Quando a primeira expedição de reconhecimento muçulmano aportou na península ibérica, a casta dos soberanos visigodos havia se provado imprestável no seu papel de manter, mesmo que parcialmente, as estruturas urbanas, civis ou comerciais da Espanha Romana, brevemente preservada e administrada pelos primeiros conquistadores daquele povo germânico.

Ninguém, é claro, duvidaria à época da capacidade dos visigodos em fazer guerra; provavelmente a única coisa que sabiam fazer de forma eficiente. Conquistando e expandindo território na Lusitania, Vasconia e em várias partes da Gália Romana (incluindo Septimania, Aquitânia e afins), a seleta, pura e minoritária casta visigoda governava sobre uma heterogênea massa nativa de celtiberos, gregos, bascos, hispano-romanos, iberos, judeus, cartaginenses e imigrantes berberes e germânicos (estes últimos em sua grande maioria reminiscentes dos antigos conquistadores louros que antecederam estes novos). Apesar de comporem apenas 1 ou 2% de toda aquela vasta e diversa população, as antigas populações aborígenes tinham há muito perdido qualquer capacidade – e/ou interesse – de manejar armas e formar hostes. Para quaisquer fins, a guerra neste período era uma atividade exclusivamente gótica.

E apesar da economia ibérica, anteriormente uma das mais queridas joias do Império Romano, ter perdido quase todo o seu brilho, a economia do reino visigodo ainda se sustentava por um grande pilar: a escravidão, praticamente a única atividade que os visigodos conseguiam manejar tão bem quanto seus antecessores romanos, obtendo cativos de etnia eslava – de onde a palavra “escravo” originou-se como um homônimo –  e os colocando sob regime de trabalho forçado em grandes latifúndios; qualquer semelhança com o modelo ibérico colonial é, apesar de toda a sugestividade dos paralelos a serem encontrados, meramente coincidência.

Um dos exércitos mais eficientes do mundo, liderados por um jovem gênio militar norte-africano conhecido como Tariq ibn Ziyad, abriu caminho de conquista na península em 711, numa época em que as rotineiras guerras civis do Reino Visigótico, assim como os golpes de Estado que as precediam ou as encerravam, pareciam convidar os invasores ultramarinos a abocanhar uma terra rica e com um grande potencial, até então mal explorado.

A reação régia e organizada à invasão árabe-berbere – independente em caráter, mas agindo em nome do Califado Omíada (o único Estado Islâmico de seu tempo e um dos maiores impérios de sua época) – se deu na Batalha de Guadelete (712), onde duas culturas guerreiras se degladiaram com o destino de um reino à prêmio. Apesar da grande coalização visigótica que o rei golpista reunira em torno do seu estandarte, os exércitos do rei Rodrigo foram decisivamente massacrados, tendo o próprio monarca tombado no campo de batalha; um destino que, por sinal, as fontes cristãs atribuiriam à traição de uma ala de cavalaria visigoda que, ainda ressentida pelo turbilhão político que havia inaugurado a ascensão de Rodrigo, permitiu ao exército muçulmano explorar uma brecha que eventualmente ceifaria a vida daqueles orgulhosos guerreadores germânicos.

Em 717, seis anos após o desembarque dos novos conquistadores, os focos de resistência visigoda já haviam sido todos varridos e, com exceção de uma modesta faixa de terra acidentada ao norte, que pagava tributo aos novos ocupantes, a península ibérica se encontrava virtualmente inteira sob domínio muçulmano. Os poucos visigodos que não tombaram em combate e nem fugiram optaram por se render aos novos soberanos, chegando inclusive a formar os primeiros clãs e aristocracias muçulmanas locais; visigóticos em etnia, árabes em cultura e muçulmanos em credo.

Assim como os antigos soberanos germânicos, os muçulmanos eram nesta altura uma porção infinitesimal no mar demográfico das populações nativas. O avanço islâmico era rápido, mas também astuto: além pouca simpatia que as populações ibéricas mantinham nutriam por seus antigos conquistadores, a estabilidade dos novos era assegurada por um regime de partilha do poder local: cidades conquistadas eram governadas por representantes de todos os três ramos abraâmicos de fé (ie. cristãos, judeus e muçulmanos).

A tolerância religiosa e a preservação dos costumes e identidades locais foram decisivas na obtenção da submissão e da cooperação dos locais; um desfecho quase messiânico para a população judaica, mais especialmente, que sofria intensamente com um histórico de políticas reais e eclesiásticas de expropriação de bens; alienação comercial, social e financeira; escravidão; expulsão e morte. Inclusive, os visigodos teriam acusado e exibido provas de que a população judaica teria estimulado a vinda dos conquistadores africanos para a Espanha, algo que muito compreensivelmente foi entendido como a mais alta das traições, dando uma justificativa moral longamente desejada pelo Catolicismo Visigótico que legitimasse as perseguições de longa data empreendidas contra aquela população não-conformista.

O empreendimento do brilhante Tariq ibn Ziyad na Espanha Visigótica teve resultados grandiosos, seja nos feitos, seja nos espólios. Quando cabeças do rei visigodo e de seus generais, assim como um mar sem fim de espólios de toda a sorte, foram enviados à capital do Império Muçulmano em Damasco, a corte Omíada – ainda desgostosa dos seus recentes fracassos colossais contra o Império Bizantino – reagiu na mais hipócrita das invejas. A queda de Rodrigo na Batalha de Guadelete (712), de fato, mereceu uma eternização solene no Afresco dos Seis Reis, que retratava a prevalência da ‎Al-Ummah Al-Islamiyah califal sobre soberanos infiéis (do imperador persa sassânida até o césar bizantino e o rei dos etíopes), mas os soberanos omíadas tinham uma postura um pouco ingrata – para não dizer invejosa – com conquistadores subalternos que realizavam feitos maiores que os deles mesmos. Tariq foi injustamente despojado de suas glórias e bens, e finalmente alvo do obscurecimento de uma dinastia Omíada um tanto complexada com seu próprio ego.

Reconstrução moderna do afresco dos Seis Reis, na atual Jordânia, estudada por pesquisadores ocidentais a partir do final do século XIX. Apesar do seu estado de degradação avançada, é possível identificar a identidade de ao menos 4 figuras, graças às inscrições sobre elas.

 

A mentalidade popular falha em compreender real dimensão da conquista islâmica por pelo menos duas razões, relacionadas entre si: até onde se estenderam as campanhas daquela época e até onde se estendia o próprio reino visigótico.

A nossa Gothia, longe de corresponder a um antecedente real da Espanha, estava longe de ser um Estado-Nação. Associa-se o domínio visigótico ao confinamento ibérico tanto por ignorância do período quanto por associar esses reinos com os reinos feudais e pós-feudais que se desenvolveram naquelas mesmas áreas. Da mesma forma como Reino Franco não é uma versão antiga da França, o Reino Visigótica da Hispania não era uma versão antiga da Espanha; isto poderia ser reforçado de várias formas, mas bastaria mencionar que o próprio domínio visigótico também se estendia a “França”; ou, mais propriamente dito, a Gália.

Reino Visigótico às vésperas da invasão muçulmana. A província transmontana da Septimania, na Gália, pode ser observada na figura.

A Septimania Visigótica, estabelecida na antiga província romana da Gallia Narbonensis, correspondia a uma das várias províncias galicanas que os visigodos chegaram a controlar. Todavia, com o expansionismo franco de Clovis e de seus sucessores, esse domínio foi reduzido a Septimania, uma província um tanto quanto curiosa para aquelas épocas: além de preservar melhor a sua identidade gaulesa, a Septimania era uma terra um tanto quanto retrógada em termos religiosos: a população cristã era majoritariamente adepta de um arianismo que já havia sido abandonado pelos próprios visigóticos. Além do problema da população herege, a Septimania também era um reduto de religiosidade pagã, tanto celta quanto romana, algo praticamente impensável no século oitavo. Ela ainda hospedava diversas crenças supersticiosas e mágicas, não exatamente exclusivas de qualquer uma das religiões descritas anteriormente.

Quando Rodrigo desapareceu e a Hispania foi tomada pela conquista islâmica, foi na Septimania que os últimos reis visigóticos foram se estabelecer. Mas não durou muito para as hostes muçulmanas darem cabo dos últimos resquícios daquele reino germânico, e já em 716 atravessou-se os Pirineus para oficializar o sepulcro. Embora a conquista muçulmana tenha sido grandemente beneficiada pelo apoio da população pagã e cristã ariana, a Septimania só seria finalmente subjugada em 720. Com posses na Gália Mediterrânea, a nova província movimentaria comércio marítimo, marinha de guerra e pirataria, além de servir de base para incursões de reconhecimento e saque em territórios de outros potentados, permitindo futuras campanhas de conquista. É neste cenário que encontraríamos a figura de Odo, duque da Aquitânia e uma das figuras mais subestimadas da História Cristã.

A Aquitânia em si constitui um dos clássicos, porém frequentemente ignorados, casos em que soberania de jure não implicava soberania de facto. Estabelecida na Gália, a Aquitânia era uma dessas antigas províncias romanas adquiridas pelos visigodos, mas eventualmente conquistadas destes pelos francos.

Todavia, manter a efetividade dessa soberania numa época onde os próprios reinos da Alta Idade Média eram repletos de guerras civis e fratricídio sempre se provava uma tarefa árdua. Durante mais uma dentre outras várias guerra civis na Gália dos Francos, o ducado da Aquitânia se declarou independente em 715. Seu duque, Odo, era um ambicioso senhor que fez guerra tanto contra visigodos quanto contra francos, criando um “reino” que se estendia desde o país basco até o rio Loire, tendo Tolouse como sua capital.

Quando a Septimania Visigótica sucumbiu, os muçulmanos não esperaram muito para projetar-se contra seu próximo alvo. No ano seguinte, o governador omíada e gênio militar Al-Samh ibn Malik al-Khawlani lançou uma organizada campanha contra o Ducado, mirando diretamente na capital ducal; a intenção era que, caindo Tolouse, o ducado estaria aberto e todas as demais cidades seriam varridas no decorrer daquela campanha.

Quando as tropas de Al-Samh cercaram Tolouse, seu duque não se encontrava dentro dos muros da capital sitiada. Interpretada como uma fuga covarde, o walid baixou sua guarda, relaxando a rotina dos batedores e das defesas externas do acampamento que cercava a capital por pensar que, com o duque em fuga, a cidade foi deixada à própria sorte e a conquista se tornaria, então, uma questão de tempo.

Mas Odo não havia fugido, sua retirada estratégica se deu com o propósito único de buscar ajuda contra o invencível exército daquele poderoso Califado Omíada transcontinental. Embora tenha apelado aos seus suseranos francos, destes ele não recebeu quaisquer ajuda; Carlos Martel, estilizado Duque dos Francos e Prefeito do Palácio (um título que denotava que era Carlos, e não o rei, quem realmente governava como soberano do Reino), deixou o duque, um antigo rebelde, à própria sorte. Mais do que qualquer coisa, temos um indicativo decisivo de que não só as autoridades daquele tempo estavam alheias a qualquer percepção de uma ameaça à “civilização cristã”, como também mesmo desavenças locais foram mais decisivas na formação do arranjo geopolítico que uma ameaça externa.

Odo não se abalou pela negligência franca, recrutando gascões, aquitanos e francos nos próximos três meses para auxiliar Tolouse. Num ataque surpresa, Odo atacou a retaguarda do acampamento sarraceno enquanto a própria guarnição da cidade abriu seus portões para atacá-los do outro lado. O que se seguiu foi a completa derrota das forças muçulmanas e a morte de mais da metade de seu exército. Al-Samh foi capaz de romper a estratégia de martelo-e-bigorna, fugindo com uma modesta escolta de sobreviventes até Narbona, a capital provincial da Septimania Muçulmana; a gravidade dos ferimentos que recebera na emboscada, no entanto, eventualmente resultariam na sua morte.

“Odo era um franco de herança, mas sua família havia residido na Aquitânia por tanto tempo que eles já se identificavam totalmente com seus súditos latinizados e em grande parte célticos. O duque estava próximo de seus sessenta anos quando al-Samh invadiu seu ducado. [...] Por conta de ter ficado no lado perdedor de uma disputa de poder entre seus primos francos alguns anos antes, Odo agora enfrentava a crise mais grave de sua vida sem perspectiva de assistência de fora da Aquitània.

O duque Odo foi o primeiro governante cristão – à leste dos Pirineus – cujo comando de homens montados no campo provou ser mais do que um desafio para os invasores. [...] Os Andalusos precisariam de uma década de recuperação e preparação para retomar seu avanço no além-Pirenéus. Quando isso ocorreu, Abd al-Rahman ibn' Abd Allah al-Ghafiqi, o oficial que salvou parte do exército de al-Samh [em Toulouse], lideraria a força de invasão. A vitória de Odo foi um ensaio para um confronto que se daria alguns anos depois, no qual os historiadores atribuiriam um significado épico. Seu sucesso retardou um avanço que poderia, de outra forma, ter adquirido um ímpeto reforçado que se tornaria imparável. Quando os muçulmanos voltaram ao ataque, galo-romanos e francos se curvaram à necessidade de cooperação.” (LEWIS, 2008)

Embora Odo tenha sido parabenizado pelo Papa com as mais altas honras e estilizado “Odo o Grande” pelo desfecho no Cerco de Toulouse (721), por meio do qual uma vitória como a de Tours-Poitiers (732) talvez fosse impossível, o Cerco perderia grande parte de seu significado real e o esforço do duque seria esvaziado por razão dos acontecimentos situados na década seguinte.

Por volta de 730, a vitória de Odo fez pouco para mudar a relação de hostilidade entre o Prefeito do Palácio, que ainda o observava como um rebelde. Como bem constata Lewis:

“Odo e os magnatas da Aquitânia enfrentavam opções desanimadoras: subjugação pelos muçulmanos ou anexação pelos francos” (Ibid)

Nessa situação, o Ducado da Aquitânia estava rodeado de inimigos em todos os lados. Foi neste contexto que o duque fez algo que, para a época, poderia ter causado um dos maiores escândalos do século: Odo estabeleceu contato com um governante rebelde na Catalunha Muçulmana, de nome Uthman ibn Naissa – ou Munuza ficou conhecido entre cristãos – e deu a própria em casamento para o senhor berbere. Como tanto Munuza quanto Odo tinham uma relação de insurgência com seus suseranos, o casamento firmou uma aliança de ajuda mútua onde um ajudaria o outro com seus respectivos inimigos, sejam eles quais fossem.

Após derrotar os saxões em 731 e poder voltar suas atenções ao ducado rebelde, Carlos Martel usou o casamento da filha de Odo com Munuza como pretexto para quebrar o acordo de paz estabelecido. Odo, incapaz de enfrentar a máquina de guerra incessante criada por Carlos nas décadas anteriores, sofreu derrotas em campo contra o Prefeito do Palácio e teve de assistir Bourges ser capturada e a Aquitânia ser saqueada duas vezes antes de Carlos voltar para a Francia.

Paralelamente a isso, os omíadas reuniram forças para expurgar a insurgência de Munuza na Cerdanya. No mesmo ano em que a Aquitânia foi abalada e saqueada, Abdul Rahman Abdullah al-Ghafiqi prevaleceu na Catalunha, enviando a cabeça de Munuza e a filha de Odo como prisioneira para o harém omíada em Damasco, na Síria. Era uma péssima sincronização para Odo.

“Para Odo e uma massa crítica de nobres similarmente alarmados, o acordo nupcial de uma Catalunha independente aliada a uma Aquitânia independente era um desfecho perfeito contra a subjugação árabe e franca. Em Metz e em Córdoba, previsivelmente, houve grande consternação. Na primavera de 731, um furioso Carlos o Bastardo levou sua cavalaria pesada austrasiana na Borgonha, passando como um rolo compressor sobre conscritos borgonheses e avançando ao ocidente para visitar uma punição similar aos aquitânos. No seu caminho, os francos causaram caos através da Aquitânia conforme eles pilhavam vilarejos camponeses e se apropriavam de grãos e rebanhos para sustentar cerca de 5 mil matadores veteranos.

O duque da Aquitânia perdeu mais do que uma batalha para o Prefeito do Palácio da Austrasia no verão de 731. A Austrasia esteve em guerra quase ininterruptamente desde a vitória de seu governante em Soissons, doze antes. Sólidos e disciplinados, a infantaria franca ia para a batalha amparada por mais cavalaria pesada do que o números totais dos inimigos em campo.” (Ibid)

Se Carlos realmente se importava por algo como “a defesa da Cristandade”, sua conduta naquele ano seria decisiva para determinar os resultados de um evento de proporções cataclísmicas. Em 732, um ano após o fracasso da liga insurgente Aquitânia-Cerdanya, a autoridade omíada na Espanha e na Septimania Muçulmana organizou uma campanha de rapina pela Vasconia e a própria Bordeaux seria capturada. Odo lutaria contra Abdul Rahman na Batalha de Bordeaux (732), mas seria esmagado e posto em fuga pelo exército numericamente superior do novo governador de Al-Andaluz.

“Desta vez, Odo e seus homens foram incapazes de parar a torrente andaluza. Sua falha não é nem surpreendente, à luz da martelada que os austrasianos desferiram no verão anterior” (Ibid)

Antes de resumir sua marcha até Tours, as tropas muçulmanas saquearam todos os ricos mosteiros e catedrais do norte da Aquitânia, o que apesar de causar grande escândalo entre a comunidade cristã da época, atrasou as hostes muçulmanas e permitiu um tempo precioso para que Odo engolisse qualquer lastro de orgulho que ainda existisse e se submetesse incondicionalmente à autoridade de Carlos Martel em troca de ajuda.

“Quando notícia da invasão muçulmana chegaram ao Duque Charles, ele se encontrava numa campanha muito longe, no Danúbio. A notícia veio com um apelo desesperado de Odo por assistência [...] Com muitos milhares de homens já recrutados e outros convocados posteriormente, ele fez uma marcha forçada com seu exercito por Frankland até a Aquitânia. [...] Odo esperava a chegada do Prefeito em Tours” (Ibid)

A batalha que se desenvolveu nos arredores de Tours durante dias terminou com uma vitória decisiva para a coalização de francos e aquitânios, mas Odo, quando não ofuscado pela vitória da década anterior que permitiu a viabilidade da vitória em Tours, seria lembrado pela derrota em Bordeaux e simplesmente acusado de trair a cristandade por seu acordo com Munuza.

“Ele foi deposto de seu devido lugar na história. Que melhor corroboração do aforismo de que ‘são vencedores que escrevem a história’ quando chegou até nós as Continuações de Fredegar e a História dos Lombardos de Paulo o Diácono? O autor anônimo de Quarto Fredegar era um borgonhês que leu as políticas do tempo precisamente. Para ele, assim como Paulo o Diácono depois, Charles de Austrasia salvou a Cristandade, e o duque da Aquitânia era um arrogante tolo que ameaçou o futuro da Europa ao convidar os muçulmanos para a Gália. A vitória de Odo em Toulouse em 721 – sem a qual muito da Gália poderia ter desaparecido dentro da Dar al-Islam – quase desapareceu dos registros. Ela não servia ao propósito dos cronistas apoiadores do Duque Charles, [...] [Odo] convidou o desastre tanto para galo-romanos quanto para francos. “ (Ibid)

Mas, se por um lado pudemos descontruir o mito em torno do protagonismo da Batalha de Tours (732), um outro mito ainda precisa ser endereçado: de que Tours teria posto um fim no expansionismo islâmico. Pelo contrário, em certo sentido Tours-Poitiers causou uma nova onda de expansionismo, ao invés de travá-lo:

“A magnitude impressionante da vitória foi indiscutível, mas o verdadeiro peso de Poitiers na balança da história permaneceria incerto por mais de meio século, pela razão convincente de que os árabes e berberes continuariam vindo. Menos de dois anos depois de Poitiers, um exército de bom tamanho comandado pelo novo emir de al-Andalus, um 'Abdul Malik dos poderosos al-Fihri – um subclã dos Coraixitas– desceu as montanhas para dentro da Aquitânia, empenhados em vingar Poitiers. O exército de Odo pegou os muçulmanos no sopé dos Pirenéus, maltratando-os tanto que o emir foi chamado de volta à Damasco, em desgraça. Foi a despedida da bravura de Odo.

Mas o ritmo da guerra santa não foi interrompido. Longe de acabar com as incursões islâmicas, a Batalha de Poitiers as acelerou. Por quase toda a década após o massacre nas encostas de Moussais-la-Bataille, francos e latinos da Grande Terra foram pressionados ao ponto da quase-destruição por ataques cada vez maiores e estrategicamente mais arriscados de al-Andalus.

Em vez de ser o término definitivo, 732 representou um pico significativo no gráfico das invasões islâmicas. A paciência de Hisham I [Califa Omíada na época do Estado-Império Unificado da Fé Islâmica] havia se esgotado. Damasco ordenou que Córdoba retomasse a marcha contra os infiéis. Foi uma época de aperto geral do império e de expansão dos muros da Dar al-Islam, a fim de adicionar mais contribuintes às fileiras dos dhimmis.

O próximo emir em Córdoba depois de Abdul Malik ibn Qatan al-Fihri não perdeu tempo liderando um exército em Dauphiné e na Borgonha, tomando Lyon no processo. Este emir era outro Uqba, não relacionado com Uqba ibn Nafi, conquistador do Magrebe, mas possuidor de perspicácia militar igualmente superior. Ao enviá-lo do governo de Ifriqiya para al-Andalus em 734, o califa deixou seus projetos claros a Uqba ibn al-Hajjaj al-Saluli. O impedimento franco ao avanço do império deveria ser liquidado

[...]

 Uqba implementou um ataque coordenado em duas frentes contra a Gália. Por ordem dele, Yusuf, o governador de Narbonne, saiu da Septimania, a província de esquina do Mediterrâneo e um apêndice do emirato de Córdoba, e novamente capturou Carcassonne e Nîmes. Uqba invadiu a Aquitânia. Para os francos, o perigo foi ampliado pelo sucesso de Yusuf em aliciar colaboradores cristãos na jihad.

Maurontus da Provença, que se autodenominava duque de Marselha, constituía o típico magnata costeiro que, como Odo da Aquitânia, entendia os francos católicos como uma ameaça imediata maior à liberdade do que os muçulmanos. O conluio de Maurontus tornou possível um condomínio sarracênico de vilas e cidades aliadas e conquistadas que contornavam o Mediterrâneo de Narbonne a Marselha e além. O litoral além de Marselha parecia destinado a servir como ponte para uma Itália muçulmana - a pinça do norte no grande projeto de Damasco para quebrar a ‘fortaleza Constantinopla’. Subindo o vale do Ródano, a expedição de Yusuf pilhou a Borgonha em um curso para o norte que ameaçava a antiga joia romana, Arles.

Enquanto isso, Uqba avançou pelo mapa, através da Borgonha e em Dauphiné, capturando Valence no Ródano e devastando cidades e vilas ao redor de Vienne. Grande parte da Gália esteve à beira do colapso. No momento em que Yusuf de Narbonne avançava pela metade inferior da Gália, Carlos, o Martelo, estava ocupado naquele momento embaraçoso em campanha contra os frísios.

Reunindo seus austrasianos no fim do verão de 737, Carlos e outro filho ilegítimo de seu pai, o duque Childebrand, lideraram exércitos separados no Vale do Ródano para repelir os invasores. Childebrand, que do pouco que sabemos era um militar habilidoso, libertou Avignon após um breve cerco e se apressou em se conectar com Carlos para a invasão da Septimania. Vendo sua retaguarda ameaçada, o obstinado Yusuf recuou para sua capital. Uqba também se retirou para os Pirineus, levando à escravidão milhares de mulheres e crianças cujos maridos e pais os muçulmanos haviam matado. Uma vez em Córdoba, ele não perdeu tempo em responder ao cerco dos francos à Narbonne, enviando um esquadrão naval para substituir a guarnição. Os francos cortaram a força de socorro em pedaços no pântano entre a costa e a lagoa Berre. Os homens de Carlos e Childebrand foram capazes de cercar a capital de Yusuf completamente, impedindo que Narbonne recebesse auxílio por água e por terra.

Mas Narbonne resistiu ao arsenal de máquinas de cerco dos francos e, mais uma vez, os ‘homens selvagens das florestas’ forçaram Charles a correr para o norte com seu exército. Narbonne não apenas se manteve firme, como permaneceria uma fortaleza muçulmana por mais vinte anos. A jihad de 739-40 ultrapassou em muito Poitiers e as repetições do final dos anos 730 em escala e estratégia. Nós sabemos disso, mas sem conhecer muitos detalhes específicos. Sabemos que Carlos Martel considerou a invasão tão ameaçadora a ponto de enviar mensageiros a Pavia com um apelo de ajuda aos lombardos [adeptos da heresia ariana]. Até então, havia pouco contato e menos afinidade entre os dois povos germânicos, francos e lombardos.

O exército que Uqba liderou do Ebro no outono de 739 era maior e mais endurecido pelas batalhas do que qualquer força de invasão andaluza anterior. Ele se abateu sobre Lyon, recapturando-a, e passou a ameaçar Dijon enquanto devastava grande parte da Borgonha. Mais uma vez, Yusuf de Narbonne e seus confederados cristãos subiram o Ródano até a província alpina de Dauphiné e seguiram em direção ao Piemonte italiano. A gravidade da situação trouxe a ansiosamente esperada resposta positiva dos lombardos. Seu rei, Luitprand, trouxe seus homens dos Alpes para se juntar aos francos em Dauphiné, onde foram posicionados no caminho dos durões sarracenos de Yusuf. Além de seu aparente sucesso em forçar os muçulmanos a voltar para a Septimania e a expulsão de Maurontus de seu ducado, irritantemente pouco mais se sabe sobre essa interceptação singular do inimigo. A abrupta retirada islâmica para trás dos Pirineus exige uma explicação, [...] o que é certo, no entanto, é que o retorno das legiões árabe-berberes à Grande Terra [ie. Europa Ocidental] era uma certeza iminente.

Uqba, o decimo-sexto amir al-Andalus, morreu em Córdoba poucos meses antes de Carlos Martel receber seus últimos ritos. Nenhum dos seus 5 sucessores comandaria expedições militar à Grande Terra onde a jihad foi, por diversas vezes, frustrada.” (Ibid)

A presença muçulmana na Gália se estenderia até 759, tendo sua expulsão levada a cabo pelo filho de Carlos Martel, Pepino o Breve, o primeiro Prefeito do Palácio a assumir, definitivamente, a função de rei dos francos.

Uma das grandes dificuldades dos francos para a conquista da Septimania vinha do apoio da população local aos soberanos muçulmanos e a rivalidade histórica que os visigodos, ainda residentes na região, nutriam por conta do expansionismo franco; e diga-se de passagem, os saques que Charles Martel promoveu na região quando percebera a impossibilidade de conquistar Narbonne só fizeram dilatar esse ressentimento.

Mas o que Carlos Martel não conseguiu fazer por destreza de armas, seu filho executaria por um arranjo mais astuto de diplomacia e campanhas estratégicas. Pepino cooptou um número de condes visigodos a se rebelar contra a soberania da Córdoba Muçulmana e declarar lealdade à soberania franca, uma mudança de aliança facilitada pela nova abordagem dos francos em preservar os costumes e leis góticas que vigoravam na região. Com exceção de Narbonne, que possuía uma guarnição muçulmana, as outras cidades viriam a ser incorporadas em domínio franco. A partir daí, Carlos cercou Narbonne por terra.

Devido ao abastecimento por mar, a Narbonne muçulmana conseguiu sobreviver por um prolongado cerco que durou de 752 até 759. Os conflitos internos entre nobres visigodos aliados aos muçulmanos ou aos francos passou a prevalecer este últimos quando os visigodos perceberam que nenhum auxílio militar viria de Córdoba, na época já ocupada por lutas internas e rebeliões dentro da própria Península Ibérica. Diante do cenário de abandono, os defensores visigodos de Narbonne acabaram assassinando os defensores muçulmanos andaluzes da cidade e abriram seus portões ao conquistador franco, que encarregou o governo da cidade aos próprios nobres locais. Com a Septimania anexada e assegurada, Pepino poderia dar continuidade ao projeto de seu pai: anexar a Aquitânia e submeter os filhos de Odo o Grande.

Bibliografia:

LEWIS, David Levering. God's Crucible: Islam and the Making of Europe, 570-1215. W. W. Norton, 2009. Cap. 5, 6 e 7.

COLLINS, Roger. The Arab Conquest of Spain, 710-797. Blackwell Publishing, 1989.

COLLINS, Roger. Visigothic Spain, 409-711. Blackwell Publishing, 2004.