Texto de: Rogério de Oliveira Ribas 

O conceito de mourisco, no caso português, difere muito do conceito utilizado pelos historiadores dedicados aos moriscos espanhóis. Se, para eles, os mouriscos eram os descendentes de mudéjares nascidos na Península Ibérica, em nosso caso entendemos que o termo mourisco abrangia muçulmanos de origem diversa, batizados no cristianismo, inclusive os nascidos em Portugal. Na prática, a maioria era mesmo estrangeira, sobretudo do Norte da África, ao contrário dos mouriscos espanhóis, entre os quais predominavam os nascidos na Península. Não obstante a pobreza e degradação que, no geral, marcavam a condição dos mouriscos no reino português, incluindo os forros, é-nos possível constatar, numa amostragem de 349 réus processados pela prática do cripto-islamismo pela Inquisição, que alguns mouriscos receberam mercês e privilégios e outros e outras desfrutavam de certas posses que os fazia, por vezes, passar por gente rica. Mas, em boa verdade, poucos conseguiram superar as difíceis condições que marcavam a vida de cativos e de forros no século XVI.

O Islã é a religião revelada na península Arábica, no século VII, que pregava a submissão total a Deus, nominado em árabe por “Allah”. Muhammad ibn Abdullah ibn Abdul Mutlib ibn Haxime, membro da tribo dos Banu Qoraysh da cidade de Meca, a quem chamamos Maomé, do galicismo “Mahomet”, foi o que recebeu a revelação de Deus, através da intercessão de um “nâmous”, identificado pela visão popular dos submetidos, os muçulmanos, com o Arcanjo Gabriel. A reunião destas mensagens divinas, recebidas durante a sua vida, acabou por dar origem ao Alcorão, o livro sagrado do Islamismo (1).

Apoiado na revelação alcorânica, que o titulava de “Profeta de Allah”, Muhammad promoveu a unidade das tribos árabes da citada península através da substituição dos laços de consanguinidade pelos laços da fé, dando origem à formação do estado teocrático: o califado. Motivados pela jihad (“o combate pela causa de Deus”), os muçulmanos, sob a direção dos califas (delegados do Profeta), moveram extraordinária expansão pela orla do Mediterrâneo ao longo dos séculos VII e VIII. Conquistaram aos “infiéis”, no caso os bizantinos, a Síria, a Palestina, o Egito e o norte da África, a antiga Mauritânia romana. A conversão islâmica dos habitantes desta última região, chamados de mouros pela cristandade européia, engrossou as fileiras do “exército de Allah”, permitindo aos muçulmanos, na primeira metade do século VIII, conquistar a península Ibérica, onde permaneceriam por séculos. Somente seriam dali expulsos, progressivamente, a partir do século XI, com a chamada Reconquista Cristã, concluída no século XV com a conquista de Granada.

Mas, não obstante o avanço cristão na península Ibérica ao longo da Baixa Idade Média, parte da população muçulmana permaneceu nos reinos hispânicos, bem como em Portugal, sempre por mercê régia, sob a denominação de “mudéjares” (palavra derivada do árabe muddajan, ou seja, “aquele a quem se permite que fique”) (2). No caso português, o decreto de D. Manuel (1496) expulsando as minorias moura e judáica do reino, sob pena de morte e confisco de bens ou, em opção, a sua conversão ao cristianismo, fez surgir no reino a comunidade conhecida como mourisca – comunidade aliás adensada consideravelmente pela expansão marítima portuguesa nos séculos XV e XVI, responsável pela introdução de levas de mouros cativos no reino lusitano. (3)

O termo mourisco, formado pela junção do substantivo “mouro” com o sufixo latino “iscus”, veio a designar “o que procede ou tem procedência de mouro”, entendendo-se mouro, em seu sentido religioso medieval, como sinônimo de muçulmano. Portanto, o problema mourisco no Reino de Portugal se iniciou em 1496, quando, por decreto del rei D.Manuel, foram expulsos ou obrigados à conversão todos os judeus e mouros forros do reino, sob pena de morte e confisco de bens. (4)

De maneira que, no caso português, deu-se a conversão forçada de judeus e mouros sem que, contudo, ficassem eles sujeitos a qualquer inquisição, ao contrário da Espanha, onde, antes de se proceder à conversão forçada de judeus, em 1492, ou de mouros, a partir de 1502, já havia se havia instalado o poderoso tribunal do Santo Ofício desde os anos 1470.

Seja como for, também os mudéjares portugueses, doravante chamados, na linguagem oficial de cristãos mouriscos, cristãos novos de mouros5 ou, mais vulgarmente, de mouriscos, passaram a gozar de certa proteção nos tempos manuelinos. Maria Filomena Barros afirma, a propósito, que os mudéjares que ficaram em Portugal após 1497 puderam conservar seu nome original, foram poupados dos trâmites da conversão e foram mesmo contemplados com privilégios. (6)

Apesar da tolerância do rei para com diversos mudéjares portugueses, diz-nos a citada autora que grande parte deles, senão a maioria, deixaram o reino. Aliás, as “aljamas e moros del reyno de Portogal” (7) solicitaram permissão aos Reis Católicos para se assentarem no reino vizinho, no que tiveram êxito. A maioria dos mudéjares portugueses foi, possivelmente, engrossar a já numerosa comunidade mudéjar espanhola, destinada a se tornar mourisca no século seguinte, ou então, retornou para as terras do Islão e, Portugal ficou praticamente sem a sua tradicional comunidade mudéjar. Paradoxalmente, enquanto os judeus de Espanha em grande parte se refugiavam em Portugal, onde seriam convertidos à força por D.Manuel, os mudéjares portugueses passavam à Espanha, onde também seriam, no século XVI, convertidos à força pelos Reis Católicos que os abrigaram.

O maior paradoxo de todos, no entanto, reside, porém, em que o problema mourisco em Portugal, inaugurado em 1496-97, se deslanchou exatamente quando o reino perdeu sua tradicional comunidade mudéjar, o que nos leva à importante questão de saber qual era, afinal, a população de origem muçulmana que ali veio a ser considerada como mourisca.

Este foi um ponto chave do nosso trabalho, em especial porque contribuiu para elucidar a enorme diferença que de fato havia entre os mouriscos de Espanha e Portugal. No caso espanhol, Míkel de Espalza sublinha: “son moriscos los musulmanes hispánicos obligados a bautizarse y a ser cristianos en la sociedad española de los siglos XVI-XVII” (8). Eram, portanto descendentes dos antigos mudéjares dos vários reinos hispânicos, acrescentados, no final do século XV, pelos muçulmanos de Granada e pelos contingentes de mudéjares lusitanos a que fizemos menção. No caso português, os mouriscos eram estrangeiros de várias procedências, sobretudo da região magrebina, que vinham ingressando em Portugal, na condição de escravos, em meio à expansão marítima.

O marco desta diáspora muçulmana em Portugal é, sem dúvida, a tomada de Ceuta, em 1415, seguida da expedição a Tânger, em 1437, e sobretudo dos feitos de D.Afonso V, o Africano, com a tomada de Alcácer Ceguer, em 1458, Arzila e Tânger, em 1471, ano da fundação do Reino do Algarve de Além Mar, marco institucional da presença portuguesa em África (9). Mais tarde, após a circunavegação da África, já no reinado de D.Manuel, Portugal chegaria à Índia, alargando para o oriente seu vasto império ultramarino (10). De África, especialmente do Marrocos, vinham mercadorias diversas, negociadas nos portos de Safim e Azamor onde os portugueses estabeleceriam praças militares, como também o fariam em Mazagão. Da Índia, viriam as cobiçadas especiarias, no comércio garantido pela rede militar de Goa ou Diu. Mas tanto do Norte da África como do Oriente, viriam também escravos, em sua maioria muçulmanos, principal fonte dos mouriscos do reino, com destaque para os magrebinos.

Portanto, o conceito de mourisco por nós adotado para o caso português difere muito do conceito utilizado pelos historiadores dedicados aos moriscos espanhóis. Se para eles, os mouriscos eram os descendentes de mudéjares nascidos na Península Ibérica, em nosso caso entendemos que o termo mourisco abrangia muçulmanos de origem diversa, batizados no cristianismo, inclusive os nascidos em Portugal. Na prática, a maioria era mesmo estrangeira, sobretudo do Norte da África, ao contrário dos mouriscos espanhóis, entre os quais predominavam os nascidos na Península.

Não obstante a pobreza e degradação que, no geral, marcavam a condição dos mouriscos no reino português, incluindo os forros, é-nos possível constatar, mesmo no interior de nossa amostragem de 349 réus processados pela prática do cripto-islamismo, alguns mouriscos que receberam mercês e privilégios e outros e outras que desfrutavam de certas posses que os fazia, por vezes, passar por gente rica.

Houve mesmo casos em que alguns mouriscos alcançaram mercês e posições que tangenciavam privilégios de “fidalgo” e certa respeitabilidade em termos de status. Entre eles, vale citar Henrique Luis, mourisco, turco de nação, refugiado político, que tinha sido Alcaide de Arzila e também Capitão de Tremecem na África. Na altura de 1554, quando foi processado, tinha moradia dada pelo Rei (11). O Alcaide Bastião Quaresma, mouro de nação, viera para o Reino se converter, fora mandado ao Convento de São Roque onde vivia as expensas do Rei e, por volta de 1577, tinha por criado pessoal o mourisco Pero de Carvalho (12). Um certo mourisco forro de Lisboa era conhecido como Dom Alberto e era filho do xeque de Suz, o que não o impediu de ser processado pelo Santo Ofício em 1590 (13).

É possível dizer que, de maneira geral, tais mouriscos que desfrutavam de privilégios eram homens descendentes de autoridades islâmicas refugiadas em Portugal, funcionários de xarifados, homens que gravitavam em torno de mouros de sinal cuja conversão era politica e simbolicamente importante, daí os privilégios concedidos. Com efeito, nas entrelinhas de vários processos, encontramos, entre fatos narrados ou testemunhas intervenientes, vários outros mouriscos com ares de nobilitação, a exemplo de Dom Pedro, mourisco que estava de partida para Safim (14), ou D.Luís e D.João, ambos mouriscos que estavam de partida para a Índia, frequentavam a casa de Muley Mafamede, o aliado de D.Sebastião, e ainda dormiam “contra natura” com o mourisco Felipe, tudo na casa do xarife destronado do Marrocos (15).

A existência desta espécie de “fidalguia mourisca” se comprova, ainda, nos códices da Chancelaria de D. Manuel e D.João III e no Corpo Cronológico, que ora estamos pesquisando, nos quais, à semelhança de Espanha, encontramos mouriscos que foram contemplados com mercês e privilégios, proventos monetários, peças de roupa e isenções de certas obrigações, amiúde por terem auxiliado Portugal nas almogaverias praticadas no Norte da África (16). Assim ocorreu com Francisco de Menezes, o qual foi feito Cavaleiro por um Alvara de D. Duarte de Meneses, capitão da cidade de Tânger, cuja a confirmação se deu em 17 de março de 1513, por D. Manuel. No seu Alvara, o referido capitão, afirmava que o mourisco sempre fez “bem de sua pesoa nas cousas em que se com elle achou per seu merecimento o fizera cavaleiro”. O mourisco Francisco, ainda recebe del rei “graça e merce…avendo respeito aos serviços que nos tem feyto e aos que diante esperamos receber…da tença annual dou mil reais em dinheiro e huum moio de trigo…e se lhe atribui todas as onras, privilegios, liberdades que se gardão e devem gardar aos cavaleiros”.

Também os mouriscos António Fernandes, António Vermejo, António Perez e Filipe Fernandes, moradores de Safim, foram armados Cavaleiros pelo capitão da respectiva cidade, D. Rodrigo de Castro e, tiveram suas cartas de confirmação de cavaleiros dadas por D. João III, por ações militares em favor dos portugueses. A guisa de exemplo, citamos algumas de suas ações: Antonio Fernandes, defendeu bravamente ( nas guardas e repiques) a cidade de Safim, quando o Alcaide Bodibeyra e seus homens “correra a dita cidade de Safim com muita gente de cavalo e de pee omde lhe mataram muitos mouros e cavalos e lhe feriram muita gemte e o dyto Alcaide se for a desbaratado”. Ja Antonio Perez, partira de Safim em 1541 para a “aguada de Caraball, seys leguas da dita cidade cõ gemte de cavallo e da ordenança haonde pelejarão cõ Lazemell Dalila e Guarabia e os desbaratarão haonde matarão e catyvarão muitos mouros e tomarão muitos cavalos”. Felipe Fernandes, por sua vez, participara com o capitâo de Safim de “huã peleja que ouvera com o irmâo do Alcaide Bodybeira e outros Alcaides do Xarife que tinham cercado a dita cidade de mar a maar onde lhe matarão e feriram muitos mouros / e os desbaratarão e poseram em fugida”. Finalmente, Jorge Fernandes, armado cavaleiro pelo capitão de Arzila, D. Manuel Mascarenhas, pela sua bravura, quando o capitão, “pasara com D. João de Menezes nas portas da cidade de Tangere o rio de Larache e tomarão huã aldea e huum aduar de mouros que estavão da bamda dalem de que trouxerão cento e sesenta e duas allmas e matarão dozentas e asy trouxerão mill e trnta cabeças de gado vacuum e trimta e sete eguoas”.

Portanto, nos parece que a luta contra os infiéis no norte da África e a expansão da religião cristã se tornaram o grande motor, que nesse periodo, moveram os reis portugueses a concederem títulos, graças e mercês a aqueles que se dispusessem a lutar nas terras do Islão.

Essa concessões e privilégios, dadas aos moradores das fortalezas norte-africanas fariam parte das “Cavalarias-Servitorias”, que a fazer fé em Damião de Gois ( Cronica de D. Manuel) seriam uma instituição Manuelina.

Isso vem demonstrar,por um lado poder dos capitães do Norte da África e o grau de nobreza , que podia ser concedido pelo rei a pessoas não nobres. Também marca a concessão da tença, pagas com base nos rendimentos da Mesa mistral da Ordem de Cristo sem necessariamente ser acompanhada de um hábito. Mas penso ser, cedo ainda afirmar, pelo tempo de pesquisa, que não tenha ocorrido alguma exceção e talvez “essa gente de sangue infecto”, no meu caso, um mourisco possa ter recebido o Hábito da Ordem de Avis, de Santiago, mas principalmente da Ordem de Cristo.

Os bailadores de mourisca, por sua vez, também receberam mercês monetárias de D.João III e de D.Catarina. João Mendes, moço da estrebaria do rei, dele recebeu mercê de 2.000 reais, em 1541. Outro mourisco, que conduzira cativos para Portugal, fora agraciado pelo rei com peças de vestuário avaliadas em 250 reais.

Entretanto, maior destaque nos parace ser algumas concessões do período Felipino: mais uma vez, à guisa de exemplo citamos a Carta de Felipe II, escrita em 1618 e 1621, ao Bispo do Porto e ao Bispo de Coimbra. Na primeira, o rei pede ao Bispo do Porto que recolhesse em sua casa o mourisco Luis de Almeida e o ocupasse no seu serviço, para que com a sua ajuda se possa sustentar com sua mulher e filhos , enquanto que na segunda recomenda ao Bispo de Coimbra que também acolhesse em sua casa o mourisco D. Pedro Manuel, “ pessoa de qualidade, homem honrado, catequisanmdoo e ensinandolheas cousas da fee” pelo tempo de dois anos, ao fim dos quais “mo avisarei para mandar ver o que convira fazer com elle no modo de vida que ha de ter com que se possa ajudar a sustentar”
Maior concessão também foi dada ao mourisco Agostinho Correa (1621), que foi agraciado por mais cinco anos com a mercê de Felipe II de “dous reales por dia” com a obrigação de servir nas armadas da Coroa de Portugal “ e se lhe pagara com certidão do capitão com que se embarcar”.

Apesar de estarmos ainda no início da pesquisa nos arquivos europeus, e não conhecermos tão bem os “moriscos espanhóis” quanto os mouriscos portugueses, penso que vale arriscar e começar a pensar numa relativização da Expulsâo dos Mouriscos da Península Ibérica ordenada pelo próprio Felipe II entre 1609 e 1614.

Voltando à documentação inquisitorial, encontramos, não entre os mouriscos processados, mas entre personagens coadjuvantes em vários enredos, mouriscos exercentes de ofícios mais nobres, e mesmo letrados, o que faz presumir serem eles, alguns dos descendentes da comunidade mudéjar que optou por permanecer no reino mesmo após a conversão forçada de 1496. É o caso de Simão Carvalho, mourisco que actuava como solicitador das partes, morador em São Vicente de Fora, sendo, pois, advogado17. Talvez fosse o caso de Diogo Fernandes e de Francisco Idabrum, ambos rendeiros da “imposição do vinho”, ou seja, haviam arrematado o direito de cobrar a sisa que recaía sobre os vinhateiros instituída por Carta Régia de 1522 (18). No caso de Simão Carvalho, homem de letras jurídicas, ou no dos arrematantes de direito impositivo régio em hasta pública, é-nos difícil supor que se tratavam de mouriscos alforriados da escravidão, senão de descendentes da antiga mouraria lisboeta estudada por Maria Filomena Barros.

De todo modo, seja entre os sentenciados de nossa amostragem, seja entre testemunhas ou acusadores, encontramos exemplos de mouriscos detentores de algumas posses. Homens e mulheres com pequenos negócios ou praticantes de algum ofício especializado, os quais por vezes eram vistos pela própria comunidade como mouriscos ricos ou mouriscos abastados. Alguns tinham amealhado seus recursos ainda no cativeiro, logrando juntar pecúlio para a alforria, além de iniciar algum negócio. Foi o caso de Afonso Fernandes, mourisco forro de Azamor, mais um dos alarves capturados em almogaverias, que havía sido cativo do Duque de Aveiro, forrado por 20 mil réis, que vivia do arrendamento anual de sua vinha e olival em Setúbal (19). Francisco Gomes, que não foi processado, é um dos mouriscos pertencentes à comunidade do Algarve, mais especificamente da cidade de Lagos, mencionada por Romero de Magalhães e Borges Coelho: casado, taverneiro, era tido pelos mouriscos por “homem rico que tem huã casa sobre o muro de banda do mar…o qual lhes dava de comer por seu dynheyro…” (20).

Dentre os mouriscos forros da estrebaria del rei, embora a maioria dos “moços de cavalariça” ou “moços de espora” fossem pobres, alguns, dentre eles, logravam juntar valioso pecúlio e mesmo enriquecer. Bom exemplo disso dá-nos António de Abreu, moço de estribeira del rei, primo de Duarte Fernandes, o marabuto ou cacis da comunidade mourisca de Lisboa. António de Abreu possuía uma casa em Almeirim, outra em Lisboa, criados e escravos a seu serviço, deixando tudo registrado em testamento. Um das testemunhas de seu processo inquisitorial, mencionou três criadas que Abreu tinha em casa; outra testemunha mencionou “huum seu negro”, que por sinal lhe fugiu; uma terceira mencionou que António de Abreu emprestara 3 mil réis a um cristão para comprar uma besta (21). Não resta dúvida, portanto, que o primo do marabuto de Lisboa era um mourisco de posses.

Outro mourisco abastado era António Alberto, um dos taverneiros lisboetas de nossa amostragem de sentenciados, o que bem nos mostra que, dentre esses negociantes, alguns podiam enriquecer. António Alberto era tido como notoriamente “homem rico e abastado” que tratava com vinhos. Possuía casas de aluguel que lhe rendiam cerca de 14 mil réis por ano; era capaz de comprar de uma só vez quarenta pipas de vinho; arrendava uma quinta em Torres Vedras por 15 mil réis anuais; era credor de dívidas que montavam a “pouco mais ou menos” 60 mil réis; possuía recursos para comprar uma casa avaliada em cerca de “trezentos e tantos mil réis”, que só não comprou por estar o imóvel embargado (22).

Os exemplos expostos neste texto nos permitem matizar o quadro de pobreza e degradação que marcavam as condições sociais da comunidade mourisca no Portugal quinhentista. Tivemos que, para tanto, recorrer a casos de mouriscos não sentenciados, embora alguns indivíduos de nossa amostragem forneçam bons exemplos de mouriscos abastados. De todo modo, pode-se dizer que alguns mouriscos alcançaram mercês e privilégios, enquanto outros juntaram pecúlio e prosperaram em seus negócios. Mas, a bem verdade, a confiar na representatividade de nossa amostragem, poucos conseguiram superar as difíceis condições que marcavam a vida de cativos e de forros no século XVI.

Fonte: https://is.gd/D5Gc22

Bibliografia:

1 Em relação a história das origens do Islã ver: Bernard Lewis – Os árabes na história. Lisboa: Estampa, 1982;Robert Mantran – Expansão muçulmana: séculos VII – XI. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1977; André Miquel – O islame e a sua civilização: séculos VII – XX. Lisboa: Ed. Cosmos, 1971; Dominique Sourdel e Janine Soudel- Thomine – La civilización clásica del Islam. Barcelona: Ed. Juventud, 1981 e Maxime Rodinson  Maomé. Lisboa: Caminho, 1992.

2 José Pedro Machado – Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1977. Vol. 4º, p.176. Sobre os mudéjares no reino de Portugal ver: Maria Filomena Lopes de Barros – A comuna muçulmana de Lisboa: sécs. XIV e XV. Lisboa, Hugin, 1998.

3 Ordenações Manuelinas . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. Livro II, tit. XLI, pp. 212 – 214.

4 Ordenações Manuelinas, Livro II, 1984, Título XLI, pp. 212-214.

5 Ordenações Manuelinas, Livro V, 1984, Título LXXXII, pp. 244-246.

6 Maria Filomena Lopes de Barros, ob. cit., p. 155.

7 Idem, Ibidem, p. 156-157.

8 Míkel de Espalza, Los moriscos antes y después de la expulsión. Madrid, Ed. MAPFRE, 1994, p. 16.

9 António Dias Farinha, “Norte de África”, in Francisco Bethencourt & Kirti Chaudhuri (dir.), História da Expansão Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, vol. 1, pp. 118-136

10 Kirti Chaudhuri, “O estabelecimento no Oriente”, in Francisco Bethencourt & Kirti Chaudhuri (dir.), ob. cit., pp. 163-191.

11 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo n.° 10379.

12 Idem, Ibidem, processo n.° 8346.

13 Idem, Ibidem, processo n.° 6623.

14 Idem, Ibidem, processo n.° 5488.

15 Idem, Ibidem, processo n.° 10867

16 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista:duas culturas e duas concepções religiosas em choque, Lisboa, Hugin, 1999, pp. 81-83.

17 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo n.° 10867.

18 Idem, Ibidem, processo n.° 10837.

19 Idem, Ibidem, processo n.° 7457.

20 Idem, Ibidem, processo n.° 10849.

21 Idem, Ibidem, processo n.° 10867.

22 Idem, Ibidem, processo n.° 10837.