De forma genérica, o conceito por trás da apologia da Reconquista gira em torno do seguinte raciocínio: invasores muçulmanos invadiram a península ibérica e as roubaram de seus legítimos donos, gerando um período de opressão étnica e religiosa até que os Estados cristãos do Norte se rebelassem e reconquistassem de volta todas aquelas terras, até sua devida conclusão em 1492; mostrando, inclusive, a persistência dos muçulmanos em abandonar os territórios “ocupados” e dramatizando quão gigantesco foi o esforço e dedicação dos ibéricos em recuperar de volta as suas terras.

O discurso apologista de Reconquista, por via de regra, sempre gira em torno de conceitos como legitimidade e justiçamento geopolítico. E não se deve menosprezar os impactos desse discurso: se você se enquadra como cristão, ocidental, latino-americano ou meramente conservador, o discurso apologético da Reconquista necessariamente demanda que você ou declare apoio e gratidão à reconquista ou seja tomado como subversivo, inimigo da Civilização, vira-casaca e traidor. Em síntese, a recusa do discurso na forma como ele é proferido em muitos ambientes políticos-religiosos é, essencialmente, constrangimento e estigmatização; o que inclusive explica seu sucesso colossal entre conservadores.

Todavia, existe um aspecto hipócrita e subversivo por trás deste discurso que nem sempre fica óbvio mesmo para aqueles mais informados sobre o assunto. Conhecê-lo é extremamente fundamental por todos os tipos de indivíduos, não importa de qual religião, etnia ou posicionamento político eles sigam. Viemos falar aqui a respeito da verdadeira reconquista, se é que esse termo no fim das contas faz sentido: a Restauração Romana da Hispânia. Para explicar esse fenômeno de reconquista, talvez conveniente explicar como, em primeiro lugar, a península ibérica deixou de fazer parte do Império Romano.

No século V, o declínio do Império Romano era visível: hordas e hordas de povos coletivamente chamados de bárbaros haviam migrado para dentro das fronteiras do Império, expulsos da Europa Oriental por conta da expansão dos hunos; um povo nomádico que, semelhante aos turcos e aos mongóis depois deles, lutavam como cavalaria leve e eram conhecidos pela sua grande proficiência na arquearia montada. O Império Persa, um histórico e formidável opositor do Império Romano, mantinha guerras constantes e infrutíferas na fronteira asiática que perdurariam até a chegada dos exércitos muçulmanos, no século VII, em plena Idade Média.

Conforme os hunos pressionavam contra o Império na Europa, os povos germânicos que não se refugiaram no Império e não se submeteram ao julgo nômade simplesmente começaram a atacar as províncias negligenciadas, literalmente abandonadas pelo Império, colocando-o sob o problema de diversos inimigos e com uma bomba-relógio na forma de um mar de povos estrangeiros, não-assimilados, militarmente ativos e com seus próprios reis, caudilhos e hierarquia nobliárquica. O cenário não era otimista e qualquer erro político seria punido de forma severa.

A solução mais prática foi adotar o sistema dos foederati, que convidava tribos leais – ou pelo menos não muito hostis – para auxiliar o Império contra seus inimigos, fornecendo, em troca, porções territoriais vantajosas para se viver. Assim, os visigodos – uma subdivisão dos godos germânicos – foram convidados pelo imperador Flavius Honorius para combater vândalos, suevos e alanos, e colocar ordem no sudoeste da Gália sob a liderança de seu rei, Ataulf, em 410. Todavia, a corrupção, os golpes de Estado e o intriguismo consagrado da política romana deixou claro para muitos foederati que eles serviam senhores decadentes e mais fracos que eles mesmos, tornando sua obediência, por assim dizer, mais relativa.

Após se firmarem na Gallia e na Aquitania, os visigodos quebraram o acordo feito com os romanos poucas décadas antes, e sob o rei Eurico (r. 468-484) estes começaram a anexar outras províncias romanas. Enquanto os suevos se estabeleceram por um território que compreende mais ou menos o território da atua Galícia e Portugal, todo o resto da península tornou-se parte do novo Reino Visigótico da Hispania, com capital em Toledo. É do reino visigótico, esta entidade tipicamente bárbara e estrangeira, que as monarquias cristãs da Reconquista iriam identificar como sua própria gênese.

Após serem expulsos pelos francos da Gália no início do século VI, os visigodos tiveram de se contentar com suas posses ibéricas, onde se estabelecia um verdadeiro caldeirão cultural de fenícios, celtas, iberos, cartagineses, romanos, celtiberos, hebreus, alanos, bascos, gregos, suevos e vândalos que se mesclavam desde antes da anexação romana. O estabelecimento dos visigodos, entretanto, não foi nada pacífico, e eles tiveram de enfrentar a resistência de diversos povos que ali já viviam ali e que, para início de conversa, não eram muito receptivos a ideia de se submeter a um povo recém-chegado que se aproveitou de um acordo oficial de proteção para cravar seu próprio reino, onde quer que pudessem, às custas do antigo Império que também os havia subjugado. Não surpreendentemente, toda a história do reino visigótico será repleta de violência e guerras civis, mesmo entre os próprios chefes intermediários deste mesmo povo. Este será um padrão de instabilidade que se repetirá até o fim do Reino, por conta da conquista islâmica.

Embora o Império Romano Ocidental não tenha sobrevivido ao século V, tendo sido finalmente dominado pelos ostrogodos, um povo irmão dos visigodos, o século sexto será palco de um fenômeno bastante peculiar: a Restauração Justiniana, uma série de guerras empreendidas pelo Império Romano Oriental, também chamado de Bizantino, com o intuito de recuperar as possessões do Império Ocidental perdidas anteriormente. Se aproveitando das guerras civis germânicas na África e na Itália, o imperador Justiniano (r. 527-565), “o último romano”, foi capaz de recuperar boa parte da costa mediterrânea, o antigo Mare Nostrum Imperial; mas ainda faltava algo: a Hispania. Assim como épocas anteriores – como seria nas posteriores, os visigodos estavam faccionados em guerra civil. E assim como nas campanhas restauracionistas anteriores, o Império Bizantino “interveio” na península em prol dos monarcas reinantes, enfraquecidos pelas disputas internas; é claro que isso seria só uma desculpa, buscando legitimar a intervenção de um exército estrangeiro inteiro para, posteriormente, usurpar o domínio depois de infiltrado nele.

O Império Bizantino em seu auge, no reinado de Justiniano. É possível observar os modestos ganhos territoriais obtidos na campanha hispânica, que seriam progressivamente recuperados pelo reino visigótico, nas décadas seguintes.

Não são claras as condições exatas da invasão bizantina, graças à escassez de fontes e a contradição entre as poucas fontes existentes. Certas versões dizem que Athanagild, um nobre usurpador, teria solicitado auxílio bizantino, ao passo que outras versões contam que Agila, o monarca reinante, que teria pedido tal auxílio contra Athanagild.

Naturalmente, uma vez dentro da península, nenhuma facção “foi capaz de removê-los de seu território, apesar de esforços”, conforme conta Isidoro de Sevilha. Por conta de seu tamanho modesto (2.000 homens) e do fim da guerra civil visigótica, a reconquista romana da península teve que se limitar à porções mais ao sul. Com o tempo, a presença bizantina na península ibérica seria gradualmente reduzida até um mero punhado de cidades, na década de 620. Por mais que eventualmente os bizantinos tenham sido expulsos da Hispania, existe dúvida se sua influência era necessariamente nula; embora controversa, algumas fontes defendem que os muçulmanos teriam invadido a península ibérica no século oitavo por incitação bizantina, algo que ainda hoje provoca algum tipo de debate.

Peninsula Ibérica na época da invasão muçulmana, século oitavo.

No fim, o que exatamente isto tudo prova? Essencialmente, a verdadeira campanha de reconquista não foi aquela empreendida por senhores de guerra mais ou menos ligados aos visigodos, mas pelo Império Bizantino; o verdadeiro Império Romano, em sua sede oriental, fundada pelo próprio Constantino. Em qualquer sentido, os visigodos não eram herdeiros legítimos daquelas terras, exceto pelo direito de conquista; algo que, para fins práticos, não pode ser usado como forma de antagonizar novos conquistadores, como os muçulmanos. A conquista visigótica, na verdade, foi recebida de forma bem menos entusiasmada; e claro, isso aqui é um eufemismo para uma série de levante locais e guerras de resistência aos novos ocupantes (não é esse o termo que dão aos muçulmanos?). E é claro que em senso estrito nem os romanos exatamente tinham direito legítimo por aquelas terras: exceto pelo fato de terem conquistado aquelas terras a mais tempo e desenvolvido a região; novamente, em que isso é diferente do que os muçulmanos fizeram?

No fim das contas, nem o conceito de Estado-Nação existia naquela época, onde um povo teria direito a sua própria soberania; e neste sentido, como exatamente os bascos, os galegos e os catalães se sentem com todo o projeto de imposição cultural e idiomática da ideologia castelhana? Um processo de aculturação que, por sorte, os portugueses conseguiram evitar logo no início, quando obtiveram sua independência da União com as Coroas da Espanha no século XVII. Talvez, se esta rebelião tivesse fracassado, o Brasil hoje falaria espanhol; ou melhor, castelhano, o idioma que se impôs sobre os demais dialetos da Espanha. Em qualquer análise, considerando o próprio emaranhado de dezenas de povos distintos misturados pela península, é até ridículo a proposição de Estados-Nações num arranjo tão confuso e disperso aquele.

E é então que o verdadeiro motivo de todo o discurso apologético da Reconquista se faz manifesto sem seus devidos disfarces: religião. A lógica é de que os visigodos pertenciam à mesma religião dos romanos, assim como os reinos do norte que vieram depois. Nesta visão, existe uma legitimidade divina unida contra as falsas religiões. Mas tem validade esta visão? Bom, para início de conversa, os cristãos hispânicos seriam tão positivos quanto a religiosidade visigótica quanto a muçulmana; por uma razão bem simples: ambos negavam que Cristo era Deus.

Desde a antiguidade tardia, os visigodos fizeram parte de toda um conjunto de povos germânicos que se cristianizaram não ao cristianismo católico, ou niceno, mas ao Arianismo repudiado virulentamente por efetivamente todos os Pais da Igreja desde o século IV. Uma consulta aos escritos dos autores nicenos ou da própria história do período não falharia em revelar que um cristão ariano seria pouco superior a um cachorro. E não é por causa de intolerância: os povos germânicos arianos curiosamente eram bastante tolerantes com as religiosidades nativas conquistadas, sejam elas judias, católicas, miafisistas ou nestorianas; embora historiadores nicenos tenham feito esforços colossais para tentar pintar o domínio ariano de forma negativa, sempre que possível. É importante lembrar, o Papado permaneceu sob domínio estatal ariano por mais de um século!

É claro que as coisas mudam com a conversão de Recaredo I (586–601) ao catolicismo. Em médio prazo, judeus, arianos e não-calcedônios eram todas religiões perseguidas; e curiosamente, era o judaísmo que encabeçava a lista de prioridades na agenda persecutória dos visigodos católicos, como era bem típico da ênfase anti-judaica da igreja. Durante a tentativa de reconquista bizantina, tivemos literalmente um império católico – seja lá o que isso signifique no século sexto – contra bárbaros arianos e heréticos, dificilmente o apologista médio teria dificuldades em “virar a casaca” pelos bizantinos. Ainda assim, bastou a conversão visigótica mais tardia que os rústicos invasores se tornaram vítimas. É bem difícil, sob quaisquer lentes, não ver um discurso hipócrita por trás desses argumentos; não muito diferente do tradicionalista que reclama das perseguições religiosas por países asiáticos ao mesmo em que defender critérios novecentistas do Papado para a proibição da Liberdade Religiosa, de Imprensa e de Consciência (algo que se levado a sério dificilmente difere de uma verdadeira distopia).

Irônico como poderia ser, os muçulmanos aliviariam a perseguição sob judeus e não-calcedônios, de forma que curiosamente o próprio calcedonismo, sob domínio islâmico, incorporaria as seitas que tanto antagonizou na História.

Bibliografia:

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