Os alauítas: Entenda as crenças e a história da religião de Bashar al-Assad
Data inválida“A seita, vital em si mesma, era introvertida em sentimentos e em política.
Um nusairita jamais trairia outro, e dificilmente não trairia um infiel.”
(T.E. Lawrence, o famoso “Lawrence da Arábia” em seu livro Seven
Pillars of Wisdom, cap. 58)
Os Nusayrī-ʿAlawīs, os alauítas, também conhecidos como nusairitas ou
ansaris, são um secto muçulmano xiita que rompeu com o xiismo
convencional no final do século IX. Ainda que suas doutrinas sejam
altamente sincréticas, heterodoxas e consideradas pós-islâmicas por alguns,
sua histórica é indissociável dos estudos islâmicos. Originados do
movimento Ghulāt, cujas características veremos em seguida, os alauítas,
comumente chamados por seus adversários de nusairitas em virtude do
nome do fundador do secto, Muhammad ibn Nusayr, um jovem estudante e
místico xiita de Kufa, no atual Iraque. Ao longo dos séculos, foram
duramente perseguidos por suas crenças, uma amálgama de diversas
doutrinas das religiões do Oriente Próximo e ficaram no fogo cruzado entre
potências, revoltas e guerras santas, sempre à margem da sociedade e
civilização islâmicas. A sua principal área de habitação é na cadeia de
montanhas do litoral sírio, conhecido não à toa como Jabal al-Nusairiyya
(Montanhas dos Nusairis), estando presentes também em grande número
nas províncias de Homs e Hama; habitam também no distrito libanês de
Akkar, ao sul de Latakia (norte do Líbano) e no bairro de Jabal Mohsen,
em Trípoli; nas províncias turcas de Hatay (antigamente conhecidas como
Alexandretta ou Iskandarun), Seyhan (Adana) e Tarsus. Havia até pouco
tempo atrás algumas famílias alauítas na Cisjordânia, que acabaram se
retirando para a vila de Ghajar, nas colinas do Golã, onde até hoje há uma
comunidade alauíta com cidadania israelense. Eles também vivem em
grandes centros urbanos sírios, como Damasco, Aleppo, Hama etc.
Para começar, quem eram os ghulats? Os ghulats, isto é, os exageradores
eram uma denominação dada pelos xiitas e sunitas ortodoxos àqueles xiitas
que exageravam na sua devoção à alguma figura central do Islam: o Profeta
Muhammad, o Imam Ali, a Ahl ul bayt (família do Profeta, especificamente
Ali, Fátima, Hassan e Hussein) e o Imamato (os Doze Imãs do Xiismo
Jafari, também conhecido como duodecimano), a ponto de considera-los
Divinos ou mesmo Deus encarnado (ou apenas manifestado), tal qual Jesus
para os cristãos. Um desses sectos, os mukhamissa de Abu al-Khattab,
consideravam que Deus havia encarnado em Muhammad e posteriormente,
nos Imãs. As ideias de Abu al-Khattab tiveram um grande impacto e
influência nas ideias mais tarde elaboradas por ibn Nusayr. Havia muitos
outros sectos, ainda, que divinizavam os Imãs e os Ahl ul Bayt; os
nusairitas viriam a ser apenas mais um, com a diferença de que eles são um
dos únicos sectos ghulat a sobreviver até os dias de hoje, crendo que Ali
ibn Abu Talib era uma manifestação de Deus, assim como também foi o
Profeta Muhammad, o sahaba Salman al-Farsi e Muhammad ibn Nusayr,
embora Ali seja o maior de todos: ele é a manifestação mais “pura” de
Deus.
Abū Shu’ayb Muhammad ibn Nusayr al-‘Abdī al-Bakrī al-Numayri foi um
estudante e místico xiita - “um tariqueiro”, como diz Olavo de Caravalho -
que teve, alegadamente, contato com o décimo e o décimo-primeiro
Imãs,‘Alī al-Hādī e Ḥassan al-‘Askarī, respectivamente (o décimo-segundo
imã, o Imã Mohammed al-Mahdi foi, segundo a tradição xiita
duodecimana, oculto por Deus para retornar no fim dos tempos). Pouco se
sabe sobre sua vida antes de sua polêmica atuação no campo religoso do
efervescente Iraque do final do primeiro milênios após Cristo, exceto que
ele era membro da tribo árabe dos Banu Numayr, ou Banu Numayriyya (daí
seu sobrenome al-Numayri) e que teria estudado na Índia em sua
juventude. É dito que ibn Nusayr detinha um círculo de alunos que logo
evoluiu para uma tariqa, um círculo esotérico, com ibn Nusayr ensinando
suas doutrinas controversas (para não dizer heréticas) que causaram, por
duas vezes, sua excomunhão pública: transmigração das almas
(reencarnação), divinização do Imã (à época, al-Hādī) e reclamando o dom
da profecia para si mesmo; na segunda vez, após a morte do imã Ḥassan al-
‘Askarī, ibn Nusayr “revelou” ser o bāb do falecido imã, isto é, seu enviado
íntimo, a quem teria sido ensinado conhecimentos secretos pelo divino imã.
Além disso, também reclamava para si o título de representante do imã
sumido, o Imã Mahdi, representando-o em sua ausência. Publicamente
excomungado e amaldiçoado, ibn Nusayr tentaria, em vão, se desculpar
com a ulemá. No entanto, a essa altura, sua seita já estava bem estabelecida
entre os Banu Numayr, contando com muitos aderentes e capítulos (grupos)
em outras cidades, como Samarra, especialmente através de financiamento
pela rica tribo dos Banu al-Furat, uma rica dinastia a quem pertenciam
poderosos comerciantes e homens públicos da região. Os Banu al-Furat
durante muito tempo financiariam a tariqa nusairita, num elo entre religião
e poder, mas seriam mais tarde descobertos pelos Abássidas – inimigos
mortais dos nusairitas – e liquidados por eles. Os Numairiyya, no entanto,
conseguiram sobreviver num ambiente hostil pois a maioria de seus
membros eram intelectuais de classe média e se utilizavam de taqiyyah,
isto é, escondiam suas verdadeiras crenças e se apresentavam como
muçulmanos ortodoxos; secretamente, em suas reuniões, não chamavam a
si mesmos de “muslimin”, mas sim de muwwahidun: “monoteístas”, por
crerem ser os únicos detentores do real monoteísmo, ocasionado pela fusão
do exotérico (zahir) e esotérico (batin). O fim de ibn Nusayr foi ser
executado por blasfêmia, atribuindo divindade ao imã, uma “profissão de
fé” chamada de nidāʾ. Para a seita, ibn Nusayr não foi morto de fato, mas
apenas em aparência, isto é, de maneira ilusória. Tempos mais tarde, alKhasībī, o segundo maior nome do nusairismo, diria que o Imã Hussein ibn
Ali, filho de Ali ibn Abu Talib e segundo imã, morto em combate, não teria
sido de fato morto, mas apenas aparentemente morto, uma vez que ele,
assim como ibn Nusayr (embora Hussein como imã seja maior que Nusayr)
eram forças divinas cujo corpo era uma manifestação, não sendo carnal de
fato. Esta doutrina ecoa as doutrinas chamadas “docéticas” de alguns
cristãos gnósticos que achavam que Jesus Cristo não poderia ter morrido na
Cruz; antes, sua crucificação e morte foram uma ilusão de ótica. Tal como
a crucificação de Jesus, assim teria sido o martírio de Hussein ibn ali e a
execução de Muhammad ibn Nusayr.
Muhammad ibn Nusayr foi sucedido por Muhammad ibn Jundab, seu mais
proeminente aluno. Nesse tempo, ainda sob os Abássidas sunitas, o
ambiente era hostil: rebeliões e execuções, prisões de líderes xiitas e
ataques por extremistas cármatas aos sul tornavam o uso da taqiyyah
obrigatório para a sobrevivência do secto. De fato, a taqiyyah foi tão
efetiva que as autoridades não sabiam quem era o sucessor de Nusayr.
Muhammad ibn Jundab foi sucedido por ‘Abdallāh al-Jannān al-Junbulānī,
natural da vila de Junbula, entre Kufa (principal centro dos nusairitas) e
Wāsit. Seria um conterrâneo de al-Jannān, um outro al-Junbulānī, que viria
a ser o maior nome de toda a história e teologia nusairita, seu mais notável
líder, tão grande quanto o próprio Muhammad ibn Nusayr.
É impossível falar ou entender a história e as doutrinas nusairitas sem falar
de Abū ‘Abdallāh al-Ḥussein ibn Hamdān al-Khasībī al-Junbulānī, um
homem que veio de uma proeminente e religiosa família de devotos xiitas:
seu pai, Hamdān, era um transmissor de tradições xiitas, especialmente as
biográficas relacionadas ao Profeta Muhammad. Seu tio, Ibrahim, era
assistente do Imam al-‘Askarī e seus tios eram igualmente bem quistos.
Desse modo, al-Khasībī foi desde muito cedo exposto à religião e à mística,
fazendo o Hajj e vários outras peregrinações em sua juventude, além de
estudar poesia, hádices e exegética corânica. Por influência de seu tio
Ahmad, al-Khasībī foi apresentado a al-Jannān; não demorou muito para
que al-Jannān “adotasse” o jovem prodígio como seu filho espiritual. Esta
adoção, no entanto, não era apenas uma relação de professor-aluno, mas
sim uma verdadeira iniciação esotérica de al-Khasībī na tariqa nusairi.
Após a morte de al-Jannān, a tradição nusairita pontua que al-Khasībī, para
completar seus estudos, foi ao encontro de um senhor supostamente
discípulo de ibn Nusayr. Lá, no dia do feriado xiita de ʿāshūrāʾ, além de
completar seus estudos e iniciação, teria sido visitado pelos últimos dois
Imãs (al-Hādī e al-‘Askarī) que teriam lhe revelado diversos conhecimentos
ocultos, dentre os quais aquele que colocava ibn Nusayr como “Portão
(bāb) para Deus e líder dos fiéis”; munido das bênçãos e conhecimentos
ocultos dos Imãs, al-Khasībī estava pronto para liderar a comunidade
nusairita para uma nova era de florescimento. Al-Khasībī logo decidiu
fazer o nidā’, tal qual ibn Nusayr o fizera, e pregar as doutrinas do secto
publicamente: foi preso. Após um misterioso escape da prisão, a quem os
nusairitas atribuem a uma milagrosa intervenção do espírito de Jesus (Isā),
fato esse muito significante na sua vida, al-Khasībī decidiu mudar-se com
seu séquito do turbulento e caótico Iraque do século X para a região da
Síria, onde ele conseguiu se estabelecer com seus companheiros na cidade
de Harran, na atual Turquia, um local bem conhecido por ser lar dos
últimos pagãos da região: os sabeus, seguidores de uma religião sincrética
que misturava o hermetismo, o neoplatonismo e o culto às estrelas e à uma
antiga divindade lunar mesopotâmica. Não se sabe se os sabeus de Harran
influenciaram os nusairitas de algum modo; alguns autores como René
Dussaud em sua obra Histoire et religion des Nosairîs, dizem que sim, mas
tal afirmação é extremamente difícil de se comprovar. O que se sabe é que,
apesar de haver uma presença xiita em Harran, a Síria se provou
inicialmente um ambiente um tanto quanto hostil ao grupo, no entanto, ela
logo se tornou um importante centro nusairita, lar dos Banu Shu’ba, uma
tribo nusairi que durou o mesmo tempo que a “era de ouro” dos nusairis,
até o final do século XI. Após a dinastia xiita dos Buídas tomar o poder no
Iraque, al-Khasībī retornou ao Iraque, onde posou como um xiita ortodoxo
e escreveu uma considerável quantidade de obras. Inicialmente, al-Khasībī
acumulou imenso pretígio na Academia xiita da época, sendo bendito por
vários escolares e influentes sheykhs da época; obteve uma ijaza (uma
licença oficial para lecionar determinado autor) para lecionar sobre um
importante acadêmico xiita. Mais tarde, porém, ele aparece sendo
condenado algumas vezes por alguns estudiosos xiitas, que o acusam de
acreditar em reencarnação das almas e na encarnação da Divindade em Ali
ibn Abu Talib; a maioria de tais acusações foram provavelmente
censuradas para limpara a reputação de al-Khasībī. Nos seus últimos anos
de vida, al-Khasībī retornou para a Síria, onde foi acolhido pelo governante
da dinastia Hamdanita em sua corte, em Aleppo, deixando um certo al-Jīsri
para comandar os “monoteístas” no Iraque. Após sua morte, foi sucedido
por Muhammad ibn ‘Alī al-Jillī. Ao contrário de seus antecessores que
pouco escreveram, al-Khasībī era um ávido escritor, legando diversas obras
a seus irmãos e filhos espirituais, assim como novas doutrinas. Muitas
doutrinas e detalhes doutrinários novos foram adicionadas ao catálogo do
secto, dentre as mais notáveis: a transmigração cíclica das almas, as Tríades
Divinas e suas manifestações (aparentes, pois o Divino não pode ser
encarnado, uma doutrina idêntica ao conceito dos avataras do Hinduísmo)
através da história (antes era um Díade e o bāb não era considerado
totalmente divino), além de conceitos da emanação da Divindade
(semelhantes ao Neoplatonismo) e interpretações místicas, esotéricas e
alegóricas do Alcorão, além de muitas outras.
Após a morte de al-Khasībī em 957 d.e.c., al-Jillī herdou a liderança da
comunidade. No entanto, seu período de liderança foi dramático: a Síria já
passava por maus bocados quando, em 962, os bizantinos sob o imperador
Nicéforo Focas incendiaram Aleppo e mataram o patrocinador do secto.
Para garantir a sua sobrevivência, os nusairitas precisavam espalhar sua
mensagem, aumentar seus números. Mas como fazer isso sendo que o
grosso da população do Levante, à época, era de sunitas hostis ao xiismo?
A solução encontrada foi pregar entre os não-muçulmanos. Os cristãos,
especialmente os da Galileia, do Golã e da costa síria de Latakia, região do
Jabal, foram alvo do dawa (proselitismo) do secto. Muitas obras nesse
período utilizam termos teológicos cristãos, mas isso não representa uma
“cristianização” do nusairismo, ou que os nusairis viriam a ser “cristãos
islamizados” como a grande maioria dos estudiosos e acadêmicos
ocidentais do século XIX e do começo do XX dizia, mas sim uma
“nusairização” ou “islamização” dos termos e alguns conceitos e até
doutrinas cristãs. Vários feriados cristãos passaram a ser feriados nusairitas
também, sendo ressignificados, com o intuito de atrair cristãos para as
fileiras nusairis, especialmente aqueles cristãos nestorianos e siríacos que
se encontravam ao relento, considerados heréticos pelos bizantinos
ortodoxistas e infiéis pelos árabes sunitas. Logo, o secto estabeleceu uma
forte presença nas áreas rurais de Aleppo, Harran, Tiberias e Beirute.
Al-Jillī foi sucedido po Maymūn ibn al-Qāsim al-Tabarānī, um estudioso
com extenso conhecimento do Islam xiita, teologia cristã, filosofia grega e
religiões persas (masdeístas), além de ser o primeiro a usar cifras e “letras
mágicas” em seus escritos. Al-Tabarānī é conhecido por ser o líder
espiritual nusairita que mais produziu obras escritas, superando até mesmo
al-Khasībī; nessa época hpuve a grande divisão entre as massas iniciadas e
as não-iniciadas.
Após al-Tabarānī, o secto ficou enfraquecido, tornando-se descentralizado
entre os diversos sheykhs e comunidades diferentes. Em troca de proteção,
os nusairis se submeteram a clãs encastelados na região costeira do
Levante, de Aleppo e Golã até Beirute.
Durante as Cruzadas, muitos nusairitas foram mortos quando os cruzados
europeus tomaram o Monte Líbano. Eles logo, no entanto, compreenderam
que o estranho povo não era de fato “sarraceno”, muçulmano, e passaram a
forjar alianças com os sheykhs nusairis. Através dessa parceria, os
nusairitas reganharam muitos castelos na região que ainda estavam sob
poder dos ismailitas e de sunitas.
Os Aiúbidas (1171–1260) trouxeram curdos ocupar e patrulhar a região,
bem como manter os nusairitas sobre controle. Durante o período cruzado,
ainda, os Ismailitas nizaris, seguidores do “Velho da Montanha” Hassan
ibn Sabbah, conhecidos como hashshashins também ocuparam algumas
fortalezas do Jabal, oprimindo a população local. A tradição nusairita então
narra a vinda de um “salvador” diretamente da província iraquiana do
Sinjar, notável por sua população de outro secto, os yezidis, Abū
Muḥammad al-Hasan ibn Yūsuf al-Makzūn al-Sinjārī, ou al-Makzūn para
os íntimos, liderando um grande exército que expulsou os curdos e os
nizaris, além de massacrar os rivais intelectuais dos nusairis, os ishaqiyyas
(seguidores do Ishaq al-Ahmar, um rival de Muhammad ibn Nusayr) e os
duhabiyyas. Esses guerreiros e suas famílias são tidos como os ancestrais
da maioria dos atuais nusairitas/alauítas da Síria, inclusive a da atual
família presidencial síria, os al-Assad, cuja nata é a tribo dos Kalbiyya,
vinda do Sinjar. Al-Makzūn levou um revivalismo do secto na região, tanto
na área demográfica quanto na área teológica: poetas podiam escrever
sobre as crenças e temas secretos, desde que codificassem-nos; uma
linguagem “militar” passou a permear os escritos teológicos nusairis da
época, sendo introduzido o conceito de jihad esotérica e exotérica e houve
também alguns elementos sufis trazidos por al-Makzūn, chamando o
nusairismo de ‘ilm al tassawuf, “ciência do sufismo”, ao mesmo tempo que
al-Makzūn ataca Mansūr al-Hallaj (místico persa sunita, 858 – 922) e o
conceito sufi de união com Deus como heresia, favorecendo a visão de um
Deus puramente transcendental e oculto (na tradição nusairita, Deus é
muitas vezes chamado pelo epíteto Al-Ghāyba, “A Ausência” ou “O
Oculto”), ou seja, inalcançável.
Após expulsar as hordas mongóis em Ain Jalut (1260) junto coms grande
parte dos hashashins, o sultão do Egito, Baybars, estabeleceu o poder da
dinastia dos Mamelucos (1250–1517). Devotamente sunitas e hostis a
qualquer forma de xiismo, sobrou para os já marginalizados nusairitas e
druzos: o sultão ordenou que mesquitas (os nusairitas não rezam em
mesquitas e raramente têm casas de oração, a maioria das cerimônias são
feitas em residências ou tumbas de sheykhs) em cada vilarejo nusairi, o
aumento de impostos para os nusairitas e a proibição da fabricação,
importação e consumo de vinho (os nusairitas, diferente dos muçulmanos,
tomam vinho sem preocupação alguma e ele é inclusive utilizado em
cerimônias religiosas chamadas qadassah, que possuam uma semelhança
muito grande com as missas do cristianismo). O mais severo decreto foi, no
entanto, a proibição da iniciação na religião, algo que significaria, a longo
prazo, no desparecimento dela. Tais tentativas falharam miseravelmente,
levando o historiador árabe ibn Battuta a dizer, ironicamente, que os
nusairitas “fizeram das mesquitas currais para seu gado” (ibn Battuta,
Tuhfat al-nuzzar, pg. 291). Tais supressões contra a religião nusairita,
aliadas à miséria, marginalização e dificuldades econômicas levaram a um
revolta com foco na província de Jabala em 1317, que ficaria conhecida
como “A Revolta do Mahdi” (o Mahdi, o “messias islâmico” é um conceito
central da teologia xiita duodecimana, da qual o nusairismo descende
diretamente).
Os nusairitas de Jabala, descendentes daqueles guerreiros que al-Makzūn
trouxera do Sinjar, se rebelaram pregando jihad guerra santa contra seus
opressores sunitas, como nos conta o historiador muçulmano
contemporâneo ibn Kathir, aos gritos de “Não há Deus além de Ali [ibn
Abu Talib], não há véu além de Muhammad [ibn Abdallah, o Profeta] e
não há Portão além de Salman (al-Farsi)”, proclamando os muçulmanos
como infiéis (kaffirun) e proclamando que apenas os nusairitas detinham a
Verdade; por vezes, o tal mahdi dizia ser “Ali ibn Abu Talib, o Criador dos
Céus e da Terra (i.e., Deus) ou Muhammad ibn Abdallah, o ‘Senhor da
Terra’.” O mesmo ibn Kathir, além de um outro historiador chamado alMaqrisi, nos narra que após tomar a cidade de Jabala, matar ou escravizar
seus habitantes e saquear o assentamento, o mahdi encontrou seu fim nas
mãos do governador da província em uma batalha e a rebelião foi sufocada.
Tais descrições nos dão uma descrição bem resumida e superficial das
doutrinas nusairitas: a Divindade de Ali ibn Abu Talib. Vale comentar que
a revolta foi apenas na região do Jabal, poisos nusairitas das outras
localidades não se juntaram à ela.
Seguindo este evento marcante, uma fatwa, um tipo de decreto religioso
islâmico, como uma encíclica, foi publicada pelo estudioso e teólogo
muçulmano sunita ibn Taymīyyah (1263 – 1328). Um controverso e
conservador membro da escola Hanbali, que alguns estudiosos dizem ser o
precursor das modernas heresias do wahabismo e do salafismo, ibn
Taymīyyah escreveu e lançou sua fatwa contra os nusairitas acusando-os de
idolatria (shirk) e exortando os fiéis muçulmanos a os liquidarem. Esta foi a
primeira fatwa com os nusairis, mas não seria a última. Temendo por suas
vidas, os nusairitas enviaram emissário à Trípoli para pedirem para serem
incluídos aos “Povos do Livro” (ahl ul kitab, cristãos, judeus e sabeus) e
pagarem a jízia, em troca de proteção. Para a sorte dos seguidores de ibn
Nusayr, ibn Taymīyyah era visto como um fanático exagerado pela maioria
das pessoas de seu tempo (até hoje, pelas pessoas sensatas), e isso incluía
os mamelucos; somando-se a isso, estava o fato de que os nusairitas eram
uma comunidade produtiva, que pagava os impostos e dia e cultivava a
terra: não sofreram represálias nem ataques, mas sua condição tampouco
ficaria melhor.
Apesar de serem odiados pelos seus vizinhos muçulmanos e olhados com
no mínimo desconfiança pelos cristãos, os nusairitas eram conhecidos por
serem um povo trabalhador e pobre, essencialmente camponês. Assolados
por um ambiente hostil, disputas entre os clãs nusairitas e os clãs sunitas e
cristãos (e até mesmo entre os próprios nusairitas, por vezes), a quem
bandidos e quadrilhas nusairis atacavam sem dó, profundamente
empobrecidos, o povo de ibn Nusayr se via numa posição desesperadora na
busca da sobrevivência; os senhores de terra sunitas, necessitando de mãode-obra barata, viam nos nusairitas uma grande fonte disto, empregando-os
nas lavouras e deixando-os relativamente em paz.
Durante a época do Império Otomano, T.E, Lawrence, o conhecido
“Lawrence da Arábia”, narra que o secto não se envolvia em políticas nem
assuntos públicos, “deixando as autoridades otomanas em paz esperando
uma resposta recíproca”. Nem sempre funcionava e, devido ao preconceito
dos seus vizinhos e a miséria dos nusairitas – que muitas vezes acabavam
indo para a bandidagem, tornando-se gângsteres, ladrões de gado e
salteadores -, os nusairitas acabavam sofrendo nas mãos das autoridades
otomanas, não tendo o status nem de dhimmis (minoria protegida). Eram
párias da sociedade. Essa perseguição e desprezo mútuo são evidenciadas
pelo fato dos nusairitas creem que os muçulmanos sunitas são heréticos (os
xiitas são ignorantes) e rezam por sua destruição. Há uma curiosa crença
entre os nusairis que narra que sheykhs sunitas reencarnam como mulas,
enquanto padres cristãos reencarnam como macacos.
Um verdadeiro faroeste havia vingado nas terras do Jabal al-Nusairyya: a
região era conhecida por ser o lar de conflitos sectários entre nusairitas e
seus vizinhos ismailitas e pela atuação de bandidos. O território de um dos
principais quatro clãs nusairitas, aquele dos Kalbiyya ou Banu Kalb, era
considerado o mais fora-da-lei. Comuns também eram as expedições
punitivas otomanas contra os “bandidos” nusairitas: em 1760, um físico
inglês foi morto no Jabal e a comunidade se recusou a colaborar nas
investigações; o governador otomano então reuniu um exército e marchou
sobre o Jabal, matando centenas de nusairitas, dentre os quais 70 líderes
tribais e sheykhs dos nusairis, decapitando-os e espetando suas cabeças em
lanças. Durante o século XIX um missionário inglês, Reverendo Samuel
Lyde, viveu entre os nusairitas entre 1853 e 1859, destacando a melancolia
intrínseca que permeava todos os aspectos da vida desse povo, além do
constante conflito que a perpassava; nas palavras de Lyde, a sociedade
nusairita era um “inferno sobre a terra”. Midhat Pasha, apontado
governador da Síria em 1879 apresentou medidas para “disciplinar” o
arruaceiro povo das montanhas, que incluíam a abertura de escolas,
autonomia para a comunidade e parar com a opressão dos órgãos
governamentais. Os sunitas de Damasco ficaram ultrajados e pediram para
o sultão Abdülhamid II removê-lo; Abdülhamid, que detestava o estilo
reformista liberal e democrático de Midhat, o retirou do governo em 1880.
Após a derrocada do Império Otomano, a França ocupou os territórios do
Líbano e Síria (incluindo Iskenderun) e, utilizando-se da estratégia do
“dividir e conquistar”, fragmentou seus domínios em áreas étnicoreligiosas: o “Grande Líbano”, com maioria da população composta por
cristãos maronitas e ortodoxos; o “Jabal el-Druze”, uma região autônoma
para os druzos; o Estado de Damasco e o Estado de Aleppo, com maioria
sunita e por fim, o “Estado Alauíta” (primeiro uso frequente do nome
“alauíta”) no que seria o Governorado de Latakia, no Jabal al-Nusairiyya.
Como os sírios sunitas se recusavam a colaborar com os franceses e alistar
seus filhos no exército, os franceses, vendo nos druzos e alauítas as únicas
“raças guerreiras” da região, escoraram-se neles para preencher os postos
de seu exército colonial. Não demorou muito para os alauítas tornarem-se
proeminentes e dominantes no exército colonial sírio, posição que lhes
seria muito favorável após a independência. Apesar dessa colaboração, nem
todos os nusairitas eram amistosos com os franceses e, em 1918, uma
revolta nusairi eclodiu, com os insurretos tendo à sua frente o sheykh Salih
Ahmad al-Ali. Após unir vários sheykhs à sua causa e sendo apoiado pelo
presidente turco Mustafá Kemal Atatürk, emboscou e derrotou uma grande
força francesa enviada para dar-lhe fim; após isso, ele reorganizou o
exército numa força regular. Al-Ali atacou também os ismailitas (que
haviam se aliado aos franceses e ajudado-os em suas expedições contra alAli) em sua principal cidade, Qadmus, ocupando-a. Derrotando os
franceses mais três vezes seguidas (nem canhões e ataques contra civis
alauítas puderam ajuda-los), em 1920 al-Ali fez os franceses proporem paz,
e juntos fizeram uma trégua; os franceses no entanto, violaram o tratado de
paz, o que fez as hostilidades reacenderem. Em 1921, al-Ali foi forçado a
se esconder, sendo julgado e condenado à morte in absentia por um tribunal
militar. Os franceses, cansados de procurá-lo, o perdoaram e distribuíram
panfletos por avião pelo Jabal. Al-Ali se entregou e, perguntado pelo seu
””captor””’, o General Billote , pelo motivo da rendição, al-Ali respondeu:
“Por Deus!Se eu apenas tivesse uns 10 homens para lutar, eu não me
renderia”.
Durante a década de 30, às vésperas da independência síria, com os
franceses cedendo às pressões nacionalistas, os alauítas, cuja imensa
maioria permanecia leal e amigável à França, não queriam, num eventual
fim do regime colonial francês, serem unidos a seus tradicionais inimigos e
algozes. Em 1936 um memorando foi enviado ao premiê francês Leon
Blum, assinado por 6 notáveis alauítas, dentre eles Suleyman al-Assad, pai
do futuro presidente sírio Hafez al-Assad e avô do atual, Bashar. O
memorando – um apelo desesperado à França – revelava o ódio dos
alauítas pelos seus vizinhos nacionalistas sunitas e seu temor pela
unificação com eles novamente; suas esperanças eram a independência de
um estado alauíta separado que juntar-se-ia com o Líbano (lar da segunda
maior população de alauítas à época). Tudo em vão: com o fim da Segunda
Guerra Mundial, veio o fim do mandato francês na Síria, que se tornou um
país independente. Ao mesmo tempo, a nova geração de alauítas, educadas
em escolas elementares e europeias, tornavam-se mais dóceis a seus
compatriotas sunitas do interior do país, ao mesmo tempo que deixavam o
estilo de vida tribal de seus antepassados. Um desses jovens era Hafez alAssad, filho do importante líder alauíta Suleyman al-Assad, da tribo dos alKalbiyya. Mas ainda não chegou a hora de falar dele. A ascensão dos
alauítas ao poder na Síria foi lenta, ocorrendo através de dois canais: o
exército e o Partido Baath, ou Partido Socialista Árabe que, apesar do
nome, repudiava o marxismo e pregava o nacionalismo árabe e o panarabismo (a união de todos os árabes). Como já foi citado, a condição
deplorável de vida dos alauítas tornavam o alistamento militar de seus
filhos um alívio para eles e para as famílias; uma vez no exército, os
recrutas poderiam ir para a Academia Militar e aprimorar seus estudos,
feitos na escola secundária. Isso acabou tornado os alauítas uma espécie de
“casta militar” (junto aos druzos, mas estes em menor número), enquanto
os sunitas conseguiam pagar o badal, uma isenção do serviço militar,
rechaçando-o como imperialismo estrangeiro.
O Partido Baath conseguiu atrair para suas fileiras muitos alauítas,
especialmente por sua retórica em prol do secularismo, oferecendo
oportunidades para todos. Em 1958, a Síria se uniu com o Egito, formando
a República Árabe Unida. Ironicamente, a facção síria do Baath foi
extinguida por Gamal Abdel Nasser, mostrando quem seria o novo mandachuva do pedaço. Os alauítas do Baath enxergaram com maus olhados essa
união: seu medo era se unirem a um maioria sunita; agora, estavam unidos
a uma esmagadora maioria sunita. Não demorou muito para os oficiais
alauítas do exército, dentre eles Hafez al-Assad, se unirem para tentar
resolver a questão, suspeitando que os líderes do Baath Sírio – agora unido
ao egípcio – haviam entregado a Síria de bandeja à Nasser. Em 1961 a
União colapsou e a Síria foi atingida por uma série de golpes de estado e
complôs políticos que culminaram no golpe de 1963, levando Assad a um
importante cargo no governo como primeiro-ministro. Enquanto isso,
alauítas, druzos e ismailitas, outrora inimigos, agora aliavam-se entre si e
monopolizavam o Partido Baath, junto de alguns poucos sunitas: a esta
altura, os alauítas ganhavam cada vez mais e mais terreno dentro do
partido, especialmente nas pessoas de Zaki al-Arsuzi, Muhammad Umran e
Hafez al-Assad. Em 1966, um outro golpe, orquestrado por oficiais
alauítas, druzos e ismailis, tomou Damasco e forçou Salah ad-Din al-Bitar e
Michel Aflaq – um sunita e um cristão -, fundadores do Baath sírio, a
fugirem do país; 1966 marcou a vitória dos “regionalistas” sírios e causou
um cisma entre o Baath sírio e o iraquiano, bem como com o egípcio. Após
o golpe, começou uma purga para “alauizar” ainda mais as forças armadas.
Em 13 de novembro de 1970, Hafez al-Assad deu um golpe de estado e
derrubou o governo do presidente Nur al-Din al-Atasi e de seu premiê
Salah Jadid. Em fevereiro, ele se tornou o primeiro presidente alauíta do
país, completando o gradual processo de subida ao poder pela comunidade
antes marginalizada. Os alauítas, que antes apenas queriam autonomia para
si mesmos em sua área, tornaram-se os mestres da Síria e suas instituições.
O autor Robert Kaplan compara a subida de Assad ao poder como “um
intocável tornando-se marajá na Índia ou um judeu tornando-se Tzar na
Rússia”. A comunidade que antes sofria rejeição, discriminação e abusos
evoluiu de uma retrógrada sociedade tribal para uma população
emancipada em posição de dominância.
Durante o governo de Hafez al-Assad, para tornar a comunidade alauíta
mais “palatável” ao mundo islâmico e integrá-la melhor, Assad iniciou um
processo de “sunificação” dos alauítas, argumentando que o alauísmo nada
mais eram que xiitas duodecimanos (como os xiitas do Irã e Iraque),
construindo mesquitas em estilo sunita nas cidades e vilas alauítas, para dar
ao menos uma aparência de religiosidade comum. Os alauítas também
foram encorajados a fazer o Hajj, peregrinação à Meca, algo que é
considerado supersticioso e herético (até mesmo pecaminoso) na tradição
alauíta. Hafez tentou fazer dos alauítas “bons muçulmanos”, em troca em
troca de estabelecer uma sociedade modicamente secular e plural. Um dos
atos de seu “Movimento Corretivo” de modernização e reorganização da
Síria foi rechaçar o secularismo extremo de seu antecessor e dar mais
proeminência, porém limitada, aos clérigos sunitas e cristãos. Apesar de
tudo isso, décadas de ditadura de Hafez e seu filho, Bashar, tiveram o
sentido contrário: muitos sunitas e até outras minorias veem os Assad como
carrascos e os alauítas como espoliadores do país, contribuindo ainda mais
para o sectarismo na sociedade síria, apesar de uma aparência de coesão
social. O sectarismo escancarou-se com a eclosão da Guerra Civil Síria,
com os alauítas formando milícias pró-governo, as shabihas, resposáveis
por torturas e execução de opositores, que são em sua esmagadora, sunitas.
Grupos extremistas como a Frente al-Nusra, Ahrar al-Sham e Daesh
antagonizam e pregar a morte da minoria alauíta, que compõem, no
máximo, 12% da população síria na primeira década do século XXI.
Islamizar ou não islamizar, eis a questão diria Shakespeare, se ele fosse
alauíta (teria o nome de Sheykh Pir), uma vez que esse é o dilema que
intriga não apenas o atual presidente sírio, Bashar al-Assad, filho de Hafez,
como também à alta cúpula alauíta do Baath Sírio. Os alauítas não querem
– e não irão – islamizar-se mais, enquanto Bashar, estigmatizado por ser
alauíta, tem na islamização a possível solução de seus problemas.Com cada
vez mais jovens alauítas sendo mortos na guerra, uma geração perdida, e a
crise de identidade e de sectarismo em ebulição, o futuro e a sua
sobrevivência dos alauítas volta a ser o que sempre foi: difícil.
Referências bibliográficas:
- Yaron Friedman, The Nuṣayrī-ʿAlawīs - An Introduction to the Religion,
History and Identity of the Leading Minority in Syria (2010).
- Matti Moosa, Extremist Shi'ites - The Ghulat Sects (1987).
- T. E. Lawrence. Seven Pillars of Wisdom, Book 5, Chapter 58.
-http://joshualandis.oucreate.com//syriablog/2004/10/asads-alawidilemma.htm
-https://www.theatlantic.com/magazine/archive/1993/02/syria-identity