmando, por exemplo, que o melhor mirobalano preto vem de Cabul; aloés, de Socotra; e especiarias aromáticas, da Índia.

Ele recomendou recipientes de armazenamento de vidro ou cerâmica para medicamentos líquidos, pequenos potes especiais para pomadas para os olhos e recipientes de chumbo para substâncias gordurosas. Para tratar feridas ulceradas, ele prescreveu uma pomada feita de resina de zimbro, gordura, manteiga. Além disso, ele alertou que um mithqal (cerca de quatro gramas) de ópio ou meimendro causa sono e também morte.

De acordo com o historiador da ciência EJ Holmyard, Jabir ibn Hayyan, nascido no início do século VIII e conhecido no Ocidente como Geber, trabalhou com textos gregos clássicos e a alquimia de seu próprio tempo e “abriu uma porta que ninguém jamais havia aberto”, pavimentando o caminho para a alquimia científica e, a partir daí, para as bases da química racional moderna baseada em experimentos controlados e replicáveis.

O primeiro formulário médico conhecido foi preparado em meados do século IX por Sabur ibn Sahl para farmacêuticos em farmácias privadas e hospitalares. O livro incluía receitas médicas, técnicas de manipulação, ações farmacológicas, dosagens e meios de administra-los. As fórmulas eram organizadas por comprimidos, pós, pomadas, eletuários ou xaropes e, posteriormente, fórmulas maiores seguiram seu modelo.

De modo mais geral, os medicamentos farmacológicos foram classificados em simples e compostos – mufraddat e murakkabat. O maior e mais popular dos manuais de matéria médica, escrito por Ibn al-Baytar, nascido em Málaga, no reino de Granada no final do século XII, oferecia um guia alfabético para mais de 1.400 exemplares retirados das próprias observações de Ibn al-Baytar, bem como 150 de fontes escritas.

Hoje, cada receita fornecida, cada licença de farmácia concedida, cada elixir, xarope e medicamento criado, usado ou testado reflete esse legado islâmico. Se o que os alquimistas e os primeiros médicos fizeram então parece muito óbvio para nós agora, é apenas porque o óbvio de hoje é a descoberta de ontem.

O gabinete de medicina islâmica medieval

A farmacologia islâmica medieval não era apenas extensa, mas também a ciência biológica de base empírica mais forte. Como a maioria da medicina medieval, o ponto de vista islâmico foi uma consequência da Teoria Humoral de Galeno e focou na necessidade de equilibrar os humores, ou fluidos corporais.

Catárticos, purgantes e laxantes foram considerados essenciais para esse objetivo. A erva mais popular – uma favorita ainda hoje – era a sene, um arbusto baixo com pequenas flores amarelas, folhas amarelas esverdeadas e rica em sementes de vagens. As folhas têm um cheiro característico e a infusão feita com elas tem um sabor adocicado nauseante; tomada sozinha, a infusão realmente causa náusea. O sabor e o efeito foram controlados com a adição de especiarias aromáticas.

Os árabes também introduziram o maná e o tamarindo como laxantes seguros, suaves e confiáveis. Escamonéia, uma trepadeira da família da ipomeia que tem raízes grossas com valor medicinal, era uma erva controversa na Europa, onde alguns praticantes declararam que sua ação laxante violenta não era segura para uso em quaisquer condições, enquanto outros disseram que não poderiam funcionar sem ela. Os farmacêuticos islâmicos responderam concebendo uma preparação confiável para moderar a ferocidade da erva, mas manter sua potência. Eles fizeram isso primeiro fervendo a raiz da escamonéia dentro de uma fruta chamada marmelo; a escamonéia foi então descartada e a polpa de marmelo misturada com as sementes pegajosas e calmantes de psílio. A preparação era conhecida como “diagridium”.

A formulação se transformou em uma arte envolvendo muitas etapas e ingredientes. Ar-Razi, o maior clínico da medicina islâmica e o pensador mais original, combinou amêndoas amargas com um grama de torta de passa, ou polpa, para tratar pedras nos rins. Para a mesma doença, um clínico chamado Haly Abbas recomendou jujubas ferventes, frutas de sebesten [cordia myxa],  sementes de aipo, erva-doce, tribulus terrestris e tomilho.

A simplicidade

Além dos compostos, os primeiros farmacêuticos davam valor a centenas de remédios de ervas simples. Eles usaram óleo de gergelim para aliviar a tosse e suavizar a inflamação da garganta. O suco do caule e das folhas da planta do alcaçuz era considerado bom para problemas respiratórios, glândulas inchadas e pigarro, enquanto a raiz era usada para tratar úlceras e feridas nos pés.

Acreditava-se que o cardamomo esfriava o corpo e ajudava na digestão; ele perdurou como o principal ingrediente do café árabe. O cominho era, e ainda é, usado como antiflatulento e para aliviar cólicas estomacais. A erva-doce foi usada para prevenir a obesidade.

A mirra era altamente valorizada por suas propriedades medicinais como adstringente e também era usada para tratar dispepsia, bronquite crônica, leucorreia e como aplicação local em doenças gengivais.

Os medicamentos simples islâmicos também incluíam uma variedade de analgésicos. O Cânone de Ibn Sina lista a papoula do ópio, duas outras variedades de papoula, mandrágora, meimendro, erva-moura e semente de alface como analgésicos eficazes.

Acônito foi prescrito para reumatismo, gota, coqueluche, asma e febre. Cravos eram usados ​​para dor de dente e para controlar o vômito. Os muçulmanos medievais foram os primeiros a usar cássia e prezaram pela sua suave ação laxante, que a tornou um remédio popular composto de ervas para crianças e idosos. O óleo de cominho, que continua sendo um remédio comum à base de ervas, era usado para ajudar na digestão. O tomilho cozido era prescrito para resfriados e em sua forma natural era considerado um tratamento para indigestão e dores de dente. Assado com pão, o za’atar continua sendo uma erva comum no café da manhã, valorizada por sua qualidade de refrescar o hálito.

Os médicos muçulmanos usaram óleo de noz para doenças de estômago e rins, “especialmente para aqueles que eram bem alimentados”, de acordo com Ibn Sina. Abu Mansur descreveu o óleo de amêndoa doce como “bom para abrir o intestino e útil para dores que afetam o estômago, rins, fígado, tórax e pulmões”. Infusões de absinto eram usadas para tratar diabetes, arruda africana era usada para dores de cabeça e cascas de romã eram colocadas em úlceras de pele.

Essas são apenas algumas das ervas que os árabes valorizavam e reconheciam por suas propriedades curativas, amenizadoras e também como “veículos” para tornar os demais remédios mais palatáveis.

O químico francês Henri Moissan trabalhando em seu laboratório na l’Ecole de pharmacie, em Paris, com equipamentos que frequentemente utilizavam processos explorados inicialmente por alquimistas científicos: destilação, sublimação, evaporação, pulverização, lavagem, drenagem, cozimento, calcinação e condensação – processos ainda amplamente em uso hoje.

Fonte: Aramco World