Impostos, quem gosta de pagá-los? Mesmo sendo recolhidos desde a Idade do Bronze, a tributação nunca deixou de ser tema sensível nas sociedades em que foi praticada. Sendo vista desde aqueles tempos sob perspectivas positivas e negativas, que vão desde uma justa contribuição social até a mais verdadeira forma de opressão ou espoliação, a história da tributação necessariamente convergirá com a história das religiões. E que assunto mais polêmico que a Jizya, o imposto aplicado por governantes muçulmanos aos súditos não-muçulmanos? Sem dúvidas, falar de apologética anti-islâmica necessariamente explorará, mais cedo ou mais tarde, a questão da jizya como um elemento de opressão e espoliação de populações não-muçulmanas. Mas será que esta é uma visão precisa? Necessariamente deveríamos ver a Jizya como um fenômeno especialmente opressivo? Ou a questão é mais complexa ou menos panfletária que isto?

Inicialmente, para respondermos a essas questões, precisaríamos antes definir o que é Jizya. Embora a origem da palavra seja um tanto quanto incerta, é consenso universal de que a mesma se refere a um tipo de imposto que potentados islâmicos atribuem a comunidade dhimmi, isto é, súditos não-muçulmanos que vivem num Estado Muçulmano como um grupo religioso protegido pela lei islâmica; de forma bem vaga e ignorando as diferenças gritantes, era uma condição similar àquela experimentada pelos judeus na Europa Cristã, antes do surgimento do Estado Laico.

A partir desta definição, apologistas anti-islâmicos tipicamente defendem que a Jizya constituía uma forma sistemática de sobretaxar a população cristã – e judia –, de modo a parasitá-los tributariamente e estimular suas respectivas conversões à nova religião oficial. No caso, quem quisesse permanecer na antiga religião precisava arcar com altos impostos, ao passo que se converter ao islamismo era uma solução prática para ser aliviado deste fardo. Esta proposição, por mais simplista que seja, tornou-se uma solução conveniente para explicar como regiões conquistadas do Impérios Bizantino, Persa Sassânida e do reino visigótico da Espanha passaram a ter uma expressiva parcela populacional de muçulmanos, evidentemente  às custas das religiões previamente estabelecidas lá.

Mas existe um problema de base nesta explicação: ela é puramente especulativa. Embora de fato tenha ocorrido uma mudança no cenário religioso em favor de uma eventual maioria islâmica, tal processo durou séculos. Além de longo, este processo foi lento; pelo menos, mais lento do que a “misteriosa” cristianização massiva do Império Romano no século IV, após a ascensão de Constantino.  

Sequer temos exatamente fontes que detalhem perseguições aos cristãos ou deem testemunho de uma condição extremamente desagradável desses grupos protegidos. Em síntese, existe um vácuo nas fontes que apologistas preenchem com as próprias teorias; mas essas eles expõe como fatos, necessariamente convertendo especulação em algo incontestável, apesar da óbvia ação da Guilhotina de Hume aqui.

Na verdade, mesmo apesar do “problema do silêncio”, que aqui pode significar tanto um simples processo de conversão mais natural e complexo ou de uma possibilidade não-falseável de conversões por alienação social e parasitismo tributário, temos evidência positiva de aristocracias cristãs prosperando sob Califados. Que exemplo mais notório teríamos que a família síria dos Mansur de Damasco, que produziu diversos administradores públicos, bispos melquitas e pelo menos um doutor da Igreja, São João Damasceno? O próprio Pai da Igreja foi funcionário público na corte Omíada de Damasco, antes de se demitir para aderir ao monasticismo na Palestina, onde inclusive escreveu contra “a seita de Maomé” em tratados apologéticos.

Existe ainda outro problema com a tese da Jizya como parte de um aparato estatal islamizante: o domínio islâmico foi sentido de forma diferente por diversos povos, com o fenômeno de conversão sendo comuns a certos povos, mas não a outros. Enquanto províncias otomanas como a Albânia e a Bósnia se converteram ao islamismo em grande escala, na Bulgária esse fenômeno atingiu um equilíbrio religioso entre muçulmanos e cristãos ortodoxos. Por outro lado, regiões como Croácia, Transilvânia, Hungria, România e Sérvia permaneceram praticamente indiferentes a qualquer proselitismo ou ascensão social que poderia ser advinda pela conversão. Na verdade, províncias otomanas como Hungria, Transilvânia e Eslováquia experimentaram conversões em massa, mas do catolicismo romano para o protestantismo! Missões jesuítas se espalharam na Grécia, Criméia e Egito por volta de 1600 d.C. e o próprio Calvinismo gerou controvérsias teológicas nos Patriarcados de Constantinopla, Alexandria e Jerusalém, todas províncias muçulmanas. Nesses casos, era a própria população cristã que se voltava aos senhores muçulmanos pela perseguição dos hereges (sejam eles protestantes ou católicos), o que geralmente era recusado por razão da lei de tolerância religiosa.

Um dos pontos fundamentais a se entender sobre a Jizya é que ela era historicamente definida como um imposto militar cobrado uma vez por ano. Isto é, como cristãos estavam isentos de prestar serviço militar, e a princípio nem deveriam fazê-lo, eles pagavam a Jizya como forma de compensar por esse privilégio. Diga-se de passagem, não estamos falando de uma lógica desconhecida ao mundo cristão da época: impostos sempre foram atribuídos como forma de comutar a obrigação do serviço militar feudal não-remunerado de 40 dias; também se esperava que aqueles que fossem incapazes de prestar serviço militar, mas estivessem “aquantiados” nas cotas de renda, deveriam ainda assim fornecer todo o equipamento militar necessário para armar um indivíduo capaz. Em suma, no sistema social cristão você não é isento de prestar serviço militar sem um preço, independente da sua idade ou saúde.

É até interessante que, enquanto a Jizya era um imposto de comutação do serviço militar, um cristão que prestasse serviço militar necessariamente estava isento do pagamento da Jizya naquele ano. Ainda deve-se investigar se esta, inclusive, é a razão pela qual povos belicistas como os albaneses se converteram em massa ao islamismo; pelo menos sabemos que os albaneses que não serviram aos otomanos migraram como mercenários para a Itália como mercenários de profissão, onde passaram a ser conhecidos como Stradioti. Talvez seja por isso que vemos tantos soldados cristãos da península balcânica nas campanhas otomanas ao norte dos séculos XV e XVI, gerando confusão entre os próprios observadores europeus sobre quais indivíduos do exército otomano eram turcos e quais eram simplesmente cristãos balcânicos, algo dificultado pela própria similaridade na forma de se vestir.

À esta altura, o argumento que seria levantado é bastante previsível: que independente das razões apresentadas oficialmente, existia uma intenção velada de aparelhar a Jizya para promover conversões através de sobre-taxação, algo que inclusive poderia ser amparado pelas evidências de serviço voluntário citadas anteriormente. Quanto a este argumento, vale lembrar que ele também é puramente especulativo. Em todos estes 1400 anos de domínio islâmico, faltam fontes que registrem o descontentamento tributário da população cristã. Isto é significativo porque nem a propaganda expansionista cristã, em qualquer potentado de qualquer época, apelou para uma evidência de sobretaxação, o que só faz sentido se ela de fato não existisse de verdade, já que configuraria um poderoso argumento para motivar e justificar campanhas expansionistas contra principados islâmicos ao mesmo tempo que garantiria o apoio dessa população local oprimida. Ao invés disso, outros argumentos eram usados, a maioria destes contendo distorções sobre a realidade do jugo muçulmano ou simplesmente mentiras deslavadas. Por que fazer uso de recursos tão medíocres se a sobretaxação seria um recurso poderoso e, principalmente, verdadeiro?

Duas razões parecidas se destacam, além de não haver como fazer recurso deste fato impossível, no geral os potentados cristãos cobravam mais impostos do próprio povo do que muçulmanos com estes mesmos cristãos dominados, sendo completamente irrealista, para qualquer indivíduo naquela época, achar que uma reconquista bizantina ou mesmo hispânica traria algum tipo de benefício fiscal aos cristãos sob domínio islâmico; quer dizer, pra início de conversa foi justamente pelos baixos impostos que os expansionistas muçulmanos encontraram tanta facilidade para varrer domínios cristãos inteiros ajudados ou com a conivência da população local. E embora seja verdade que pelo menos os Estados Cruzados eram conhecidos por empregar impostos baixíssimos até para critérios muçulmanos, este caso é uma exceção pontual não vista noutras ocasiões (e que acontecia como política dos barões francos para estimular a imigração e resolver o severo problema de déficit demográfico e de mão-de-obra no Outremer).

Nesta altura, todos os leitores estão interessados em saber aquilo que realmente importa: qual era o valor da Jizya? Dar uma resposta adequada pode se mostrar um balde de água fria nos interessados, mas é necessário dar respostas polidas: simplesmente não existe nenhum valor fixo para a taxa de Jizya. E isto faz sentido dentro de um contexto medieval porque o câmbio não era estável como é hoje, o que significa dizer que em determinadas épocas a mesma moeda pode atingir valores distintos por conta da inflação e de diversas outras flutuações. Assim, a taxa a ser cobrada na Jizya sofria correções de acordo com o valor do dinheiro, a riqueza do local tributável etc.

Ainda assim, é importante mencionar que a Jizya não necessariamente precisava ser paga em espécie, o que era bastante conveniente para camponeses, que no geral tinham acesso limitado à moeda e faziam transações a partir de escambo: gado, animais, grãos, mercadorias, objetos e até agulhas eram escambo aceito; desde de que, é claro, esses ativos não fossem ofensivos à religião islâmica, tais como porcos, vinho ou animais mortos.

Além das correções feitas de acordo com a localidade e o clima econômico da época, os muçulmanos também adotaram um sistema de imposto progressivo. Isto é, os mais ricos pagam maiores quantias enquanto os mais pobres pagam menores; sendo que rigorosamente só dhimmis a partir de uma determinada cota de riqueza estão sujeitos à jizya, excetuando assim aqueles mais pobres de seu pagamento. Além dos mais pobres e daqueles que efetuassem algum serviço militar voluntário, estavam excetuados do seu pagamento mulheres, crianças, idosos, deficientes, enfermos, loucos, monges, eremitas, escravos e estrangeiros não-muçulmanos residindo temporariamente em potentados islâmicos.

Como os valores sobre tanta variação, naturalmente não é possível determinar valores fixos, embora tenhamos algum registro ou proposições de cobranças feitas. Aqui é útil apresentar algumas proporções: 1 dinar, geralmente, era equivalente a 10 ou 12 dirhams; por sua vez, 10 dirhams eram equivalentes às despesas de uma família típica durante 10 dias. Tendo isto em mente, podemos prosseguir com os dados históricos.

No Kitab al-Kharaj, o famoso imã e jurista hanafita Abu Yusuf (m. 798) estabelece cotas de 48 dirhams para os mais ricos, 28 dirhams para os moderadamente ricos e 12 dirhams para artífices e trabalhadores manuais. Durante o califado de Omar Ibn-al-Khattab (r. 634-644), 4 dirhams eram cobrados dos ricos, 2 dirhams da classe média e 1 dirham de pobres empregados, seja daqueles que trabalham sob regime salarial ou daqueles que produzem ou vendem coisas. O erudito shafeita Abu Zakariya al-Nawawi, no século XIII, escreve: “a quantia mínima da Jizya é de um dinar por pessoa por ano, mas é desejável aumentar esta quantia, se possível para 2 dinares, para aqueles que possuem rendas moderadas, e para 4 dinares, para os ricos”.

Nestes termos, o valor da Jizya era extremamente baixo para critérios da época, existindo ainda uma preocupação entre eruditos muçulmanos de não gerar impostos pesados. Abu Ubayd (m. 634) insiste que dhimmis não devem ser sobrecarregados além de sua capacidade, nem devem sofrer por causa dos impostos. O célebre historiador e sociólogo Ibn Khaldun (1332-1406) diz que a jizya possui limites fixos que não devem ser excedidos. A jurisprudência shafeita atesta que “o máximo consiste naquilo que ambos os lados estão de acordo”.

Para datas mais tardias, temos registros do Império Mogol, estabelecido na Índia durante o século XVI. Em seu trabalho historiográfico sobre este Estado Muçulmano, Abraham Eraly constata:

“A Jizya foi recolhida num sistema de três graus. Ishwardas, escrevendo no reinado de Aurangzeb, afirma que os ricos, cujo rendimento anual estava acima de 2.500 rúpias, pagariam 48 dirhams (cerca de 13 rúpias) por ano como jizya; a classe média, cujo rendimento estava acima de 250 rúpias, pagariam 24 dirhams (cerca de 6,5 rúpias) e os pobres, cujo rendimento anual estava acima de 52 rúpias e que ‘eram capazes de manter a si, suas esposas e seus filhos’ pagaria 12 dirhams (ou 3,25 rúpias). ‘Se uma pessoa não possuía propriedade e seu rendimento não existia suas necessidades familiares, a jizya não seria cobrada dele’, nota um cronista mogol. Ainda assim, apesar de ser uma taxa regressiva, ela atingia mais os pobres. 12 dirhams eram cerca de um mês do trabalho de um trabalhador urbana, e a jyzia atingia profundamente a subsistência dos pobres; os ricos, por contraste, se saiam com impostos leves.”

Uma última coisa é, ainda, extremamente relevante na nossa análise: impostos na Europa Cristã eram menos cruéis que aqueles levantados contra dhimmis no Mundo Islâmico? Aqui, obviamente, sequer vamos tratar extensivamente das taxações excessivas que a Igreja e a nobreza católica demandavam da comunidade judaica.

 O Quarto Concílio Laterano (1215) demandou que judeus pagassem dízimos à Igreja, o que significaria dizer que, contando com os dízimos dados a sinagoga, judeus já seriam privados de 20% de seus rendimentos. Isso, é claro, não impedia a cobrança de novos impostos tanto por parte da nobreza quanto da parte do clero. Hans Kung, um polêmico padre católico de notória erudição, descreve os abusos afirmados neste concílio:

“Não foram as turbas conectadas com a Primeira Cruzada em 1096, mas foi este concílio o responsável por mudar fundamentalmente a situação dos judeus, tanto legalmente quanto teologicamente. Como os judeus eram “servos do pecado”, concluiu-se que eles também deveriam ser servos de príncipes cristãos. Então agora, na constituição 68 deste concílio, pela primeira vez uma forma de vestimenta especial foi diretamente prescrita aos judeus, o que os isolaria. Eles estavam banidos de tomar cargos públicos, estavam proibidos de sair de suas casas durante a Semana Santa e tinham uma taxa compulsória imposta sobre eles, que deveria ser paga ao clero local. “

É importante citar o cânon 67 deste concílio infalível, que endereça empréstimos a juros, prática condenada pela Igreja:

“Enquanto a excelsa religião cristã se restringe de práticas usurárias, cresce em medida equivalente a perfídia dos judeus nessas questões, de modo que em pouco tempo eles estão exaurindo os recursos dos cristãos. Desejando, portanto, ver que os cristãos não sejam oprimidos de forma selvagem pelos judeus neste assunto, ordenamos por este decreto sinodal que, se os judeus no futuro, sob qualquer pretexto, extorquirem opressivamente juros excessivos dos cristãos, então eles serão afastados do contato com cristãos até que eles tenham feito reparação adequada de seus fardos imodestos. Também os cristãos, se necessário, serão compelidos pela censura eclesiástica, sem possibilidade de apelo, a se absterem de fazer comércio com eles. Recomendamos aos príncipes que não sejam hostis aos cristãos por causa disso, mas que sejam zelosos em impedir os judeus de praticarem tão grande opressão. Decretamos, sob a mesma pena, que os judeus devem ser compelidos a dar satisfação às igrejas pelos dízimos e ofertas devidos às igrejas, como a Igreja está acostumada a receber dos cristãos por casas e outros bens, antes de passarem por qualquer título ao Judeus, para que as igrejas possam ser preservadas da perda.”

Judeus já eram extorquidos apenas por parte da Igreja, e ainda seriam extorquidos pelo Estado e pelos senhores feudais, o que não necessariamente iria impedi-los de sofrerem massacres durante turbas, guerras civis e outras situações em que instabilidades e pestes eram postas sob responsabilidade dos judeus. E aqui vale um adendo: a jizya cobrada dos cristãos era a mesma cobrada dos judeus!

Compare as taxas do Império Mogol com a mera demanda de dízimo dado a Igreja: um dhimmi era obrigado a pagar, no máximo, 6% de imposto total sobre a sua renda, e apenas se ela excedesse seus gastos familiares. Do outro lado, só o dízimo seria 10% de seus rendimentos brutos. Para contar ainda todas as contribuições monetárias que, em determinadas ocasiões, enfureciam o próprio povo católico. Não surpreende que os judeus precisassem lucrar tanto para poder pagar tantos impostos; e mesmo assim ainda seriam alvo do desprezo e da potencial violência por parte dos cristãos medievais.

Podemos então analisar a segunda parte da questão: os impostos cobrados por autoridades católicas aos próprios católicos.

Aqui é lícito mencionar os Doze Artigos (1525), escritos como manifesto dos camponeses alemães contra as demandas abusivas dos príncipes seculares e eclesiásticos sobre eles. Por volta de 1500, o próprio sistema feudal tinha colapsado para algo pior do que se vira na Idade Média. No acordo feudal havia terras senhoriais, servis e comuns; os servos tinham obrigação feudal de trabalhar 3 ou 4 dias por semana em terras senhorais, trabalhando no resto da semana em suas pequenas propriedades cedidas (terras servis) ou nos campos comuns. Porém, na altura dos Doze Artigos, os nobres já tinham se apropriado das terras comuns, às quais os camponeses anteriormente pagavam impostos para usar. Não somente isso, mas a introdução de impostos pagos em dinheiro criou formas de exploração sem comutação de benefícios. Em resumo, os camponeses só perderam direitos, os nobres só cresciam em rendimentos. Para embasar essa relação, os nobres passaram a montar cortes com seus próprios advogados e juristas, dando positivação legal – o que basicamente consistia em inventar conceitos e aplicar termos em latim para os mesmos – para as perdas progressivas dos camponeses: eles ainda não podiam caçar nas florestas dos nobres, ainda pagavam impostos para usar moinhos, fornos e outros recursos de terras comuns e passaram a não poder recolher madeira dos bosques (tendo que comprar do nobre), nem a pescar em rios.

Os Doze Artigos são o verdadeiro colapso do sistema feudal, que já não era particularmente bom: se excetuarmos os artigos religiosos (os camponeses se tornaram adeptos da ala radical da Reforma Protestante), podemos sintetizar os artigos da seguinte forma: contra impostos abusivos da Igreja (segundo artigo); contra o regime de servidão (terceiro artigo); contra a proibição de pesca em rios e de caça (quarto artigo); contra a proibição de retirar madeira e lenha das florestas e do monopólio de venda dos senhores (quinto); contra o aumento e o fim dos já implementadas obrigações de trabalho feudal não-remuneradas (sexto e sétimo); contra aluguéis excessivos que muitas vezes resultavam na perda de propriedade (oitavo); contra a criação de novas leis aumentando as responsabilidades do povo (nono); fim das expropriação de terras e retorno das terras comuns já expropriadas (décimo); fim das Taxas de Morte, onde a família de um camponês defunto era obrigada a compensar monetariamente o senhor pela perda da mão-de-obra (décimo-primeiro).

Os pontos não foram atendidos e a rebelião foi duramente massacrada. Não surpreendentemente, autores marxistas do século XIX tentariam encontrar as raízes do movimento comunista entre os camponeses rebeldes. Mas isto é apenas um dos nossos vários potenciais exemplos.

Um exemplo apropriadamente medieval, publicado no Scandinavian Journal of History, sistematiza o panorama tributário do reino da Suécia, um país pobre, afastado e com agricultura medíocre. Se o bom senso deveria indicar que a Suécia tinha um sistema de tributação adequado a realidade de seu povo, lógica na qual a jurisprudência islâmica sustentava seu regime de impostos, uma análise historiográfica prova justamente o contrário.

“Os historiadores observaram que durante esse período os camponeses suecos viram mudanças dramáticas na quantidade de impostos que tiveram de pagar, com impostos muito baixos durante o período de 1320 a 1363; seguido por impostos muito altos pelos próximos setenta anos, e então terminando a Idade Média com impostos mais baixos. Grande parte da renda da família real viria de impostos sobre o campesinato, já que as famílias nobres, o clero e muitos cidadãos (incluindo os de Estocolmo) estavam isentos de pagar impostos. Eles também descobriram que havia uma grande variedade de impostos cobrados, principalmente em espécie (centeio, cevada, gado, ovelhas, manteiga, carne de porco e ferro), bem como em dinheiro.

[...]

Durante as décadas de meados do século XIV, o típico camponês pagador de impostos tinha de pagar o equivalente a 32 gramas de prata ao tesouro real. Isso representaria cerca de 2% do valor de sua fazenda e, se fosse entregue na forma de manteiga, equivaleria a 16 quilos. Retsö e Söderberg acreditam que durante este período um camponês típico teria cerca de quatro vacas, que poderiam entregar entre 14 e 20 quilos de manteiga por ano.

A situação mudaria dramaticamente em 1363, quando a Suécia foi invadida por cavaleiros alemães liderados pelo duque Albert de Mecklenburg. [...] Os historiadores chamam esta era de "uma economia de pilhagem descentralizada" com impostos extremamente altos (bem como roubo direto de propriedade do camponês) sendo necessárias para suportar enormes despesas militares. Registros dos anos 1365 e 1366 mostram que o camponês médio tinha que pagar de 168 a 227 gramas de prata, ou o equivalente a 105 e 162 quilos de manteiga durante esses anos.

O governo dos Mecklenburgs chegaria ao fim em 1389, quando as forças da Rainha Margaret da Dinamarca conquistaram a Suécia (fundadora da União Kalmar, que uniu os países escandinavos até o século 16). Os impostos permaneceriam altos durante seu reinado - os autores explicam que “o regime de Margaret visava fortalecer o poder real e o estado central. A fim de ampliar a base tributária da coroa, Margaret decretou uma redução de vários milhares de fazendas que haviam sido adquiridas por nobres ou pela igreja e isentas das taxas de terra devidas à coroa. Essas propriedades foram agora devolvidas ao status normal de pagadores de impostos, revertendo a tendência durante o regime anterior do rei Albert. A rainha fortaleceu o controle real dos meirinhos, embora ainda ocorressem levantes locais contra eles. ”

No geral, o período entre 1365 e 1424 veria a taxa média anual de imposto de 177 gramas de prata, ou o equivalente a 105 quilos de manteiga ou 15% do valor de uma fazenda. A título de comparação, na Inglaterra durante a década de 1370, pouco antes da Revolta dos Camponeses, a média de impostos per capita era de cerca de 10 gramas de prata.

[...]

Uma questão-chave é como os camponeses conseguiram sobreviver aos altos impostos nas décadas por volta de 1400. Parte da resposta parece ser que os impostos foram redistribuídos dos camponeses pobres para os ricos devido à responsabilidade coletiva da comunidade local. Os contribuintes ricos tiveram que pagar as quantias que os menos ricos não conseguiram pagar. Na prática, portanto, o sistema tributário era menos regressivo do que parecia à primeira vista.

Por fim, os altos impostos ajudariam a levar à rebelião de Engelbrekt de 1434-1436, que deporia o rei Eric da Pomerânia e daria início a uma nova era de impostos muito mais baixos. Retsö e Söderberg calculam que entre 1446 e 1551, o camponês médio pagou 17 gramas de prata em impostos, o equivalente a cerca de 17 quilos de manteiga. Também foi notado que os castelos, que desempenharam um papel central na extorsão de impostos, foram freqüentemente atacados e destruídos durante a rebelião de Engelbrekt.” (RETSÖ. SÖDERBERG, 2015)

 

É interessante notar que mesmo nos períodos de “impostos baixos”, o camponês sueco, na camada mais baixa da população e que sustentava todo o sistema tributário da monarquia, ainda era mais onerado que o dhimmi em pontentado islâmico. E se ainda resta alguma dúvida sobre taxações abusivas com a Jizya:

“O montante desta taxa anual é insignificante, além de ser progressivo. Anciões, pobres, deficientes, mulheres, crianças, monges e eremitas estavam isentos dela, dissipando qualquer dúvida quanto a exploração ou perseguição daqueles que não aceitaram o Islã. Comparando estes valores com o imposto obrigatório da Zaka, o qual ex-dhimmis eram obrigados a pagar ao Estado ao se converter ao Islã, anula qualquer pretensão de que a Jizya tinha como objetivo forçar conversões” (ELLETHY, 2014, p. 181)

Bibliografia:

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ELLETHY, Yaser. Islam, Context, Pluralism and Democracy: Classical and Modern interpretations. Islamic Studies Series, 2014.

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OS DOZE ARTIGOS DOS CAMPONESES DA SUÁBIA. Disponível em: < http://courses.washington.edu/hist112/Twelve%20Articles%20of%20the%20Swabian%20Peasantry%201525.htm>. Acesso em 19 de abril