Por que a França invadiu a Argélia?
27/10/2020Durante o século XIX até o começo do século XX (1830-1903) se daria a conquista da Argélia pelos franceses, que ficou marcada por batalhas de resistência contra a ocupação colonialista francesa, assim como pelo genocídio perpetrado pela França contra a população argelina, que por sua vez vitimou cerca de 500 mil a 1 milhão de habitantes.
A história da colonização francesa da Argélia origina-se poucos anos antes da invasão do país. Em 1827 houve um caso pitoresco chamado de “incidente do mata-mosca”, onde Hussein Dey1, governador Otomano da Argélia, atingiria três vezes o rosto de Pierre Deval, cônsul francês, com um objeto outrora também chamado de “leque”, mas com o intuito de matar moscas (fly whisk), semelhante a um chicote.
O desentendimento surgiu por conta de uma desavença envolvendo uma dívida “indireta” que os franceses tinham com o governo otomano da Argélia. Acontece que por volta de 1795-1796 a França havia comprado trigo de dois mercadores judeus, que por sua vez possuíam dívidas com Hussein Dey. Assim, os mercadores não pagariam a dívida ao governante otomano até que os franceses pagassem o que deviam. Hussein até tentou negociar com Pierre Deval, tentativa essa que foi infrutífera, chegando inclusive a suspeitar de um complô entre o francês e os mercadores. Não obstante, o Dey ainda acabaria se zangando com o sobrinho de Pierre, Alexandre, que havia realizado fortificações em armazéns nas cidades de El Kale (conhecida antigamente como La Calle) e Annaba (também chamada de Bône).
Diante disso, Carlos X da França valeu-se dessa desavença diplomática para primeiramente exigir um pedido de desculpas de Hussein Dey, e em seguida realizar um bloqueio contra o porto de Argel, que duraria cerca de três anos e em certa medida não seria muito favorável aos franceses, pois os mercadores da França não conseguiriam comercializar com a cidade, enquanto os piratas berberes podiam passar pelo bloqueio.
Em 1829 a França tentaria uma aproximação diplomática com Hussein, enviando um embaixador para Argel. Entretanto, a resposta do governador otomano se daria através de tiros de canhão em direção a um dos navios do bloqueio francês. Após essa tentativa frustrada de estabelecer relações diplomáticas com a Argélia otomana, Carlos X nomeou o “conservadoríssimo” Jules, Príncipe de Polignac como presidente, gerando indignação e uma voraz oposição dos liberais, que eram a maioria na Câmara dos Deputados francesa. É interessante notar que Jules tentou relações com Muhammad Ali do Egito, que era nominalmente um vassalo do Império Otomano, para que pudessem dividir o Norte da África, algo que foi prontamente rejeitado por Muhammad. Nesse sentido, como a opinião dos liberais que formavam a maioria da Câmara, assim como a opinião popular eram desfavoráveis ao Príncipe de Polignac e também ao Rei, os dois monarcas decidiram que uma vitória externa, como a captura da Argélia Otomana) poderia mudar a sorte dos dois.
A Invasão
Dois nomes do exército francês que tiveram um papel fundamental na colonização francesa da Argélia foram o Almirante Duperré e o General de Bourmont. O primeiro assumiu uma armada de 600 navios em Toulon e de lá partiu direto para Argélia; já de Bormount estaria responsável por 17 mil soldados, que atracariam menos de 30 km de Argel. Os números são expressivos, porém também seriam do lado argelino: o dey enviaria 7 mil janízaros; 19 mil tropas dos beys vizinhos de Constantina e Orã, assim como cerca de 17 mil cabilas, um povo berbere que habita na região nordeste da Argélia.
Apesar das volumosas forças do dey argelino, suas frotas ainda perderam a batalha de Staouéli em 19 de junho de 1830, adentrando na cidade de Argel três semanas depois em 5 de julho. O bey argelino se renderia, fazendo um acordo com os franceses para que pudesse sair do local pacificamente com suas riquezas, se refugiando em Nápoles (Itália) junto com sua família. Em seguida os janízaros também voltariam para a Turquia, marcando assim o fim de mais de três séculos de domínio turco-otomano na Argélia, passando agora para o domínio francês.
Colonização e Massacres
Argélia mal havia sido conquistada e a notícia mal havia chego na França quando ocorreu a Revolução de Julho, depondo assim o rei Carlos X do trono, colocando em seu lugar seu sobrinho Luís Filipe, também chamado de “Rei Cidadão” ou “o Rei Burguês”. Acontece que a já mencionada oposição liberal também se opunha à invasão da Argélia, ficando assim receosos de dar continuidade em um processo que havia iniciado no antigo regime de Carlos. Porém, a conquista da Argélia havia sido um grande triunfo para a França, se demonstrando um fato bem popular à época.
Luís então substitui o General Bourmont, que pensava em retornar com seu exército para restaurar o trono de Carlos X2, colocando em seu lugar o marechal Bertrand Clauzel em setembro de 1830.
Clauzel iria dar início à colonização francesa na Argélia, uma vez que introduziu no local uma administração civil de maneira formal, recrutando também soldados (inclusive nativos) para as forças auxiliares francesas, estabelecendo assim uma presença colonizadora na Argélia, fortalecendo a imagem francesa na região. Clauzel também iria investir pesadamente na agricultura argelina, adquirindo terras e subsidiando a alocação de fazendeiros europeus nesses locais.
Mais tarde ele tentaria negociar com o Marrocos para estabelecer um bey marroquino na cidade de Orã, entretanto isso seria reprovado pelo ministro francês que substituiria Clauzel por Baron Barthezène logo no começo de 1831, poucos meses depois da conquista francesa da Argélia e seu inevitável processo de colonização.
Entretanto, Berthezène era um opositor às políticas colonialistas na Argélia, demonstrando ser consequentemente um governante fraco da região, ocasionando em fracassos militares em sua administração, como por exemplo na tentativa de ajudar o bey de Medea, que sofria revoltas populares por apoiar os colonialistas franceses. A campanha foi desastrosa, sofrendo ataques constantes pelas milícias cabilas, o que ocasionou um recuo desordenado impossível de ser controlado, sendo que cerca de 300 soldados franceses morreram na empreitada. Por conta da vitória da resistência argelina contra o imperialismo francês, a moral dos nativos se elevou ao ponto de ocorrer ataques contra bases colonialistas francesas.
Como pode ser visto, a presença francesa não foi aceita pacificamente pelos argelinos, que desde o princípio levantaram resistência contra a potência europeia invasora. A oposição aos franceses não foi à toa, uma vez que os mesmos concordaram em preservar e manter as liberdades dos nativos, assim como suas propriedades e a religiosidade dos argelinos. Entretanto, os franceses logo começaram a saquear as cidades, matando e prendendo os habitantes pelos motivos mais arbitrários possíveis, assim como confiscando propriedades e destruindo monumentos religiosos.
Assim, os franceses saquearam, massacraram e destruíram vilas inteiras, derrubando também muitas mesquitas e cemitérios. Em 1857 as comunidades berberes cabilas seriam suprimidas pelos franceses. A Argélia seria declarada território do Estado francês. Uma comissão francesa escreveu em 1833:
Nós os enviamos para a morte por conta da mais simples suspeita, sem julgar devidamente as pessoas cuja culpa era sempre duvidosa… nós massacramos pessoas utilizado salvo-condutos3… nós ultrapassamos na barbaridade os próprios bárbaros (RUEDY, 2005, p. 50).
No período entre 1830 e 1862 na fase inicial de ocupação francesa, mesquitas e demais edifícios religiosos islâmicos passaram de 172 para 47, expropriados ou transformados em templos cristãos. Somente em Argel, ao menos três de suas grandes catedrais ficavam em mesquitas tomadas pelos colonizadores franceses. Estima-se que cerca de 500 mil a 1 milhão4 de pessoas foram mortas, isso em uma população de cerca de 3 milhões, sendo considerado um verdadeiro genocídio.
Notas:
[1] Dey significa literalmente “tio”, um título honorífico Otomano concedido aos governantes da Regência da Argélia, Trípoli e Túnis sob o Império Otomano de 1671 em diante;
[2] O general desistiria por falta de apoio de suas tropas, se exilando posteriormente na Espanha;
[3] N.T: um salvo-conduto é um documento que autoriza alguém a transitar e/ou viajar livremente;
[4] Para mais detalhes, ver KIERNAN, 2007, p. 364.
Bibliografia:
Kiernan, Ben. Blood and Soil: A World History of Genocide and Extermination from Sparta to Darfur. Yale University Press. 2007.
SESSIONS, Jennifer. France & Algeria: Origins and Legacies. Ottoman History Podcast. 2019.
PRIESTLEY, Herbert Ingram. France Overseas: a Study of Modern Imperialism. Routledge. 1966.
RUEDY, John Douglas. Modern Algeria: The Origins and Development of a Nation. Indiana University Press. 2005.
BLOXHAM, Donald; MOSES, A. Dirk. The Oxford Handbook of Genocide Studies. Oxford University Press. 2010.