Texto de: Guilherme Freitas

Introdução

O presente artigo tem como ênfase tratar a questão mourisca na Espanha, mais especificamente no que tange à sua relação com a Inquisição Espanhola. Tal texto não tem como foco esgotar o assunto, mas sim ser um breve resumo do trato Inquisitorial com os mouriscos da região. Para isso, usaremos diversas fontes acadêmicas e de renome na área da Inquisição Espanhola, que serão devidamente referenciadas em eventuais notas de rodapé e no final do texto em um trecho específico para a exposição da bibliografia utilizada.

Sem mais delongas, ao texto:

Quem eram os mouriscos?

Para poder analisar essa questão do objetivo do artigo, primeiro se faz necessário definir quem era considerado um “mouro’’ e um “mourisco’’.

Conforme definição dada por Henry Kamen (2014), o termo mourisco é uma designação do castelhano para um muçulmano convertido para o cristianismo, assim como seus descendentes. Além disso, Kamen nos fornece a definição de “mouro” (moro), que seria um muçulmano.

Não somente isso, ainda nos fornece a definição de moçárabes e mudejáres. O primeiro trata-se de cristãos que vivem em território islâmico, enquanto o segundo é o oposto, ou seja, muçulmanos vivendo em territórios cristãos.1

O Santo Ofício e os Mouriscos

Definido quem foram os mouriscos, devemos nos ater agora no que diz respeito ao interesse do Tribunal da Inquisição nesses indivíduos, que seria, em resumo, manter a ortodoxia da fé católica.

Ora, para que alguém pudesse ser julgado pelo tribunal inquisitorial, era primeiro necessário ser católico, portanto, um mourisco (alguém convertido ao catolicismo) se adequava perfeitamente ao “requisito mais básico” para que pudesse ser um réu em potencial na Inquisição.

Apesar do foco principal da Inquisição Espanhola ter sido os conversos do judaísmo (marranos), os mouriscos também foram um grande alvo dos Inquisidores, em que pese os mesmos não causassem os mesmos problemas e distúrbios sociais iguais aos “judaizantes”, como atesta o historiador católico Cristian Iturralde (2016)2.

Mas não devemos nos enganar, já que não é porque a perseguição aos mouriscos tenha sido muito menor que a dos judaizantes que demonstre que ela foi insignificante, pois de fato não foi.

Nos dizeres de H.R Loyn (1990):

Os judeus, prósperos e numerosos, eram um óbvio bode expiatório para os infortúnios castelhanos, e os pogroms, a partir de 1391, redundaram em conversões semiforçadas (os conversos, por sua vez, tornaram-se suspeitos e perseguidos), no estabelecimento da Inquisição espanhola (1478) e na expulsão dos judeus da Espanha.”3

Acrescentamos aos dizeres de exímio autor a situação dos mouros e mouriscos, uma vez que os mesmos também sofreram por conversões forçadas e também foram alvo de “pogroms”, que como atesta A.S Turberville, não é possível dissociar dos ensinamentos da Igreja neste período.

Ainda segundo Loyn, a Inquisição pode ter atribuída sua origem ao período Medieval, mais especificamente à bula Excommunicamus de Gregório IX em 1231, mas tal Tribunal foi “reativado” em território espanhol pelos Reis Católicos, Fernando e Isabel, que em parte valeram-se da Inquisição como um instrumento adicional do Estado. Apesar de muitos historiadores concordarem com o abuso dos Reis Católicos em diversos aspectos, alguns historiadores com viés hispanista, como é o caso de C. Iturralde, nos mostram um lado um pouco diferente da relação do Estado com a Inquisição, assim como dos Reis Católicos com as minorias religiosas, principalmente com os judeus.

Em resumo, não obstante houvessem conflitos de interesse em alguns momentos entre os Inquisidores e o Estado Espanhol, em geral trabalhavam em conjunto e em constante harmonia.

Porém, para entendermos a Inquisição primeiro é necessário entender o método inquisitorial, embora houvessem diferenças no procedimento das Inquisições medievais com a Espanhola. Entretanto, o sistema inquisitorial surge diretamente do Direito Canônico.

Conforme John Gilissen (2003), um dos maiores historiadores do Direito de todos os tempos, o Direito Canônico é um direito religioso, assim como o direito hebraico, o hindu e o islâmico. Por sua vez, ele retira suas regras dos preceitos divinos revelados nos livros sagrados: o Antigo e o Novo Testamento. É, portanto, o direito de todos os que adotam a religião cristã, onde quer que se encontrem.

Ainda nas observações de tão brilhante autor, a influência do Direito Canônico sobre o direito laico será, de resto, “função das relações entre a Igreja e o Estado e da extensão da competência dos tribunais eclesiásticos”.4

As contribuições para o Direito Moderno oriundas da legislação canônica são várias, tanto na questão do Direito Civil, conforme atesta Cláudio Brandão (2017) quando diz a respeito da moderna teorização das personalidades jurídicas, assim como para o Direito Penal5.

Segundo o Oxford Dictionary of Law, o procedimento inquisitorial é um sistema de justiça criminal em que a verdade é revelada através de inquéritos aos fatos conduzidos pelo juiz. Ainda segundo a mesma fonte, nesse sistema, o juiz é quem toma a iniciativa de conduzir o caso, ao invés da promotoria ou da defesa; o seu papel é conduzir as investigações, examinar as evidências e interrogar as testemunhas. Tais funções serão um pouco diferentes na Inquisição Espanhola, uma vez que veremos uma figura muito semelhante ao moderno promotor de justiça.

Apesar de alguns pontos positivos legados ao Direito Moderno, havia muitos pontos negativos do sistema inquisitorial, inclusive já superados pelo nosso atual Direito, que abordaremos mais a frente.

Voltando para a questão moura e mourisca, conforme atesta uma das maiores autoridades em Inquisição Espanhola, Arthur Stanley Turberville, após as conversões forçadas dos judeus, houve a dos muçulmanos.

Era natural de se esperar que Fernando e Isabel (os Reis Católicos) quisessem conquistar o último resíduo muçulmano independente da Espanha. Nesse sentido, a submissão do reino de Granada levou ao menos nove anos de muita luta no período de 1483 à 1492. Como ocorreu em diversos momentos da história, quando a conquista é muito difícil, é outorgado aos conquistados algumas condições um tanto quanto favoráveis, e não foi diferente nesse caso.

Em 1491, quando a cidade de Granada foi capturada, foi feito um compromisso entre os Reis Católicos (assim como seus sucessores) a proteger os bens, costumes sociais e práticas religiosas de seus habitantes.

É nesse contexto que surge o arcebispado de Granada, confiado ao bispo de Ávila, Hernando de Talavera, que era inclusive confessor da Rainha. Talavera é normalmente descrito como um homem muito bondoso e inteligente, que combateu o “proselitismo forçado” contra os muçulmanos. Por sua vez, ele aprendeu a língua árabe e incentivou que seus ajudantes e missionários também aprendessem, ganhando assim confiança dos mouros, obtendo grande êxito em seu trabalho. Infelizmente tal sucesso não foi o suficiente para os reis, assim como para o arcebispo de Toledo, Francisco Jiménez de Cisneros, homem também de vastíssimos conhecimentos.

Uma vez inspirados por Cisneros, foi empreendida a conversão forçada dos mouros, isso tudo apesar das garantias recém mencionadas e também das violentas revoltas e distúrbios causadas por tal empreendimento.

Quando a região se encontrava em um caráter já avançado de cristianização, foi publicado em Julho de 1501 uma ordem proibindo os mouros de outras partes da Espanha de entrar em Granada, sob a justificativa de que os mesmos não contaminassem os “cristãos novos”. Dessa medida sucedeu uma mais drástica, declarando que, como Granada havia sido praticamente varrida de “infiéis”, seria vergonhoso permitir aos muçulmanos que continuassem vivendo em outras localidades da Espanha. Por conta disso, foi ordenado que todos os muçulmanos de Leão e Castela abandonassem o reino antes de abril de 1502, com algumas exceções, como meninos de quatorze anos e meninas menores de doze.

Ora, uma vez que lhes era proibido entrar em Aragão ou Navarra, assim como se reunir com seus “correligionários” do norte da África, esse édito foi muito difícil de ser levado a cabo no que tange à questão da imigração, sendo assim na prática um “édito de conversão forçada”, como bem assinala Turberville6.

No que diz respeito a Aragão, o rei Fernando teve de se comprometer a não forçar conversões à população islâmica, uma vez que os poderes das cortes locais permitiam colocar um certo “freio” no poder da autoridade real. Porém, conforme veio à tona a guerra das Germanías (1519-1523), um conflito social entre plebeus e nobres, muitas matanças de mouros foram efetuadas pelos plebeus, uma vez que eles eram fiéis aos seus senhores, obrigando-os assim a se batizarem na fé cristã católica.

Durante esse período, Carlos V (Carlos I de Espanha) sobe então ao trono em 1520. Por fim, em 1525, Carlos publicou um édito ordenando a expulsão de todos os “maometanos” de Aragão, Catalunha e Valência. Assim como em 1502, as restrições impostas à locomoção (êxodo) dos muçulmanos levaram à inúmeras conversões forçadas na prática. Os muçulmanos que optaram por se batizarem ao invés do exílio são os que chamamos de mouriscos.

É justamente após essas conversões forçadas que podemos estudar mais detalhadamente o papel do Tribunal do Santo Ofício, uma vez que o mesmo possuía jurisdição somente sobre os cristãos, sendo necessário, portanto, ser batizado na fé católica para que pudesse ser julgado pelo Tribunal.

Porém, para que alguém fosse julgado pela Inquisição, era necessário haver no mínimo um certo grau de suspeita de “crime de heresia”, isto é, alguma crença manifestada por um fiel dito católico e que destoasse dos ensinamentos da Igreja de Roma.

Naturalmente que tais mouriscos iriam eventualmente aparecer no banco dos réus da Inquisição, uma vez que muitas dessas pessoas não possuíam a fé cristã em seu coração, mas sim o Islã. O “drama dos mouriscos”, como aponta Bartolomé Bennassar (1984), era o de que eram acusados de não aderir a uma religião que lhes era estranha, e no seio da qual não haviam sido educados.

Seus comportamentos, portanto, eram reprovados pelos cristãos velhos7 e pela Inquisição, uma vez que suas atitudes poderiam ser consideradas como práticas “mouras”, ligadas à religião islâmica. Essas práticas consideradas suspeitas variavam, poderia ir desde um nome árabe até uma dança típica ou uma culinária tradicional. Exemplo disso é o caso de Juan de Burgos de 1538, em que o mesmo será levado diante do Tribunal de Toledo porque organizava em sua casa reuniões aonde se iam “a noite dançar zambra e comer cuscuz”.

            Um dos aspectos da religião islâmica em que os mouriscos mais faziam questão de respeitar eram os concernentes às prescrições alimentícias. Isso não somente dizia respeito às carnes que os muçulmanos comiam, mas como os animais eram abatidos (carne halal, isto é, permitida). Um caso pitoresco foi o de Gabriel Madroño, surpreendido quando ia degolar uma ovelha em um campo conforme o rito islâmico. Essa observância o levou à prisão inquisitorial.

            Alguns hábitos proibidos pela religião islâmica aparentemente não foram tão respeitados pelos mouriscos, uma vez que a abstenção de vinho não era praticada por muitos, como podemos observar em Granada.

            Porém, no que tange às outras prescrições religiosas, como as cinco orações diárias, os mouriscos seguiam rigorosamente, não importava aonde se encontravam, realizando o salat até mesmo no cárcere.

            O período do Ramadan também era muito respeitado pelos mouriscos. Leonor Hernandez foi denunciada por ter jejuado e observado a lua no fim do mês; além disso, seu marido havia ido até a cidade para avisar a respeito da Festa do Sacrifício (Eid al-Adha).

Pelo fato da religião islâmica ser muito rica, não iremos nos ater a todas as obrigações que prescreve aos seus fiéis, mas vale lembrar que um dos cinco pilares do Islã é o Hajj, isto é, a peregrinação à Meca, em que todo fiel deve realizar ao menos uma vez na vida. Desnecessário dizer que os mouriscos em geral nunca realizaram tal peregrinação, com exceção de um relato de um mourisco aragonês nos finais do século XVI, ou nos primeiros anos do século XVII. As dificuldades de tamanha empreitada são os motivos principais pelo qual a maior parte morreu sem nunca ter peregrinado.

As relações dos cristãos velhos com os mouriscos eram de mútua desconfiança. Não havia, em geral, como os mouriscos evitarem uma relação com os cristãos, uma vez que estavam inseridos no mesmo ambiente.  Às vezes um chegava a ver o que se passava na casa do outro.

Ainda segundo Bennassar, houveram muitas denúncias abusivas por parte dos cristãos a respeito de palavras que pareciam totalmente inocentes.

Além das práticas citadas anteriormente para se identificar um mourisco, havia também a questão da língua: ou os mesmos falavam em árabe ou possuíam dificuldades com o castelhano. Havia também a questão de um nome (já citado), sobrenome ou apelido oriundos da língua árabe pelo qual eram conhecidos.

Em alguns casos a pertença ao Islã era tão óbvia que não havia como esconder. Para melhor ilustrar, citamos dois exemplos utilizados por Bartolomé Bennassar: o de uma mulher que foi surpreendida em um pátio enquanto realizava a oração islâmica, e o de um transeunte que avistou um menino nu que limpava uma jarra, notando assim que o mesmo era circuncidado. Tais casos demonstram que muitas vezes os mouriscos eram identificados quase que instantaneamente.

Não obstante, como citado anteriormente, as questões alimentares eram de grande estima para os mouriscos. Sendo assim, muitas vezes foram convidados por um vizinho (cristão velho) para participarem de alguma refeição. Diante disso, muitos mouriscos não conseguiam esconder sua repulsa por alguns pratos, principalmente aqueles produzidos com carne de porco. Juan Herrador, de Alcalá, recusa-se a comer nos pratos que outrora continham tal tipo de carne, assim como irá se recusar também a usar facas que tenham cortado o porco. Indo em sentido contrário, Diego García aceita confiantemente o convite de seu vizinho, uma vez que se tratava do período da Quaresma, e em tese não seria convidado a comer “toucinho”.

Outro fator interessante dos hábitos mouriscos que lhes garantiram uma passagem pela Inquisição são as famosas expressões islâmicas, dentre elas por exemplo, valer-se do nome do profeta Muhammad (Maomé) por algum motivo. Nesse caso temos o exemplo de Joana, uma escrava de Málaga, que sobe em uma cadeira enquanto segurava uma bacia contendo água quente, e vendo-se em perigo de cair invoca o nome do Profeta para que a ajude…Porém, fez isso em voz alta! Que erro!

Bartolomé Bennassar cita mais um caso, como o de um homem que para dar mais confiança ao que dizia, usou a seguinte expressão “pela verdade de Muhammad” (“por la verdad de Mahoma”)

Diante de tudo o que já foi exposto, ainda não devemos nos enganar: muitos mouriscos foram hostis aos cristãos, e muitas vezes até com alguns sacramentos católicos, porém grande parte disso pode ser explicado com base no fato de serem obrigados a aderirem uma fé que lhes era estranha, assim como o fato de terem de aguentar inúmeras zombarias e hostilidades com o Islã e o Profeta. Tais comportamentos muitas vezes eram mútuos, já que muitos mouriscos respondiam à altura das provocações feitas por alguns cristãos.

A maior parte dos cristãos era hostil aos mouriscos, tendo o desprezo, o medo e o ódio como sentimentos predominantes. O povo comum não conseguia evitar também a inveja, uma vez que os mouriscos conseguiam um certo enriquecimento com o comércio ou com habilidades artesanais. Além disso, reprovavam o fato de serem prolíficos, trabalhadores e até mesmo “avarentos”.

Às vezes esses sentimentos saíram do interior das pessoas, partindo assim para o campo exterior, gerando violências e até mesmo matanças. Exemplo disso é o que ocorreu em Granada no dia 02 de abril de 1569, em que foram assassinados 110 mouriscos no interior da prisão da Audiência.

Não somente isso, havia também outro tipo de aversão: racial. Para os cristãos velhos, os muçulmanos procediam de uma raça bastarda, isto é, descendiam de Ismael, filho da escrava Agar, enquanto que os cristãos descendiam diretamente de Isaque (Isaac). Tal concepção racista, assinala Bennassar, foi uma justificativa para os “estatutos de limpeza de sangue” que sofreram os mouriscos, apesar de não ter sido empregado com tanto rigor igual no caso dos judeus. Os judeus ainda despertavam um sentimento de repulsa maior.

Como dito no começo do texto, a Inquisição se preocupava com aqueles que manifestavam a fé católica, mas caíam em “erros de fé”. No caso dos mouriscos, em alguns momentos da existência do Tribunal do Santo Ofício, o número de julgamentos dos mesmos chegou a ultrapassar mais da metade dos casos, como foi a situação do tribunal de Saragoça, que viu entre os períodos de 1540-1599, 55,3% de seus julgamentos sendo por delitos de “maometanismo”. Já no período de 1560-1614, o mesmo tribunal apresenta os números de 56,5%, enquanto que o tribunal de Toledo representa 12,9% de seus autos contra os hereges acusados de mesmo crime.

Um acontecimento interessante que ocorreu no último período citado, é o fato de em 1561 um comissário da Inquisição de Valência, Gregorio de Miranda, pediu para o rei Filipe II que enviasse tropas para desarmar a população mourisca. Apesar dos protestos por parte da nobreza de Valência de que o desarmamento iria priva-los da ajuda dos mouriscos em suas milícias particulares, o rei atendeu ao pedido do comissário. Portanto, em Fevereiro de 1563 foi ordenado aos mouriscos de Valência que entregassem suas armas, e os oficiais do rei confiscaram (ou receberam) cerca de vinte mil lanças, bestas, espadas, arcabuz (uma antiga forma de arma de fogo portátil) e mosquetes.

Já no ano seguinte, a Inquisição de Valência iria reafirmar sua autoridade com uma austera proclamação que ordenou a todos os mouriscos, adultos e crianças, acima de sete anos de idade, a comparecer às missas regularmente, assim como obrigou os párocos locais a “testar” seus paroquianos mouriscos a respeito de seus conhecimentos sobre o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo etc.

A nova ênfase repressiva serviu à várias agendas, conforme atesta Matthew Carr. Mouriscos foram enviados às galeras, provendo assim mão-de-obra essencial para a frota espanhola no Mediterrâneo, enquanto que as confiscações de bens ajudou a pagar os salários e demais gastos em momentos de dificuldades financeiras do Santo Ofício.

Segundo E. William Monter, citando José María García Fuentes (La Inquisicíon em Granada), diz que nas cartas acordadas de Aragão constava uma carta do rei Filipe II de agosto de 1560, ordenando que “mouriscos sejam enviados para as galeras, como é costume em Saragoça”. A Inquisição de Granada, cujo distrito continha tantos mouriscos como em Aragão, condenou vinte deles para as galeras naquele ano.

Justiça seja feita, nem todos os cristãos ou habitantes desses locais concordavam com as políticas Inquisitoriais ou do Estado. Exemplo disso é a família Mendoza, cujos membros ocupavam altos postos e valiam-se de sua influência para proteger os mouriscos da Inquisição e interceder por eles nas suas lidas com a Igreja e o Estado. Não somente eles, mas nobres de Valência também manifestaram oposição à Inquisição, sendo objeto de reclamação de oficiais da Inquisição em 1566, dizendo que “diariamente perseguem os comissários e familiares que o Santo Ofício tem em suas terras, expulsando-os e dizendo-lhes que não querem a Inquisição em seu território.”. Há ainda oposição à Inquisição em outras localidades, como em Hornachos, que possuía uma população considerável de mouriscos.

Os primeiros anos de Inquisição Espanhola foram particularmente duros e violentos, conforme atesta Bennassar ao utilizar a expressão “la crueldade de los comienzos”. O mesmo autor cita alguns exemplos:

  • Quando possível, se recuperava o cadáver do herege e o queimava;
  • A reconciliação e a relaxação eram acompanhadas da confiscação de bens (mouriscos sofreram muito com a questão da confiscação de bens, diga-se de passagem);
  • Cita ainda um dado de que 40 de 100 pessoas julgadas (en persona) pelo tribunal fora do tempo de graça (período dado pela Inquisição para que confessassem seus pecados, ganhando assim penas mais leves) eram condenadas à fogueira;
  • É citado o caso de famílias inteiras que foram dizimadas, como o caso de Juan Vives, que teve nove de seus familiares mortos na Inquisição (esse em particular não é um caso de “maometanismo”, mas sim de “judaizantes”);
  • Nos primeiros tempos, o procedimento não parece ter oferecido todas as garantias desejáveis aos acusados;
  • Citando Beinart, nos conta que foram numerosos os enviados à fogueira por rumores mais ou menos fundados, cujos advogados de defesa conseguiram livrar já muito tarde, obtendo então finalmente resultados favoráveis.

Conforme um dito da época, “um homem pode sair da Inquisição sem ser queimado, mas tenha certeza que sairá chamuscado”. Tal frase ilustra o fato de que apesar de não receber a pena máxima (relaxamento ao poder secular), o herege certamente iria ser punido de alguma forma.

Diante disso, A.S Turberville diz que a Inquisição em toda sua história nunca foi justa com um acusado no que tange às provas. A evidência levantada por um parente se aceitava quando era prejudicial, porém nunca se era favorável. Certos princípios basilares do Direito penal moderno, como por exemplo o in dubio pro reo, assim como o da personalidade da pena (ou intranscendência da mesma), certamente não foram respeitados pela Inquisição. Prova de tais afirmações, além da alegação de já mencionado autor, é o fato de que as penas não se limitavam à pessoa do condenado, mas seus descendentes sofreriam também as consequências por serem “filhos/netos de um herege”.

Já no que diz respeito ao já mencionado “relaxamento ao poder secular”, isto é, quando a Inquisição entregava um réu para o Estado, que normalmente o executava, Turberville assinala que não há escusa moral por parte dos inquisidores.

Apesar de a Inquisição ser normalmente mais benévola e parcimoniosa com os criminosos do que os tribunais civis, Turberville ainda diz que tal escusa moral é um erro cometido somente pelos “ignorantes apologistas do Santo Ofício”. Ainda segundo o autor em tela, a sentença de “relaxação” equivalia a uma sentença de morte, e o inquisidor sabia muito bem disso quando a ditava. Não havia escapatória possível. As autoridades seculares, portanto, teriam de aceitar o veredito e levar a cabo a punição, porque “relaxação” é um eufemismo universalmente entendido, e um funcionário da Inquisição deveria estar presente na “queima” para informar ao seu tribunal que tal sanção havia sido aplicada.

Ainda pontua Turberville que castigar o herege com uma pena menor que a morte seria obstaculizar todo o sistema inquisitivo. Logo, quando um inquisidor relaxava o herege ao braço secular dizendo para que o mesmo fosse tratado com benignidade, sabemos que era uma fórmula vazia e que os que a utilizavam certamente iriam se indignar caso tais observações fossem levadas a sério, uma vez que o inquisidor estava convencido de que não poderia haver maior vergonha do que consentir que o herege impenitente continuasse vivendo.

CONCLUSÃO

O tribunal da Inquisição consiste em uma ampla história, possuindo inúmeras nuances jurídicas, históricas, culturais, sociais, etc.

Naturalmente que num artigo tão breve não pudemos esgotar todos esses aspectos, por isso fica a recomendação de maior aprofundamento nas fontes bibliográficas abaixo a respeito do tema, principalmente em autores com rigor acadêmico e sem compromisso apologético, seja ele em prol da Inquisição ou contra a mesma.

            No presente artigo que agora se encontra em seu fim, procuramos trabalhar a respeito dos mouriscos e da Inquisição Espanhola em alguns aspectos mais gerais. Naturalmente que há muito mais o que citar a respeito do tema em todos os ângulos possíveis, mas como dito anteriormente, tal coisa seria impossível para um artigo sem muitas ambições e com poucas páginas.

            Para a confecção desta peça textual, nos valemos de várias fontes bibliográficas, sendo a maioria delas já consolidadas pela historiografia da Inquisição Espanhola ou até mesmo da história do Direito. Usamos inclusive citações de casos reais, devidamente documentados pela Inquisição, para que não haja dúvidas do que estamos aqui expondo.

            A Inquisição deve ser analisada com o rigor histórico que merece, sem paixões apologéticas que chegam ao ponto de se tornar negacionistas (muito comum hoje no meio católico da Internet), e nem paixões desordenadas de inimigos declarados da Igreja Católica, que em sua sanha difamatória insistem em números alarmantes que fariam o próprio Llorente se envergonhar, algo também muito corriqueiro no “senso comum” quando falamos de Inquisição.

            Muito poderia ser escrito sobre a Inquisição, inclusive muitas coisas tiveram de ser deixadas de lado pelo bem da concisão do artigo, mas para os curiosos de plantão e os amantes de história, recomendamos (novamente) a leitura das bibliografias utilizadas nesse artigo, principalmente a dos autores sem compromisso com qualquer lado além do histórico.

Notas:

[1] Ver KAMEN (2014). p. 477;

[2] Ver ITURRALDE (2016). p. 235-236;

[3] Ver LOYN (1990). p. 323;

[4] Ver GILISSEN (2003). p. 135;

[5] Por exemplo o próprio sistema inquisitorial, foco de nosso estudo, que em partes é até hoje aplicado na legislação brasileira;

[6] Para essa e mais informações, ver a obra de A.S Turberville, página 17 em diante (PDF).

[7] Termo normalmente utilizado quando trata-se do tema dos conversos do judaísmo, mas usaremos aqui por conveniência. Tal expressão designa a maioria dos cristãos de Portugal e Espanha, contrapondo-se aos cristãos de origem judia ou muçulmana que eram minoria.

Bibliografia:

KAMEN, Henry. The Spanish Inquisition. A historial revision. Yale University Press. 2014. 4th edition.

ITURRALDE, Cristian. A Inquisição: Um tribunal de misericórdia. Ecclesiae. 2016.

LOYN, Henry Royston. Dicionário da Idade Média. Jorge Zahar Editor Ltda. 1990.

TURBERVILLE, Arthur Stanley. La Inquisición Española. (PDF).

GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Fundação Calouste Gulbenkian. 4ª edição. 2003.

BRANDÃO, Cláudio. Lições de história do Direito Canônico e História do Direito em perspectiva. D’Plácido Editora. 2017.

MARTIN, Elizabeth A. Oxford dictionary of law. Oxford University Press. Fith edition. 2003.

BENNASSAR, Bartolomé. La Inquisición Española: poder político y control social. Editorial Crítica. 1984.

CARR, Matthew. Blood and Faith. The Purging of Muslim Spain. The New Press. 2011.

MONTER. E. William. Frontiers of Heresy. Cambridge University Press. 2002.