... quando os cristãos perceberam que haviam prevalecido como vencedores, e que poucos deles haviam caído, eles desmontaram e cortaram as cabeças dos mortos, amarraram-nas às selas e carregaram-nas de volta, bastante felizes, até seus numerosos camaradas que aguardavam o resultado no acampamento em torno de Antioquia, junto de mil bons cavalos e muitos despojos que eles tiraram do inimigo derrotado. Os enviados do rei do Egito estavam na mesma batalha e também levaram, nas suas selas, as cabeças cortadas de turcos para o exército.

Este relato de batalha nos arredores de Antioquia, retirado do Historia Hierosolymitanae expeditionis, por Alberto de Aquisgrão, ilustra um detalhe pouco conhecido da Primeira Cruzada: que enquanto os cruzados lutavam contra um grupo de muçulmanos, eles também lutavam lado a lado ao lado de outros muçulmanos. Neste artigo, apresentamos a aliança entre os cruzados e os governantes fatímidas do Egito, de forma que seria apenas após o rompimento desta aliança que Jerusalém passaria a se tornar alvo de um ataque militar.

A Primeira Cruzada é um dos eventos mais importantes da Idade Média - quando dezenas de milhares de homens e mulheres se comprometeram a ir a Jerusalém, que na época era governada pelos turcos seljúcidas. Mas quando chegaram à Cidade Santa, no verão de 1099, ela estava sob o domínio de outro grupo - os Fatímidas do Egito. A maioria dos historiadores tende a encobrir esse fato, como se os cruzados realmente não se importassem com quem estava governando a cidade. No entanto, um olhar mais atento às fontes sugere que, se a história tivesse sido um pouco diferente, Jerusalém poderia ter sido poupada de um massacre sangrento.

Quem eram os fatímidas?

Os fatímidas foram um movimento xiita ismaelita que surgiu no Oriente Médio no século IX. Diante da perseguição, sua liderança se realocou no Norte da África e, gradualmente, começou a construir um potentado para si. Isso levaria à conquista do Egito em 969 e a fundação da cidade do Cairo, edificando um Estado que incluía muçulmanos, cristãos e judeus.

Em seu artigo,“Byzantine-Fatimid Relations before the Battle of Manzikert,, Abbas Hamdani explica que enquanto os dois estados [Império Bizantino e Califado Fatímida] estavam em conflito durante o século X, no ano 998 uma série de tréguas foram formalmente estabelecidas. Apesar de momentos de tensão, causados principalmente pelo comportamento errático do califa al-Hakim (996-1021), essa relação melhorou com o tempo, à medida que novos acordos foram estabelecidos. Mais notavelmente, bizantinos e fatímidas estavam de acordo nas suas fronteiras, deixando Antioquia sob controle bizantino e Jerusalém e Damasco sob controle egípcio. Nas últimas décadas do século XI, esses estados estiveram sob longos períodos de paz, um fenômeno notório quando consideramos um contexto medieval

Os fatímidas e os bizantinos tinham boas razões para se aliarem: ambos estavam ameaçados pelos turcos seljúcidas, que em meados do século XI estavam estabelecendo um império que se estendia da Ásia Central ao Mediterrâneo. Os turcos trouxeram a guerra para os bizantinos e os fatímidas, estes últimos com vigor intensificado por conta do islamismo sunita adotado pelos saljúcidas, que via os governantes egípcios como hereges. Seriam os seljuques que conquistariam Jerusalém dos Fatimidas em 1071 – e também foram eles que começaram a dificultar o acesso dos peregrinos cristãos à Cidade Santa.

Nas vésperas da Primeira Cruzada, Egito e Bizâncio ainda permaneciam aliados, em certo sentido, assim como ambos queriam repelir o avanço saljúcida. Os governantes fatímidas não esperavam qualquer hostilidade quando o imperador Aleixo I mandou-lhes uma mensagem de que peregrinos cristãos armados estavam chegando da Europa Ocidental. Na verdade, uma fonte árabe, a Crônica de Ibn al-Athir, indicou que os fatímidas podem até ter desejado e convidado Cruzadas no Oriente Médio:

Foi dito que os governantes alidas do Egito ficaram com medo quando viram a força e o poder do estado seljúcida, que havia ganhado o controle das terras sírias até a própria Gaza, não deixando nenhum estado-tampão entre os seljuques e o Egito para protegê-los, especialmente quando Aqsis [um chefe turcomano] havia entrado no Egito e estabelecido um bloqueio [em 1077]. Eles, portanto, convidaram os francos para invadir a Síria, para conquistá-la e separá-los dos outros muçulmanos, mas só Deus sabe.

Quando os vários príncipes e líderes do exército dos cruzados chegaram a Constantinopla em 1096 e 1097, o imperador bizantino os encorajou a se aliar com o Egito. Parece lógico acreditar que o imperador Aleixo informou aos cruzados sobre suas relações com os fatímidas e esperava que os líderes da cruzada, a maioria dos quais haviam feito juramentos de lealdade a ele, respeitariam seus tratados com o Egito, assim como deveriam entregar os territórios que conquistaram de volta a Bizâncio.

É difícil saber o que os cruzados pensariam dos fatímidas. Seu conhecimento da situação e das afinidades religiosas do Oriente Médio provou-se, na melhor das hipóteses, duvidoso: eles haviam iniciado esta peregrinação por causa dos ataques a Jerusalém causados por turcos/persas. No entanto, os cruzados entenderam que os egípcios eram um povo diferente, governados pelo o que eles pensavam ser pagãos; que compartilhavam algumas crenças com os turcos, mas ainda assim diferentes deles, também incluindo entre os seus muitos cristãos, embora não estivessem submissos ao Papa, como eles. Muito do que os cruzados sabiam sobre o Egito provinha da Bíblia: foi lá que Moisés resgatou o povo judeu, mas também foi lá que o menino Jesus encontrou refúgio. Neste sentido, os cruzados devem ter visto os egípcios de uma forma um tanto ambígua.

Contato

Vários relatos sobre a Primeira Cruzada notam que uma delegação do Egito chegou do mar, por volta de fevereiro de 1098, durante o cerco cruzado à cidade de Antioquia. O relato mais detalhado vem de Alberto de Aquisgrão, que escreve:

Sabendo das intenções dos cristãos por meio de um certo abade enviado como emissário, o rei do Egito enviou 15 emissários proficientes em diferentes línguas para o exército do Deus Vivo, propondo uma aliança mútua pela paz e pelo seu reino. [Isto se procedeu] por causa da discórdia e ódio muito severos entre ele e os turcos, algo que em muito antecedia esta expedição dos cristãos. Sua mensagem era:

'O maravilhoso rei do Egito, alegre com sua chegada e a quem beneficiaste até agora,, envia saudações aos grandes e pequenos príncipes dos cristãos. Os turcos são uma raça estranha para mim e perigosa para o meu reino; eles frequentemente invadem nossas terras, se apossando de Jerusalém, uma cidade que nos pertence. Mas agora, com nossas forças, recuperamos esta cidade antes de sua chegada, expulsamos os turcos, fechamos um tratado e estabelecemos amizade convosco. Devemos restaurar a cidade sagrada, a Torre de Davi e o Monte Sião para o povo cristão. Teremos também discussões sobre o reconhecimento da fé cristã. Se, ao discutirmos, nos agradarmos [desta fé], então estaremos prontos para aceitá-la [ie. se converter]. Se, entretanto, persistirmos na lei e no ritual da fé gentia, o tratado que temos entre nós não será quebrado. Rogamos e avisamos você para não se retirar desta cidade de Antioquia até que o que foi injustamente roubado seja devolvido ao imperador dos gregos e aos cristãos.”

Este relato contém imprecisões, mais notavelmente o fato de que neste ponto Jerusalém ainda estava nas mãos dos turcos saljúcidas. Outros relatos oferecem detalhes diferentes. Em uma carta, o líder cruzado Estêvão de Blois afirma que os egípcios "estabeleceram a paz e a concórdia conosco". Guilherme de Tiro relata que esses enviados também incluíam membros da equipe doméstica do governante egípcio, que encorajaram os cruzados a continuar o cerco de Antioquia. Ele acrescenta que “os emissários foram encarregados de assegurar aos cristãos que o sultão os ajudaria com suporte militar e recursos. Eles também deveriam tentar ganhar a confiança e o favor dos líderes [da Cruzada] e fechar um tratado de amizade com eles.”

Foi durante esta visita que os cruzados travaram uma batalha com Ridwan de Aleppo, em 9 de fevereiro, mencionada no início deste artigo. Enquanto outros relatos reconhecem que a delegação egípcia esteve presente para esta vitória, Albert de Aquisgrão é a única fonte que afirma que eles lutaram lado a lado contra os turcos.

Aparentemente, delegação permaneceu com os cruzados durante várias semanas, então retornando para o Egito com emissários dos cruzados. Parece provável que eles também estivessem voltando com algum tipo de acordo - se os cruzados pudessem capturar e manter Antioquia, os egípcios retomariam Jerusalém e que algum tipo de provisão seria feita para ajudar as forças cristãs até o fim da sua peregrinação. O acordo também poderia incluir promessas egípcias de que os cristãos – mais precisamente os católicos romanos – receberiam as principais igrejas e santuários da cidade.

É preciso ter em mente que, a esta altura, há poucas evidências que sugiram que os cruzados pretendiam ficar no Oriente Médio e criar seu próprio Estado. Muitas evidências sugerem que quase todos eles pretendiam voltar para a Europa. Antioquia deveria ser entregue aos bizantinos e embora alguns cruzados desejassem libertar Jerusalém de qualquer domínio não-cristão, durante os anos de 1097 e 1098 a maioria ficaria feliz em apenas chegar à Cidade Santa.

A noção de que os Cruzados e Fatímidas fizeram algum tipo de aliança também ajuda a resolver uma questão que intrigou os historiadores da Primeira Cruzada: por que os cruzados, após derrotar os turcos em Antioquia em junho de 1098, decidiram esperar até o início de 1099 para retomar sua marcha em direção a Jerusalém? Outros fatores foram sugeridos, como turbulência entre suas lideranças e questões sobre o que deveria ser feito com Antioquia, mas também poderia ter sido a ideia de que os cruzados estavam esperando que os egípcios concluíssem sua parte no acordo.

O colapso

Em agosto de 1098, um exército egípcio marchou até os portões de Jerusalém e iniciou um cerco à cidade. Não demorou muito para que a guarnição saljúcida local se rendesse. Logo depois, as forças egípcias também partiram. Guilherme de Tiro relata o que aconteceu a seguir:

Por volta dessa época, nossos emissários ao Egito retornaram aos seus líderes. Eles haviam partido à pedido dos legados egípcios que vieram ao cerco de Antioquia por ordens do califa do Egito, como relatado antes. Por um ano, estes emissários foram detidos à força naquele país, tanto por violência quanto por estratégia. Com eles vieram emissários do príncipe dos egípcios, levando mensagens cujo significado geral era muito diferente do pronunciado pela antiga embaixada.

Na época, eles haviam tentado seriamente obter a boa vontade e ajuda dos nossos líderes contra a arrogância presunçosa dos turcos e persas. Agora, porém, sua atitude mudou totalmente. Pareciam sugerir que estavam conferindo um grande favor aos cristãos, permitindo que peregrinos desarmados fossem a Jerusalém em grupos de duzentos ou trezentos e voltassem em segurança depois de completarem suas orações.

Os líderes das forças cristãs consideraram esta mensagem um insulto. Forçaram os enviados a voltar com a resposta de que o exército não consentiria em ir para lá em pequenos destacamentos, nas condições propostas. Pelo contrário, marcharia sobre Jerusalém como uma hoste unida e ameaçaria o reino de seu mestre.

Os egípcios devem ter acreditado que sua proposta era lógica. A cidade de Jerusalém acabou de ser reconquistada e, de qualquer forma, não teria recursos para abrigar, alimentar e cuidar de dezenas de milhares de peregrinos que chegavam de uma vez. No entanto, para os cruzados, esta proposta significaria que muitos teriam que esperar meses ou mesmo anos antes que pudessem terminar sua peregrinação. Era claramente inaceitável para eles, depois de todo o sangue que haviam derramado, ter negado o seu direito de ir a Jerusalém. Com pregadores como Pedro Bartolomeu estimulando o vigor religioso e a dissolução da aliança entre eles e Bizâncio (eles consideravam que o imperador Aleixo não lhes dera apoio suficiente), parecia que os cruzados não precisavam mais seguir qualquer plano que sugerisse que Jerusalém ficaria sob controle muçulmano, ou que Antioquia seria devolvida aos bizantinos. Os cruzados agora estavam trabalhando por conta própria, e quaisquer alianças que fizessem antes eram nulas e sem efeito.

No início de 1099, os cruzados começaram o que era essencialmente uma corrida em direção a Jerusalém, na esperança de pegar os fatímidas despreparados. Na verdade, a cidade de Jerusalém estava sendo desmilitarizada com suas defesas derrubadas, o que oferece mais indicações de que os governantes egípcios tinham a impressão de que tinham uma aliança bastante forte com os cruzados. Quando eles puderam reagir, Jerusalém já estava sob ataque, caindo em 15 de julho de 1099.

Deve-se notar que os cruzados colocaram toda a culpa da aliança rompida nos egípcios. Um cronista sugere que os fatímidas estavam negociando secretamente com os turcos; uma perspectiva duvidosa, considerando a inimizade que mantinham entre si. Guilherme de Tiro explica que, uma vez que os seljúcidas foram derrotados, a atitude egípcia em relação aos cruzados mudou: "Por isso, eles desprezaram a ajuda de nosso povo, antes tanto desejada." A maioria dos relatos escritos do ponto de vista dos cruzados oferece poucas ou nenhuma palavra sobre as relações com o Egito antes da conquista de Jerusalém, como se suas trocas diplomáticas anteriores fosse algo que era melhor esquecer.

O ataque e captura de Jerusalém provou-se um choque para o Egito e para o resto do Mundo Muçulmano, sedimentando entre escritores muçulmanos a visão de que os cruzados, assim como como europeus ocidentais (a quem chamavam de francos) não eram confiáveis e agiam com duplicidade.

Poucos historiadores passaram muito tempo falando sobre a possibilidade de uma aliança Cruzado-Fatímida - uma exceção sendo John France - mas é importante considerar essa possibilidade por várias razões. Em primeiro lugar, sugere que as idéias de que as cruzadas eram dirigidas contra o próprio Islã são um tanto inadequadas - a ameaça inicial era os turcos seljúcidas, que por acaso eram muçulmanos, e que estavam preparados para trabalhar com outros muçulmanos para derrotá-los. Embora as cruzadas mais tarde evoluíssem para uma guerra entre religiões, elas não necessariamente começaram como uma.

Outro aspecto sobre a Primeira Cruzada que vale a pena enfatizar é como ela foi caótica e imprevisível. Embora muitos de seus líderes, incluindo o papa e o imperador bizantino, tivessem suas próprias idéias e agendas sobre como isso deveria acontecer, os eventos de 1095 a 1099 levariam a desenvolvimentos incomuns e inesperados. Nada como a Primeira Cruzada havia acontecido antes na história: dezenas de milhares de pessoas viajando milhares de quilômetros, guiadas por sua própria fé, no que foi tanto uma campanha militar quanto uma peregrinação. É por isso que este episódio é uma das histórias mais intrigantes da Idade Média.

Fonte: KONIECZNY, Peter. Were Christians and Muslims Allies in the First Crusade?. Medievalists.net, 2018. Disponível em: <https://www.medievalists.net/2018/04/were-christians-and-muslims-allies-in-the-first-crusade/>. Acesso em 14 de abril de 2021.