Não há homens que respeitem mais os pactos que os árabes. Esta é a maneira como eles fazem: um homem fica entre as duas partes e corta a palma de suas mãos com uma pedra afiada. Ele então pega um pedaço de lã do casaco de ambos e espalha com o sangue sete pedras que ficam entre eles, chamando, enquanto isso, por Dionísio  e a celestial Afrodite.”

(Heródoto)

Antes do advento da segunda maior religião mundial, o Islã, da vinda de seu Profeta, Muhammad (sas), de suas mesquitas, madraças e abluções, havia uma religião – não tão concisa e elaborada quanto a que viria, evidentemente – comum à grande maioria das tribos árabes, com seus próprios templos, estelas e estátuas do tamanho de obeliscos, sacerdotes, rituais e costumes. Tal religião guarda muitas semelhanças com o próprio Islã, mas acabou sendo soterrada nas quentes areias da Arábia, enquanto os árabes, guiados por sua nova fé, lançavam-se à conquista de Impérios. Estamos falando da Religião Tradicional Árabe, ou politeísmo árabe, também conhecido como paganismo árabe. Com sua miríade de Deuses e Nomes Divinos, tribais, reais e nacionais, esta foi a religião dos árabes das areias de Palmira até as montanhas do Iêmen desde tempos imemoriais – ou não. Mesclada a costumes sociais e práticas mágicas, com diversos Deuses que portavam vários nomes e títulos, teremos uma visão-geral dela.

Antes de estudarmos a religião dos árabes, é necessário ter um vislumbre do contexto em que sua devoção estava inserida pois, como dizia o pai da sociologia contemporânea Émille Durkheim, as crenças religiosas (suas formas, ao menos) espelham as estruturas societais que as professam: calor, vastidões inóspitas, poucas fontes de água e de comida. Em virtude disso, a sociedade árabe, seja ela mais urbana ou beduína, era altamente militarizada, como nos dá o relato do historiador Robert G. Hoyland, citando um árabe da época: “aquele que não mantém seu inimigo longe de sua cisterna com sua lança e espada, é derrotado e falido; aquele que não usa a força bruta, não será respeitado por seus homens.” (M. Zuhayr).

 Estar sempre preparado para lutar e defender sua família, sua tribo, suas posses e sua honra, era a regra. Detentores, ainda, de um forte espírito independente e anti-autoridade, sua sociedade era homogênea e pouquíssima estratificada, onde até mesmo reis se prestavam a tarefas que seriam vistas como “baixas” ou não-dignas de um monarca em outras nações, como servir convidados em uma festa ou ajudar a organizar provisões para uma expedição.

 “Eles nunca, em época alguma, aceitaram um estrangeiro como seu soberano” (Diódoro 2.48). Isso não significa, todavia, que a sociedade era anárquica, com a prevalência da guerra e das contendas, pois essas características eram variáveis conforme o local de habitação e as condições de cada tribo: sedentarismo, comércio, agricultura, lucro e contato com outras nações eram sinônimo de maior organização e, consequentemente, poder. Generosidade e hospitalidade eram (e ainda são) virtudes cardeais da cultura árabe – faltar com hospitalidade ou generosidade era a ruína de um homem -. 

A sociedade não tinha divisões de trabalho além dos familiares: ser ferreiro, joalheiro ou o que o valha do gênero era trabalho mal-visto, geralmente delegado a escravos e/ou estrangeiros, como os judeus, além de que todas as cooperações e obrigações tanto materiais quanto morais eram derivadas dos lações de sangue, do clã. Isso também nos diz o porquê do fato de as sociedades hejazis, nabateias – os construtores da famosa cidade de Petra, na atual, Jordânia, altamente helenizados – e do sul da península – mais sofisticadas e urbanas – terem os panteões e iconografias mais complexas.

A sociedade árabe no que diz respeito a relações amorosas, maritais e coisas do gênero era bem “livre”, sem formas muito definidas. Os árabes não eram endógamos, isto é, os membros de uma tribo não casavam entre si, apenas, e nem exógamos, nem casavam apenas com estrangeiros. Apesar disso, casar-se com pessoas de fora com costumes muito diferentes não era muito bem visto. Geralmente, num casamento, a mulher juntava-se à casa e à tribo do marido, mas isso não constituía uma regra. Havia o pagamento de dote pela família do noivo, prática que é mantida até hoje, além de que existia tanto a monogamia quanto a poliginia (um homem, várias esposas) quanto a poliandria (uma esposa, vários homens, as vezes com uma esposa para dois irmãos, por exemplo) e também “casamentos temporários”, prática geralmente ligada a soldados mercenários ou viajante (prática mantida até hoje dentre muçulmanos xiitas).

O politeísmo árabe é conhecido por ser “superficial”, isto é, não nos foram deixados mitos nem especulações teológicas (com exceção daqueles locais em contato com o mundo helênico, como a cidade multicultural de Palmira), desprovida de um corpo mitológico. O que temos além dos ídolos são inscrições com nomes e títulos divinos, além de inscrições votivas e dedicatórias, algumas acompanhadas de pedidos. Tal fato também era acentuado pelas condições em que a maioria dos árabes viviam: a vida diária era uma luta pela sobrevivência, sem tempo para divagações e especulações metafísicas, portanto, era necessário que a relação entre Homens e Deuses fosse eficiente e benéfica.

Segundo a tradição islâmica, tais necessidades de respostas imediatas foi o que levou os árabes, filhos de Ismael (filho primogênito de Abraão, fundador do monoteísmo), que durante um tempo seguiram uma religião monoteísta, à idolatria, em especial, através de um homem: Amr ibn Luhay. Segundo o historiador islâmico Hisham ibn al-Kalbi do século VIII, os árabes eram monoteístas e congregavam em torno de um altar construído em Meca por Abraão (Ibrahim) e Ismael (Ishmail), a Caaba.

Após a cidade se tornar populosa demais, o povo de Ismael separou-se, cada um para seu canto da Arábia, levando consigo pedras da Caaba como forma de recordação. Uma vez estabelecidos, eles passaram a circular (andar em círculos) ao redor destas pedras e rezar, assim como faziam em Meca, o que acabou levando-os a adorarem as rochas como deuses. Um certo Amr ibn Luhay, que seria pai da tribo dos Khuzares, que detinha as chaves da Caaba, foi vital no estabelecimento do politeísmo árabe, segundo a tradição islâmica, pois fora ele quem deu à nova religião sustância e práticas diversas. Ibn al-Kalbi em Sua obra O Livro dos Ídolos nos narra como foi a aceitação de ibn Luhay dos “novos deuses”:

‘’Ele então tornou-se muito doente, e foi-lhe dito: “Há uma nascente quente em al-Balqa, em al-Sha’m (Síria); se fores lá, serás curado”. Então lá foi ele, banhou-se nas águas mornas, e foi curado. Durante sua estadia, ele notou que os habitantes do local adoravam ídolos. Ele, então, os questionou dizendo: “o que são estas coisas?”Ao que foi respondido: “a eles rezamos pela chuva e deles nós pedimos vitória sobre o inimigo.” Ele então pediu para que lhe dessem [alguns desses ídolos], e eles o deram. Ele retornou à Meca e os erigiu em torno da Caaba.’

Ele também narra que a tribo dos Kalb adotou a Wadd (um deus lunar) como seu deus, os Madhhij e o povo de Jurash adotaram a Yaghuth, os Khaywan adotaram a Ya’uq, os himiyaritas adotaram Nasr e Ri’am.

Como foi corretamente narrado, cada tribo tinha uma ou mais deidades patronas, a quem prestavam culto e se consideravam filhos dela(s). Cada povo, assim como cada tribo, tinha um deus tutelar, a quem dava prioridade de culto: Almaqah para os sabeus, Wadd para os minaítas, ‘Amm para os qatabânios, Dushara para os nabateus e Sayin para os Hadramitas, com estes cultos sendo ordenadores sócio-políticos de coesão, lei e dever na sociedade árabe, marcada pela profunda religiosidade, que permeava todos os aspectos da vida – os Deuses pareciam serem realmente próximos dos árabes!

 Isto é, a religião era uma das poucas coisas que conseguia unir a fragmentada estrutura nacional dos árabes. Haviam muitos Deuses que eram cultuados em várias localidades, não apenas em uma, como era o caso de ‘Athtar, provavelmente o mais proeminente de todos, sendo o soberano do trovão e do clima, bem como da guerra, cujo culto era espalhado por toda a península arábica, tendo também primazia sobre os outros Deuses (ele, que é o deus dos raios e primaz dos Imortais, pode ser facilmente comparado a Zeus e Júpiter). Nas inscrições de alguns dos antigos reis de Sabá (atual Iêmen) ocorre várias vezes a frase “quando ele ofereceu um banquete (‘lm) para ‘Athtar”. A mais prestigiosa ocasião desse evento descrito se deu no templo de Jabal al-Lawdh na região de Jawf, onde havia várias cortes com várias fileiras de bancos. O banquete em questão foi organizado pelo governante sabeu (não confundir o povo sabeu com a religião sabeia) e estava ligada ao “pacto de união” (gw), uma cerimônia cujo objetivo era juntar as diversas tribos da federação dos sabeus e garantir a segurança dos santuários sob uma tocaia conjunta. Era sob a égide de ‘Athtar que o pacto era selado, pois ele estava sobre todos os outros Deuses locais e tribais, sendo em sua honra que o banquete fora feito, possivelmente também às suas custas, uma vez que era extremamente comum que os santuários dos Deuses “pagassem” pelo banquete, isto é, o financiassem com os seus próprios fundos (administrados pelo seu templo). Como já foi dito mais acima, era comum em sociedades mais desenvolvidas, como as do sul da península, terem um panteão mais vasto e desenvolvido; já as sociedades mais simples, como a dos beduínos, tinham panteões mais fechados e se refugiavam mais em uma ‘deidade tutelar’, local e, muitas vezes, familiar.

Hubal era deus da guerra, cujo centro de culto ficava na Kaaba, em Mecca, sendo também o patrono da cidade; junto dele no Hejaz estava Manat; Allat em Hawran e no deserto sírio. Shay al-Qawm, o “protetor do povo”, era uma deidade que zelava por aqueles que estavam longe de seus lares, seja em viagem, comércio ou em campanhas militares. O culto de Manat (Manah ou Manawat), antiquíssimo (ibn al-Kaim a considera “o mais antigo dos ídolos”) acabou confundindo-se, mesclando-se ou sendo suplantado pelos cultos a Allat, deusa da fertilidade e al-‘Uzzah, a “Afrodite” semita, na Arábia (exceto na Síria).

Havia também os espíritos ou entidades guardiãs de tribos, acampamentos, oásis etc chamados no sul da Arábia de “mndh’t”, e os ancestrais de uma família ou tribo, também venerados. No norte da Arábia, são mencionados com o nome de ginnaye: “os ginnaye da vila de Beth Fasi’el, os bons e recompensadores deuses.” (Hoyland).

Relacionados a esses espíritos, estão os famosos djinns, os “espíritos selvagens” do fogo e da água, habitando geralmente em desertos, ruínas e oásis, que podem ser benéficos ou maléficos. Sua aparência ia desde uma massa ou forma geométrica negra até criaturas antropozoomórficas, que habitavam em montanhas e desertos e atacavam aqueles azarados ou ousados que se distanciavam das estradas. Para o Islã, muitos os deuses cultuados na Arábia pré-islâmica eram djinns, como dito no Alcorão: “as pessoas adoravam os djinns e era nos djinns em quem a maioria cria.” (Qu’ran 34:41). Havia um tipo de “djinn guardião”, um djinn pessoal, chamado de qarin que, semelhante ao genius romano e o daemon grego, era responsável por guarnecer a pessoa com quem era nata durante sua vida, nascendo com ela, exercendo também considerável influência sobre seu protegido. Tanto na crença pré-islâmica quanto no Islã, os djinns são bem parecidos com os humanos: nascem, vivem, se reproduzem e morrem, assim como fazem os shedim do folclore judaico.

Um povo bem ligado ao comércio e com muita interação com os estrangeiros, os árabes por vezes adotavam deuses de outros povos, como o culto da deusa egípcia Ísis, popular na Nabateia. Outra deusa muitíssima popular entre os nabateus era al-‘Uzzá, também uma das deusas dos coraixitas e da Caaba, citada até mesmo no Alcorão.

Tanto a iconografia quanto os atributos de Al-Uzzá eram influenciados pela grega Afrodite e mesclados com o culto local: uma deusa amorosa, porém guerreira, quando necessário, e isso não é por acaso: as trocas comerciais e, inevitavelmente, as culturais, eram intensas, especialmente na pártia dos Nabateus, que os romanos chamavam de Arabia Petrae (Arábia Rochosa). Lá, não apenas a religião era helenizada, como a própria cultura e arquitetura também seguiam um padrão clásico-helenístico.

Com isso, os estrangeiros também traziam seus deuses para terras arábicas. Em Palmira, um dos grandes centros cosmopolita da época, havia uma multitude de deuses, desde árabes, fenícios e mesopotâmicos até gregos, romanos e o Deus único dos judeus. A tríade suprema de Palmira, estabelecida em pelo menos A.D. 32 era composta por Bel, Yarhibol e Aglibol, cujos nomes e títulos eram diversos, mas permaneciam supremos, com Bel sendo o “cabeça”. Através de especulação teológica e, talvez, política, Bel foi estabelecido como o Senhor Supremo de Palmira e seu diverso Panteão, com Yarhibol e Aglibol como seus acólitos representando o Deus-Sol e o Deus-Lua, respectivamente.

Tais especulações teológicas emergiram, segundo registros textuais, na segunda parte do primeiro milênio antes da Era Cristã. O Templo de Bel em Palmira era conhecido como “A Casa dos Deuses” pois abrigava diferentes Deuses das mais diversas tribos e povos, dentre os quais: a deusa árabe Manawat (Manat); Herta, deusa babilônica obscura; Nanai (Nane), deusa armênia equivalente a Atena; Reshef, divindade cananeia (que também foi adotada pelos egípcios) relacionada à guerra e pestilências. Baalshamin, outra divindade cananeia e Baaltak, associado a Bel. Mais tarde seriam adicionadas imagens de Atena, Nike e Apolo. Bel era chamado de Bel Hamon no templo na colina de Jebel Muntar. Vindo de terras canaanitas como Baal Hamon, foi associado ao babilônio Bel (Marduk), uma vez que inicialmente o templo principal de Palmira era dedicado a Malakbel, palmirita, e com Baalshamin vindo de tribos árabes. A associação de Bel Hamon com Manat é fortíssima, o que não significava que ela fosse sua consorte, todavia.

As oferendas, por sua vez, seguiam elaborados padrões. Ainda que quase tudo pudesse ser oferecido como oferta às divindades – desde cachos de cabelo da pessoa até rebanhos inteiros de novilhos –, havia uma ‘hierarquia de preciosadade’: quanto melhor, precioso e amado fosse aquilo ofertado, maior seria a estima dos deuses sobre a oferenda. O Corão nos (Sura 5:103) nos dá um exemplo curioso, ímpar, de uma prática árabe mais prevalente entre os beduínos: a última cria de uma série de camelos fêmea natos (bahira) era deixada livre, leve e solta para viver sem ser pastoreada por ninguém (geralmente em santuários) e, também, uma fêmea que viveu para ver sua cria dar cria (sa’iba). Sua orelhas eram cortadas para indicar seu estado de tabu. Gado e frutas primogênitas também eram bem vistas e bem-requisitadas pelos deuses e os chefes de família, chefes tribais e reis comumente consagravam a si e a seus dependentes e súditos, bem como seus bens, à uma deidade, como forma de garantir bênçãos e proteção.

Nos locais sagrados da Arábia, como oásis-templos, templos e outros santuários, havia o tabu (expressa proibição) de se derramar qualquer tipo de sangue ou praticar qualquer tipo de violência: animais não poderiam ser caçados nem laçados; armas eram proibidas em solo sagrado e nem se permitia comércio nas dependências dos Deuses. Era proibido, inclusive, molestar (atacar, roubar, importunar) qualquer pessoa ou séquito que estivesse indo em peregrinação a um templo ou santuário; quem o fizesse seria severamente punido, quando não com o ostracismo, com a morte.

 Isso também se estendia a certos festivais: durante um ou outro festival, enquanto ele durasse, as contendas belicosas deveriam cessar e os inimigos, esquecerem a inimizade para celebrar os deuses em respeito. A hospitalidade tanto nos locais sagrados quanto nos festivais e peregrinação também eram algo mais que esperado: se uma pessoa se juntasse aos participantes, não importando sua origem, deveria ser bem tratada e alimentada. Um desses fetivais era a peregrinação à Meca, que era realizada quase que nos mesmos moldes e preceitos que a hodierna, com o diferencial que o objetivo da antiga era prestar culto aos 360 deusos que lá residiam. O sacerdócio, por sua vez, variava: haviam sacerdotes tanto homens quanto mulheres e em muitos lugares parece-nos que ele era hereditário; em outros, era quase como um cargo público, sendo o clero apontado pelo governante.

A divinação e a magia também andavam lado-a-lado com a religiosidade pagã árabe: era muito comum que os templos e santuários fizessem divinações de várias formas, sendo através da infusão de visões diretos no consulente, seja através de sortilégios com materiais, como flechas, que são também citadas (e proibidas) no Corão. A saliva e o sopro eram considerados particulamente poderosos.

Um fenômeno bastante curioso na Arábia pré-islâmica foi aquele do hanifismo, árabes que não eram politeístas, mas sim monoteístas e, a exemplo dos judeus que viviam na região, escolhiam o Deus único (Allah) para prestar culto. Alguns estudiosos pontuam que os judeus teriam sido a inspiração para tais cultos, mas a tradição islâmica nos dá outra opinião: seriam resquícos da religião original dos árabes, o monoteísmo (hanif significa “monoteísta”) puro, transmitido por Ismael.

Referências bibliográficas:

  • Robert G. Hoyland - Arabia and the arabs from the Bronze Age to the coming of Islã, 2001.
  • Ibn al-Kalbi - The Book of Idols.
  • The pagan god: Popular religion in the Greco-Roman Near East – Teixidor (1977).