Introdução

Recentemente fatos trágicos acometeram o Afeganistão e chocaram todo o mundo: a tomada do país pelo grupo extremista e terrorista Talibã. Como era de ser esperado, todos os veículos de mídia mostraram incessantemente o terror causado pelo grupo que sem sombra de dúvidas choca qualquer um com o mínimo de senso de humanidade. Contudo, algo também esperado era o fato de que muitos comentariam sobre o assunto de forma mais aprofundada e indo além da questão do Talibã e dos acontecimentos contemporâneos: alguns analisaram a situação afegã desde a Guerra Fria, outros a ocupação americana, e outros foram até a gênese do Islam e seu desenvolvimento ao longo dos séculos, procurando algum paralelo entre a vida de Muhammad, as fontes islâmicas (Alcorão, ahadith etc.) e os governos muçulmanos durante a história da religião. Algo também previsível foi a explosão de “especialistas” na religião islâmica falando que o que o Talibã faz é o que os muçulmanos sempre fizeram na história, imitando a vida de Muhammad e seguindo os preceitos corânicos. Dentre esses pseudo-especialistas se encontra o famoso padre Paulo Ricardo, sacerdote católico, que publicou recentemente no dia 01 de setembro um texto em seu site intitulado “34 vezes que os muçulmanos nos deram mártires”.

Outrora diretamente associado a Olavo de Carvalho, responsável pela importação de diversos mitos anti-islâmicos para o Brasil [1], lamentavelmente o padre Paulo continua repetindo certos chavões “olavetes” e discursos batidos e já refutados da direita neoconservadora americana e europeia que chegaram em nosso país. O texto do padre, porém, não é nenhuma análise intrincada a respeito das fontes ou da história islâmica, mas um mero panfleto sem qualquer validade historiográfica, mas que merece uma análise. Essa análise, contudo, não irá abordar todos os mártires citados por Ricardo, já que sua lista é extensa e uma análise seria infinitamente mais extensa ainda, devendo focar tão somente em alguns pontos principais de seu “texto”. Cumpre salientar também que nem o História Islâmica e nem seus colaboradores negam que tenha havido martírios cristãos legítimos ao longo da história do Islam, mas sim de que a abordagem do padre Paulo não passa de mero panfleto sem qualquer validade histórica.

Razões para não ser muçulmano

Antes de listar os mártires, o padre Paulo Ricardo elencou alguns motivos para não ser muçulmano, baseando-se na obra de São Tomás de Aquino. Entretanto, anteriormente o sacerdote traz os seguintes dizeres:

Por outro lado, todas essas notícias não deveriam ser uma “novidade”: o islamismo, desde o seu surgimento, no século VII, sempre deixou um rastro de crueldade e destruição por onde passou. A história e o presente o demonstram com meridiana clareza (RICARDO, 2021, n.p.) (grifos no original).

Pela fala do padre, a única “meridiana clareza” é a sua ignorância da história islâmica, ignorância essa no nível de aparentar nunca ter lido uma única obra sequer a respeito da história do Islam que não tenha sido panfleto requentado do neoconservadorismo americano ou europeu. “Ironicamente”, as civilizações islâmicas foram muito mais avançadas do que as civilizações cristãs ao longo dos anos, inclusive São Tomás de Aquino jamais teria tido acesso aos gregos se não fosse pela contribuição dos muçulmanos. A historiografia mais atualizada demonstra as inúmeras contribuições científicas, culturais e civilizacionais como um todo trazidas ao Ocidente pelo Islam, algo desnecessário de se repetir para àqueles que conhecem o trabalho da página História Islâmica.

Porém, já que as contribuições islâmicas ao mundo não são o foco desse texto, devemos partir para o restante do conteúdo no escrito de Paulo Ricardo:

Antes de entrar na história, é sempre bom recordar as breves mas imortais palavras de Santo Tomás de Aquino, que dá três razões para mostrar ser em si mesmo leviano e insensato crer no islã: 

  1. ausência de confirmação sobrenatural (ou seja, por milagres) dos ditos de Maomé; 
  2. o fato de o islamismo ter-se espandido pela força das armase contado entre seus primeiros adeptos homens rudes e mal instruídos; 
  3. ausência de profecias passadas que atestem a instituição divina da lei corânica (RICARDO, 2021, n.p.) (grifos no original).

Tomás de Aquino foi um autor medieval do século XIII, suas imprecisões a respeito do Islam são perfeitamente justificáveis e perdoáveis, tanto pelo contexto de sua época ao viver em uma sociedade antagonista à islâmica, quanto também pela dificuldade em ter contato com boas obras expositivas a respeito da religião. A ignorância do ocidente medieval cristão a respeito do Islam era de fato gritante, como será exposta no presente artigo. Essa ignorância, porém, não é escusável quando se trata do padre Paulo Ricardo, indivíduo com amplo acesso à informação e que lê em outros idiomas além do português.

Desde o surgimento das primeiras obras contra o Islam por parte de apologistas e polemistas de outras crenças, muito se foi dito a respeito da religião de Muhammad e também do próprio profeta. Entretanto, na maioria das vezes as críticas ou até mesmo observações foram frutos de nada mais que má-compreensões a respeito da religião islâmica ou ainda espantalhos frutos da ignorância, desonestidade ou ódio.

John Tolan (2019) na sua magnífica obra Faces of Muhammad que busca resgatar as diferentes percepções ocidentais a respeito do Profeta do Islam desde o medievo até os dias de hoje, expõe diversas faces e caricaturas de Muhammad no Ocidente Cristão, que vão desde uma divindade politeísta na Canção de Rolando até um grande reformador admirado por muitos dos Iluministas. Entre essas diversas imagens, um lugar comum foi (e ainda é) de que se tratava de um falso profeta, as vezes retratado como alguém beligerante, lascivo e assim por diante, realizando uma oposição entre o Jesus Cristo evangélico, divino e superior ao mero mortal e puramente humano Muhammad.

Diversos foram os escritos sobre e principalmente contra o Islam, incluindo por parte de doutores da Igreja, como São João Damasceno e São Tomás de Aquino. Não obstante, autores famosos como Raimundo Llull também deram sua “contribuição” às críticas ao Islam, juntamente com clássicos da literatura cristã medieval, como a famosa Legenda Áurea e a já mencionada Canção de Rolando. O Islam, era, portanto, o espectro que rondava a Europa no Medievo. Consoante São Tomás, segue abaixo o trecho de sua clássica Suma Contra os Gentios:

A maravilhosa conversão do mundo à Fé cristã é um certíssimo indício dos sinais havidos no passado, que não precisaram ser reiterados no futuro, visto que os seus efeitos são evidentes.

Seria realmente o maior dos sinais miraculosos se o mundo tivesse sido induzido, sem aqueles maravilhosos sinais, por homens rudes e vulgares, a crer em verdades tão elevadas, a realizar coisas tão difíceis e a desprezar bens tão valiosos.Mas ainda, nos nossos dias, Deus, por meio dos Seus santos, não cessa de operar milagres para confirmação da Fé. No entanto, os iniciadores de seitas erróneas seguiram um caminho oposto, como se tornou patente em Maomé, fundador do Islão.

Ele (Maomé) seduziu os povos com promessas referentes aos desejos carnais, excitados que são pela concupiscência. Formulou também preceitos conformes àquelas promessas, relaxando, desse modo, as rédeas que seguram os desejos da carne.

Além disso, não apresentou testemunhos da verdade, senão aqueles que facilmente podem ser conhecidos pela razão natural de qualquer medíocre ilustrado. Além disso, introduziu, em verdades que tinha ensinado, fábulas e doutrinas falsas. Também não apresentou sinais sobrenaturais. Ora, só mediante estes há conveniente testemunho da inspiração divina, enquanto uma acção visível, que não pode ser senão divina, mostra que o mestre da verdade está inspirado de modo invisível. Mas Maomé manifestou ter sido enviado pelo poder das armas, que também são sinais dos ladrões e dos tiranos.

Ademais, desde o início, homens sábios, versados em coisas divinas e humanas, não acreditaram nele. Nele, porém, acreditaram homens que, animalizados no deserto, eram totalmente ignorantes da doutrina divina. No entanto, foi a multidão de tais homens que obrigou os outros a obedecerem, pela violência das armas, a uma lei.

Finalmente, nenhum dos oráculos dos profetas que o antecederam dele deu testemunho, visto que ele deturpou com fabulosas narrativas quase todos os factos do Antigo e do Novo Testamento.Tudo isso pode ser verificado ao estudar-se a sua lei. Já também por isso, e sagazmente pensado, não deixou que os seus seguidores lessem os livros do Antigo Testamento, para que não o acusassem de impostura.

Fica assim comprovado que os que lhe dão fé crêem levianamente (AQUINO, 1990, p. 27-28).

Entre os diversos erros proferidos por Aquino, algo extremamente comum desde as primeiras polêmicas cristãs contra o Islam, é o argumento de Muhammad ter sido uma pessoa lasciva e beligerante. Isso, naturalmente, combinado com o que também dizia Raimundo Llull: “Maomé foi um enganador que fez um livro chamado Alcorão” (apud COSTA, 2011, n.p.). Os herdeiros modernos da tradição cristã medieval também comungam da mesma ideia, porém duplamente mais ignorantes, uma vez que possuem amplo acesso à informação e conhecimento de qualidade, feito o padre Paulo, mas que preferem ler propositalmente obras panfletárias.

O primeiro ponto citado pelo sacerdote ao parafrasear Tomás de Aquino foi a ausência de milagres. Aqui, porém, há de fazer algumas observações: essa ausência seria de que a tradição islâmica não atribui milagres à Muhammad, ou a tradição contém milagres mas não há prova da veracidade dos mesmos? Caso a resposta seja afirmativa para a primeira opção, denota um imenso desconhecimento do Islam, uma vez que os milagres atribuídos à Muhammad dentro da tradição islâmica superam o número de milhares. Caso a resposta seja afirmativa para a segunda, então todas as religiões do mundo padecem do mesmo problema, inclusive o cristianismo, principalmente com a ascensão da mais elevada crítica textual nos estudos bíblicos.

Digamos para fins argumentativos que o padre tenha se referido de que não há milagres atribuídos à Muhammad dentro da tradição islâmica, para assim não criarmos problemas para as demais religiões e nem atribuir ao autor original alguma espécie de hipocrisia. Ora, dentro do mundo islâmico são inúmeras as obras tratando somente dos milagres do profeta do Islam: exemplo recente é a obra de Üstad Bediüzzaman Said Nursi, teólogo curdo falecido na década de 60 do século passado, famoso principalmente pelo seu comentário corânico com mais de 6 mil páginas. Em sua obra Los Milagros del Profeta Muhammad [2], Said Nursi elenca pelo menos 300 milagres, sendo inclusive um número muito pequeno para a totalidade dos milagres encontrados na tradição islâmica como um todo, que como dito anteriormente, chega em milhares.

O padre Paulo Ricardo infelizmente deixa a desejar em matéria de conhecimento sobre o Islam a um outro anti-islâmico conhecido no exterior, porém ateu, Ibn Warraq, que diz: “As tradições estão repletas dos milagres de Muhammad, como curar os doentes, alimentar milhares de pessoas com um odre etc(The traditions are full of Muhammad's miracles, curing the ill, feeding a thousand people on one kid, etc) (WARRAQ, 1995, p. 143). Resta evidente que a tradição islâmica está repleta de milagres. Não obstante, os milagres (karamat) não são apenas característicos da vida do profeta, mas também dos santos (wali) muçulmanos. Ainda nos dias de hoje as relíquias deixadas por Muhammad são fontes de milagres para os muçulmanos.

Indo mais além, a própria existência dos santos muçulmanos (wali) já derruba por terra outro trecho do texto do sacerdote:

A rápida expansão da nova seita, por sua vez, explica-se facilmente pela índole de suas promessas (prazeres sexuais no paraíso, por exemplo) e de seus preceitos (puramente externos, sem necessidade de mortificação interior), à qual o homem caído está naturalmente inclinado. Eis o que diz o Aquinate (CG I 6, n. 7) (RICARDO, 2021, n.p.) (grifou-se).

Qualquer indivíduo com no mínimo 5 minutos de leitura a respeito do Islam deve ter ouvido falar de sufismo, a prática espiritual islâmica, que por sua vez é inteiramente baseado na vida de Muhammad. Novamente a ignorância inescusável de Ricardo se demonstra em sua mais “meridiana clareza”, ignorando toda a espiritualidade milenar da religião islâmica para simplesmente manter sua narrativa que até então já era fraquíssima para sustentar a ideia de que os preceitos islâmicos são puramente externos. [3]

O segundo ponto elencado pelo padre Paulo Ricardo também possui seus erros: “o fato de o islamismo ter-se espandido pela força das armas e contado entre seus primeiros adeptos homens rudes e mal instruídos”. No que tange à expansão islâmica devem ser feitos duas diferenciações: a expansão do Islam enquanto religião e fé, e a expansão dos Estados islâmicos. Os especialistas chamam a expansão dos estados como Islamicate [4].

Novamente, é compreensível que São Tomás tenha feito esse equívoco ao escrever no século XIII, mas o mesmo não pode ser dito sobre o padre Paulo escrevendo no século XXI, posteriormente a obras clássicas como The Preaching of Islam de Thomas Arnold ou ainda a obra de Hugh Kennedy, The Great Arab Conquests, ou quem sabe a obra de Robert Hoyland, In God's Path: The Arab Conquests and the Creation of an Islamic Empire.

O tal islamicate como os estudiosos chamam de fato se expandiu como qualquer outro Estado na história: através da conquista e anexação de terras. Fato curioso é que por vezes as populações locais ajudaram os conquistadores muçulmanos, como foi o caso da África do Norte e da Península Ibérica, sendo que nesse último caso os muçulmanos foram literalmente convidados. Entretanto, ao estudarmos essas mesmas conquistas, percebemos que o Islam só se tornou religião majoritária séculos depois de conquistar esses territórios, e não pela força das armas, mas por inúmeros outros motivos elencados por Arnold em sua magistral obra sobre a expansão da fé islâmica, e nenhuma delas relacionada à coerção. [5]

Quando o padre Paulo Ricardo cita que os primeiros convertidos ao Islam eram pessoas ignorantes, novamente demonstra seu desconhecimento tanto do Islam quanto das polêmicas contra os cristãos. A primeira pessoa a se converter ao Islam não foi uma pessoa ignorante, mal instruída e nem rude, mas sim a esposa de Muhammad, que era mercadora, empresária e bem-educada.

Caso a argumentação do padre Paulo Ricardo fosse verídica (o que não é), isso também serviria para anular o próprio cristianismo, inclusive a vertente católica, já que são os sucessores do apóstolo Pedro que detém o caráter de infalíveis ao se pronunciarem ex cathedra, assim como a sé romana possui jurisdição universal. Ora, é sabido que Pedro não era o mais brilhante de todos os apóstolos, e seu caráter rude é explícito em todo o Novo Testamento.

Não obstante, acusações semelhantes às de Paulo Ricardo sobre os seguidores de Muhammad eram feitas pelos pagãos romanos aos cristãos, mas nada impediu que mentes brilhantes feito Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e tantos outros surgissem no seio cristão, assim como nada impediu a ascensão de pessoas como o Imam Al-Ghazali, Ibn Sina e muitos outros no meio islâmico. Essa é uma característica essencial de uma religião universal, algo que tanto o Islam e o Cristianismo afirmam de si, ou seja, a capacidade de abrigar sob suas crenças tanto as maiores mentes da história quanto as mais simples.

Quanto ao terceiro ponto, a ausência de profecias, esse é na verdade um tema muito discutido na apologética entre muçulmanos e cristãos, assim como objeto de estudo interno entre os muçulmanos. Várias são as passagens bíblicas utilizadas por muitos muçulmanos para afirmar que Muhammad havia sido profetizado, porém esse é um tema extremamente amplo e que mereceria artigos próprios. É evidente, porém, que não há “ausência”, mas sim distinções exegetas entre muçulmanos e cristãos sobre certas passagens. Não obstante, o que mais é argumentado por apologistas judeus é a ausência de profecias sobre Cristo, ou ainda acusações pagãs de que os cristãos adulteraram seus livros para que os mesmos fizessem parecer ter profetizado Jesus, como no caso das querelas sobre os livros Sibilinos (EHRMAN, 2011). Porém como dito, é uma discussão enorme e que envolveria as três religiões abraâmicas de uma só vez e as possíveis interpretações dos textos sagrados.

Dando continuidade ao texto do sacerdote, o mesmo prossegue com os seguintes dizeres:

Como monumento a atestar essas verdades, temos o Martirológio Romano, com o testemunho de sangue de inúmeros cristãos que, em outros tempos, padeceram nas mãos dos mesmos seguidores de Maomé que hoje tomaram o poder no Afeganistão. Para se ter uma ideia de como são numerosos os mártires e confessores vítimas dos muçulmanos, em todos os meses do ano há registro de ao menos uma perseguição empreendida por eles. (Sem falar, evidentemente, da multidão anônima de santos cujas mortes não foram registradas ou cujos registros se perderam no tempo.) (RICARDO, 2021, n.p.) (grifos no original).

Nesse trecho, vários são os problemas que se apresentam para um leitor mais atento e crítico às palavras do padre. Primeiramente, martirológios não são fontes confiáveis na historiografia, motivo pelo qual o Martirológio Romano não pode ser tido como uma fonte autêntica para estudos biográficos das pessoas conhecidas como mártires. Em verdade, isso não é um fato novo, mas algo que o Ocidente sabe desde o século XVI com o surgimento dos Bolandistas, grupo de estudiosos jesuítas que focaram suas atenções em estudar as hagiografias e histórias de martírios de maneira crítica. Dentre as conclusões dos bolandistas e outros estudiosos dessa área nos últimos 4 séculos é de que muitas histórias de martírio não são verídicas ou foram amplamente editadas (MOSS, 2013). Vemos casos semelhantes na lista feita pelo Padre Paulo Ricardo.

Outros são ainda os problemas no trecho, como tentar equiparar os membros de grupos terroristas e extremistas modernos com outros seguidores do Islam no passado, ou ainda falar que existe todos os meses pelo menos uma perseguição empreendida por “eles”, ou seja, os muçulmanos. Essa narrativa é no mínimo absurda, uma vez que coloca toda uma comunidade de quase 2 bilhões de pessoas como se fossem criminosos e perseguidores de cristãos, quando na verdade milhares ou até milhões de membros dessa mesma comunidade combatem esses grupos terroristas e também são mortos por eles, inclusive em maior medida que os cristãos e outras minorias religiosas não-muçulmanas. Naturalmente que o padre vai, pelo bem de sua narrativa, ignorar todos os fatos e toda a realidade.

A lista dos 34 mártires

Agora finalmente adentrando na lista, o primeiro caso citado no texto é o de 38 monges mortos no monte Sinai, que segundo o padre foram “mortos pelos sarracenos, em ódio da fé de Cristo”. Ignorando o apelo emotivo e absurdo do final da frase [6], acontece que durante as pesquisas sobre os tais monges, não foram encontrados absolutamente nada sobre esse acontecimento nem mesmo em obras especializadas em martírios cristãos sob o Islam, nem mesmo para atestar sua veracidade ou contestá-la. É um “fato” sem qualquer menção fora do Martirológio Romano, aparentemente. Não há, portanto, como verificar sua autenticidade.

Contudo, o segundo caso citado pelo padre é mais famoso e possui obras inteiramente dedicadas a ele. Vejamos:

Em Marrocos, na África, o martírio dos cinco santos protomártires da Ordem dos [Frades] Menores, a saber: Berardo, Pedro e Otão, sacerdotes, Acúrsio e Adjuto, leigos, os quais, por pregarem a fé cristã e reprovarem a lei de Mafoma, depois de vários tormentos e afrontas, foram decapitados por ordem do rei dos sarracenos (16 de janeiro) (RICARDO, 2021, n.p.).

Esses frades, contudo, não foram mártires no sentido clássico, pessoas perseguidas pela sua fé em Cristo. Em verdade, os mesmos eram blasfemadores públicos que inclusive chegaram a ser tolerado diversas vezes pelo sultão, porém devido aos ataques diretos ao Islam em suas pregações, os mesmos foram alvos de revolta por parte da população local inúmeras vezes, até que chegou um momento em que o sultão não aguentou mais os ataques públicos à fé islâmica e ordenou a execução dos mesmos:

Em outras palavras, o sultão almoada fez todos os esforços para acomodar esses visitantes ofensivos, que não se calavam nem iam embora e persistiam em perturbar a todos com gritando em latim, insultando a fé muçulmana. Por fim, o sultão perdeu a paciência e os franciscanos foram executados - exatamente o resultado que buscavam (ROSE, 2017, n.p.). [7].

A história conforme contada em sua versão tradicional, porém, possui alguns aspectos um tanto quanto nebulosos. Primeiramente, não há qualquer relato contemporâneo sobre a mesma. Em segundo lugar, é no mínimo pitoresco o fato do sultão ter tolerado os pregadores cristãos e suas blasfêmias e somente depois ter executado os mesmos. A própria execução também possui seus problemas, uma vez que sabe-se lá por qual motivo os frades teriam sido executados pelo próprio sultão, conforme as imagens hagiográficas retratando a história. Isso sem contar na conveniência que essa história representava para o papa na época da canonização dos frades cerca de dois séculos depois enquanto possuía conflitos com o Império Otomano (MACEVITT, 2020).

O próximo “mártir” listado pelo padre Paulo Ricardo é São José de Leonissa. O mais curioso dessa história é que esse mártir nem sequer morreu nas mãos dos “maometanos” nem mesmo nas histórias tradicionais! Conforme a Enciclopédia Católica, o mesmo havia ido pregar em Constantinopla, sendo condenado à morte pelo sultão otomano Murad III e enviado para as galés. Após três dias nas galés, o mesmo foi miraculosamente salvo por um anjo, voltando para a sua terra natal junto com um arcebispo Ortodoxo que havia apostatado e se tornado católico romano. Desnecessário apontar os problemas dessa história...

Já os próximos na lista são novamente outros monges, dessa vez na Palestina, que aparentemente teriam sido mortos “com grande crueldade” e “em ódio da fé de Cristo” sob ordens de um sheikh chamado Alamúndaro. Esse nome seria a versão “aportuguesada” do nome Al-Mindhir, porém acontece que não há nenhum al-Mundhir muçulmano nesse período, mas sim nos períodos pré-islâmicos enquanto governantes dos Ghassanidas ou Lakhmidas. O único al-Mindhir muçulmano em que se há registro foi um emir de Córdoba por volta dos anos 886-888, ou seja, bem longe da Palestina. Indo mais além, pela ausência de mais informações a respeito desses tais mártires, assim como por lacunas na história, é provável que se trate de outra história inventada de martírio.

O próximo mártir a ser citado é São Pedro Mavimeno, morto em Damasco por aparentemente falar “Todo aquele que não abraça a fé cristã católica se condena, assim como vosso falso profeta Mafoma” (RICARDO, 2021, n.p.). Acontece que assim como muitos outros “mártires” dessa lista, faltam informações a respeito de São Pedro Mavimeno. Na verdade não há nada sobre ele exceto fontes católicas posteriores em formato de literatura hagiográfica que replicam a mesma história de novo e de novo. Não obstante, ao que parece o mesmo foi canonizado durante uma época conhecida como “pré-congregação”, ou seja, quando as beatificações e canonizações ocorriam de forma mais simples, sem um escrutínio por parte da Igreja. Mais outra história com várias lacunas e que muito provavelmente nunca ocorreu.

Como a lista do padre é extensa, a partir de agora não serão analisados todos os mártires por ele citados, mas sim de diversos martírios ocorridos em Córdoba e também os mártires de São Sabas na Palestina.

Começando por Córdoba, o padre Paulo Ricardo cita São Eulógio e outros mártires que ficaram conhecidos pelo famoso nome de Mártires de Córdoba, tema esse que já rendeu um artigo próprio no História Islâmica.

Quando se fala dos Mártires de Córdoba, refere-se aos quase 50 cristãos que foram mortos pelas autoridades muçulmanas o califado omíada, que segundo relato da época era pelos motivos mais variados, mas em geral era relacionado ao fato de serem simplesmente cristãos ou apostatarem da fé islâmica para o cristianismo. Os martírios teriam ocorrido entre 851-859, conforme relatado pela única fonte contemporânea: Eulógio de Córdoba, posteriormente canonizado. Segundo alguns especialistas, como é o caso de Wheatcroft (2003), a população islâmica de al-Andalus crescia exponencialmente durante os primeiros dois séculos da conquista muçulmana. Até então uma pequena comunidade isolada, constituída muitas vezes de imigrantes, casamentos inter-religiosos com a população local passaram a ocorrer, aumentando assim a taxa de nascimento de novos muçulmanos. Porém, a parte mais significativa do crescimento da religião islâmica na região não devido aos imigrantes do Norte da África ou os filhos que tiveram com os nativos ibéricos, mas sim os convertidos cristãos ao Islã.

As conversões no período medieval e no mundo antigo eram variáveis, muitas vezes massas imensas se convertiam para algum credo pelo fato de um rei ou imperador ter aderido àquela fé. Entretanto, apesar disso, muitos adeptos mais zelosos das religiões antigas de determinadas localidades recusaram-se a converter para a nova fé, gerando muitas vezes movimentos de oposição tanto aos apóstatas quando à nova religião. No caso dos Mártires de Córdoba foi, em geral, algo nesse sentido: um movimento de cristãos mais zelosos que acabaria por gerar aquilo que críticos literários chamam de topos, um incidente histórico que iria se expandir em proporções para assumir um caráter lendário e mítico.

Nesse sentido, o caso dos Mártires de Córdoba naturalmente servia para gerar oposição aos governantes da fé alienígena que ali se estabeleceram, tentando demonstrar uma oposição natural entre as fés e culturas distintas que ali dividiam espaço. Assim, com o passar do tempo, tais histórias dos martírios foram transmutando para um aspecto subliminar de um poder estrangeiro que era perigoso e amedrontador, imagem essa construída sobre bases de profecias bíblicas, dando um caráter de “Anticristo” para os governantes islâmicos. Esse tipo de atitude se demonstrou um ardil utilizado por sociedades em decadência, sendo um fenômeno histórico que se repetiu (e ainda se repete) várias vezes na história.

Entretanto, o problema da maioria dos chamados Mártires de Córdoba vai de encontro à concepção de martírio da teologia cristã tradicional, uma vez que os mesmos não morriam pela fé de maneira espontânea, mas sim provocada e intencional. Por conta disso, vemos nesses ocorridos fiéis cristãos que faziam questão de insultar o Profeta Muhammad ou a religião Islâmica para que pudessem ser presos ou punidos de alguma outra forma, como com a morte, encontrando assim o “martírio”.

No caso dos Mártires cordobenses, os mesmos faziam questão em sua maioria em insultar a religião islâmica e o profeta do Islam, sabendo que tal atitude não poderia ficar impune por muito tempo. Dessa maneira, um martírio suscitava outro, até o ponto que chegou a ser condenado pelo bispo Recaredo de Sevilha. Entretanto, foi devido à condenação do bispo mencionado que fez surgir a obra de Eulógio, que não só tinha um caráter descritivo dos martírios como também apologético.

Para Fletcher, tais descrições “recheadas” são motivos de suspeita para a historiografia. Já para Wheatcroft, independentemente do relatado ter sido real ou não, o mesmo teve um caráter propagandístico, sendo aplicado de maneira genérica posteriormente. Assim, os atos simbólicos de caráter lendário e mitológico dos mártires de Córdoba geraria efeitos muito depois das datas atribuídas ao ocorrido, sendo por vezes citadas hoje em dia para sustentar uma narrativa de perseguição islâmica contra os Cristãos ou o Cristianismo em uma tentativa de demonizar tanto o Islã quanto o fiel muçulmano, transformando-os em constante ameaça para a segurança e a vida dos não-muçulmanos.

Vale lembrar que não foi somente o bispo Recaredo de Sevilha que condenou a atitude dos “mártires” cordobenses, mas foram denunciados como hereges em 854 ao qadi (juiz muçulmano) por um grupo de lideranças cristãs, envolvendo bispos, abades, sacerdotes e até mesmo nobres cristãos, isso tudo na tentativa de evitar eventuais opressões que a comunidade cristã em geral poderia vir a sofrer por conta de tais “arruaceiros”. Mas um fato interessante que também se assemelha um pouco com o ocorrido em Roma com os pseudo-mártires, é que os qadis também tentariam persuadir os ditos mártires a não tomar tais atitudes. Vemos essa sanha pelo martírio cerca de 60 anos depois dos ocorridos em Córdoba em um relato de al-Kushani, quando um homem chegou até o qadi muçulmano e implorou pelo martírio em 920.

A morte é o que queriam. Com a cultura cristã ibérica em vertiginoso declino, criar cizânia entre cristãos a serem convertidos religiosa ou culturalmente e muçulmanos era a forma mais eficaz de pará-lo. Se os emires islâmicos comessassem a matar cristãos ou “martiriza-los”, os cristãos vivendo em seus dominios clamariam por “libertação”, e não se integrariam àquela cultura a qual já os estava fazendo desaparecer. 

Os mártires de Córdoba devem, portanto, receber o título de “pseudo-mártires”, já que os mesmos fizeram de tudo para serem mortos, inclusive contrariando as ordens de bispos e de demais cristãos contemporâneos, tudo por um fim propagandístico. O padre Paulo Ricardo lamentavelmente ignora esses acontecimentos e a historiografia sobre o tema para, assim como os pseudo-mártires, fazer propaganda em prol de seu ideal, mais uma vez tentando vilificar os muçulmanos.

Agora vamos ao último caso a ser analisado aqui, os mártires de São Sabas. Trata-se da morte de dezenas de monges no monastério de São Sabas por volta dos anos 788/797. A tradição Ortodoxa aponta como sendo 44 mártires que morreram por Cristo no ano de 796. Já o padre Paulo Ricardo não fornece maiores informações sobre o ocorrido, nem o número de martírios e nem a data.

Para Sahner (2018) em sua obra Christian martyrs under Islam, que por vezes é citada por apologistas cristãos, existem cerca de 270 mártires cristãos no período conhecido como Islam primitivo, sendo os mártires de São Sabas no número de 20. Ainda conforme Sahner esse número (270) pode ser enganoso, uma vez que inclui santos que teriam sido mortos em grupos, não havendo uma distinção histórica precisa. De qualquer forma, conforme o único manuscrito sobrevivente relatando os ocorridos e também conforme os especialistas modernos, o número de mártires é 20.

No manuscrito sobrevivente, o escritor (um monge chamado Estêvão) descreve muito minuciosamente os detalhes, inclusive o contexto conflituoso da época. Devido justamente aos conflitos militares entre diversas tribos e governos da região, muitos mosteiros eram locais perfeitos para pilhagem, uma vez que se encontravam em geral isolados e sem defesas militares. Esse foi o motivo pelo qual beduínos invadiram o mosteiro de São Sabas: pilhagem. O motivo fica muito claro no relato de Estêvão e nos escritos dos estudiosos modernos, uma vez que foram diversas as vezes em que os invasores exigiram os tesouros dos monges, que afirmavam não possuir nada de riquezas:

Afinal, eles não morreram por se recusarem a negar sua fé e adorarem falsos ídolos, como na igreja primitiva, mas em vez disso, para proteger os tesouros do mosteiro de um bando de salteadores violentos (SHOEMAKER, 2016, p.35). [8]

Indo adiante, é necessário trazer outra citação de Shoemaker (2016) para melhor esclarecer o tema:

A Paixão dos Vinte Mártires é, portanto, um tipo de martírio bastante diferente dos outros neste volume e, na verdade, da maioria dos outros primeiros martírios cristãos. Os algozes aqui não são oficiais do estado ou mesmo uma multidão enfurecida que tenta linchar os cristãos por seu desvio religioso. Em vez disso, esses monges são assassinados por um grupo de salteadores que se aproveitou da desordem social e política para saquear o mosteiro (entre outros alvos) em busca de seus tesouros. Eles não atacam o mosteiro por ele ser cristão; eles o atacam porque em sua percepção era rico. Eles não massacram e assassinam os monges para fazê-los renunciar à sua fé; eles simplesmente querem que eles entreguem as riquezas (SHOEMAKER, 2016, p.36) (grifou-se).

Com as citações acima fica evidente que o motivo pelo qual os monges de São Sabas foram mortos brutalmente não teve nada a ver com questões religiosas, mas sim com a pilhagem em busca de tesouros dentro de um contexto totalmente conturbado de guerras e conflitos locais. Muito embora dessa vez se trate de um caso real onde cristãos de fato foram mortos por muçulmanos, o motivo não teve absolutamente relação alguma com o Islam e nem com o próprio Cristianismo, mas sim com a pura ganância humana que assolou mais uma vez vítimas inocentes.

Essa pesquisa é algo que faltou para o padre Paulo Ricardo na confecção de seu texto onde culpou o Islam e os muçulmanos pela morte desses vinte monges, quando na verdade nenhum deles morreu por motivos religiosos, assim como o ataque não foi motivado pela religião dos salteadores.

Com base no caso dos mártires de São Sabas e de vários outros aqui analisados, percebemos que o texto é mais uma obra propagandística anti-islâmica sem qualquer base na realidade e por vezes até mesmo sem base nas próprias fontes hagiográficas.

NOTAS

[1] Olavo de Carvalho sem dúvidas é um dos maiores responsáveis pela desinformação concernente ao Islam no Brasil, divulgando livros pífios feito os de Robert Spencer e dentre outros. Seus acólitos continuam a disseminação de inúmeras inverdades já refutadas sobre a religião islâmica.

[2] Essa obra possui várias traduções, porém a que está sendo usada nesse texto é versão espanhola.

[3] Os outros pontos como “prazeres sexuais no paraíso” são meros espantalhos orientalistas já abordados em outros momentos. Alguém repetir esses argumentos em pleno século XXI na era da informação é realmente optar pela ignorância.

[4] Aparentemente uma fusão das palavras islamic e state.

[5] Nem mesmo a famosa jizya (imposto pago pelos não-muçulmanos) foi motivo forte o suficiente para conversões em massa ao Islam, uma vez que por incrível que pareça os cristãos pagavam menos impostos aos estados muçulmanos do que aos estados cristãos outrora governantes na região, como foi o caso no Norte da África com o Império Bizantino antes da ascensão islâmica.

[6] Uma vez que Ricardo esquece ou finge esquecer o fato de que os cristãos devem ser protegidos pela lei islâmica e que sua religião é respeitada até elogiada, inexistindo essa sandice de “ódio pela fé de Cristo” como parte do Islam.

[7] In other words, the Almohad Sultan made every effort to accommodate these prickly and offensive visitors, who wouldn’t shut up, wouldn’t go away and persisted in upsetting everyone at whom they could shout in Latin, by insulting the Muslim faith. Eventually the Sultan lost patience, and the Franciscans were executed – the very outcome which they had sought (ROSE, 2017, n.p.).

[8] After all, they had not died for refusing to deny their faith and worship false idols, as in the ancient church, but instead in order to protect the monastery's treasures from a band of violent brigands (SHOEMAKER, 2016, p.35)

[9] The Passion ef the Twenty Martyrs is thus a rather different sort of martyrdom from the others in this volume, and indeed from most other early Christian martyrdoms. The executioners here are not state officials or even an angry mob looking to lynch the Christians for their religious deviance. Rather, these monks are murdered by a group of brigands who have taken advantage of social and political disorder to plunder the monastery (among other targets) for its treasures. They do not attack the monastery because it is Christian; they attack it because they perceive that it is wealthy. They do not butcher and murder the monks in order to make them renounce their faith; they simply want them to hand over the treasure (SHOEMAKER, 2016, p.36) (grifou-se).

REFERÊNCIAS

ROSE, Martin. The Five Martyrs of Morocco and the bloody Miramamolin. 2017.

MACEVITT, Christopher Hatch. The martyrdom of the Franciscans: Islam, the papacy, and an order in conflict. University of Pennsylvania Press. 2020.

SAHNER, Christian C. Christian Martyrs Under Islam: Religious Violence and the Making of the Muslim World. Princenton University Press. 2018.

MOSS, Candida. The myth of persecution. Harper One. 2013.

SHOEMAKER. Stephen J. Three Christian Martyrdoms from Early Palestine. Brigham Young University Press. 2016.

EHRMAN, Bart. Forged: Writing in the name of God. Harper Collins. 2011.

WHEATCROFT, Andrew. Infidels: A History of the Conflict Between Christendom and Islam. Random House Publishing Group. 2003.

FLETCHER, Richard. Moorish Spain. Weidenfeld & Nicolson. 2015.

IHNAT, Kati. The Martyrs of Córdoba: Debates around a curious case of medieval martyrdom. History Compass. 2020.

MENOCAL, Maria Rosa. The Ornament of the World: How Muslims, Jews and Christians Created a Culture of Tolerance in Medieval Spain. Back Bay Books. 2003.