Na Turquia Otomana do século XVII viveu um rabino judeu chamado Sabbatai Zevi (1626-1676), estudioso da cabala judaica, que iria proclamar-se como messias. Sabbatai iria em algum momento de sua vida se converter ao Islã, e seus seguidores ficariam conhecidos como Dönmeh.

Sabbatai Zevi nasceu no ano de 1626 na cidade de Esmirna, então província Otomana da Anatólia. Supostamente teria nascido no Tisha B’Av de 1626, data do calendário judaico que marca a destruição tanto do Templo de Salomão quanto a destruição do Templo pelo Império Romano no ano 70 AD.  Sabbatai era originário de uma família bem-sucedida, pois seu pai, Mordecai, conseguiu um bom cargo no comércio de Esmirna, que por sua vez se tornou centro comercial durante a guerra otomano-veneziana.

De família judia romaniota e de acordo com os costumes da época, Shabbatai Zevi passaria a estudar o Talmude, frequentando assim o que é chamado de yeshiva no mundo judaico, isto é, uma instituição que visa os estudos religiosos do judaísmo, mais especificamente de seus textos sagrados como a Torah, o Talmude e Halakah (Lei judaica), estudando juntamente com o rabino Joseph Escapa.

Sabbatai recebeu uma boa educação sobre o Talmude, sendo inclusive ordenado como hakham1ainda durante sua adolescência. Porém, como pode ser visto em sua biografia, seu interesse maior foi pelo misticismo judaico, a Cabala, que veio a estudar no final de sua adolescência, chegando a atrair um grupo de seguidores a quem iria introduzir nos segredos da tradição mística judaica.

Muito influenciado pelo místico do século XVI, Isaac Luria, Zevi encontraria na cabala prática com seu ascetismo a afirmação de seus devotos em ser possível se comunicar com Deus e com os anjos, prever o futuro e também realizar outros feitos extraordinários e milagrosos, todos chamando a atenção de Sabbatai2. Sendo influenciado também pelo Zohar, importantíssima obra da mística judaica, complementando suas leituras de Isaac Luria, praticando assim o ascetismo e a purificação espiritual.

Ilustração de Sabbatai Zevi de 1906 (Joods Historisch Museum)

Ainda segundo o costume, Sabbatai se casou novo, entretanto evitou ter relações sexuais com sua esposa, o que gerou um pedido de divórcio por parte da mesma, algo que foi concedido por Zevi. Mais tarde a história iria se repetir com sua segunda esposa. Depois de mergulhar cada vez mais com o imaginário cabalista, Sabbatai Zevi perderia sua sanidade mental, impondo a si mesmo as mortificações mais pesadas e severas, como banhar-se frequentemente no mar (até mesmo no inverno), jejuar dia após dia, vivendo também em constante estado de êxtase.

Messianismo

O conceito de messianismo no judaísmo é um dos eixos da religião, porém sendo normalmente tratado com cuidado, paciência e rigorosas análises de eventuais afirmações tidas como messiânicas ao longo da história judaica. Nesse sentido, desde os desastres provocados por Bar Kochba e problemas relacionados com o Cristianismo, tido como um movimento messiânico, os judeus se tornaram mais céticos ainda sobre afirmações daqueles que afirmavam ser o Mashiach.

No caso do messianismo judaico, duas tendências podem ser tidas como principais ao longo da história: um messianismo popular-mitológico e um messianismo com uma tradição mais filosófica e racionalista. Apesar de eventuais diferenças entre si, acabaram coexistindo ao longo dos anos3.

Com base nas questões messiânicas que agitaram o mundo judaico, os rabinos chegaram a introduzir proibições específicas contra tais agitações messiânicas, instituindo aquilo que ficaria conhecido como os Três Juramentos na tentativa de impedir movimentos que de certa forma “forçassem” o Messias antes de seu tempo. Entretanto, apesar das justas e preciosas tentativas dos sábios da religião judaica, o judaísmo não se veria livre de um falso messias no século XVII que cujo movimento arrastaria multidões em seu nome, criando uma crise de fé até então sem precedentes na história judaica.

Em 1648, Sabbatai iria se declarar como messias, entretanto não seria levado muito a sério pelos habitantes de Esmirna, uma vez que os mesmos já estavam um tanto quanto acostumados com as excentricidades do místico, que provavelmente hoje em dia seria diagnosticado com algo parecido com um transtorno de bipolaridade severo. Dentro de suas peculiaridades, sua mudança de humor era compreendida através de uma ótica religiosa, explicando seus momentos mais enérgicos como “iluminados”, enquanto que seus momentos de tristeza e melancolia como períodos de “queda”, ocasiões essas em que a face de Deus supostamente estaria oculta do místico.

“Sabbatai Zevi entronizado” (imagem de Amsterdã / publicação judaica Tikkun, Amsterdã, 1666).

Nessa época havia uma visão popular entre os judeus de que no ano de 1648 seria o ano da redenção de Israel pelo Messias, visão essa que muito provavelmente era oriunda de uma intepretação distinta do Zohar. Assim, Sabbatai se declarou como sendo o mashiach, e para provar (ou tentar provar) que de fato era o messias, passou a proferir atos que para pessoas comuns seriam blasfêmias, como pronunciar o Tetragrama (nome sagrado de Deus), algo que o judaísmo proibia. Não obstante, começou também a afirmar que também realizava milagres, dentre eles voar, porém sempre que pediam uma demonstração pública de seus atos milagrosos, Sabbatai afirmava que seus espectadores não eram dignos de presenciar tais coisas.

Entretanto, Sabbatai ainda era muito jovem, tendo por volta de seus 22 anos, o que não dava muita confiança para a população para que Sabbatai fosse aceito como uma autoridade rabínica, limitando assim sua influência para um pequeno grupo. Mas, apesar de não ser uma figura muito acreditada pela população de Esmirna, Sabbatai ainda sofreu as consequências de suas atitudes pelos rabinos mais velhos. Assim, quando Zevi começou com suas afirmações messiânicas, foi quando os sábios judeus lhe colocaram sob herem¸ o mais alto tipo de censura dentro do judaísmo, semelhante à excomunhão. Poucos anos mais tarde, entre 1651-1654 ele seria expulso de Esmirna juntamente com seus discípulos, sendo seu destino incerto.

Alguns anos depois de seu banimento de Esmirna, Sabbatai estaria em Constantinopla em 1658, onde se encontraria com Abraham Yachini, quem provavelmente forjou um manuscrito com aspectos antigos para dar maior credibilidade para a suposta missão profética de Sabbatai, confirmando assim seu messianismo. O manuscrito chamado de “A Grande Sabedoria de Salomão” traz os seguintes dizeres:

Eu, Abraão, estive confinado em uma caverna por quarenta anos e muito me questionei se o tempo dos milagres não tivesse chegado. Então se ouviu uma voz proclamando: ‘Um filho nascerá no ano hebraico de 5386 [o ano de 1626 d.C ] de Mordecai Zevi; e ele será chamado Shabbethai. Ele humilhará o grande dragão; … ele, o verdadeiro Messias, se assentará no Meu trono (KOHLER & MALTER, 1906)

Com esse documento em mãos, Sabbatai iria pra Tessalônica, angariando vários seguidores, até ser novamente expulso pelos rabinos locais. Em 1663 Sabbatai poderia ser encontrado em Jerusalém, onde reuniria mais seguidores ainda, tendo seu prestígio exaltado ainda mais quando apelaria para seu amigo de muitas posses, Raphael Joseph Halabi, que fazia parte do governo turco no Cairo, para que auxiliasse a comunidade de Jerusalém a conseguir dinheiro suficiente para pagar os impostos que deviam para o Império Otomano. Assim, com o sucesso em ajudar a comunidade local, seu prestígio se elevou.

Mais tarde, ao chegar no Cairo, Sabbatai se casaria com Sarah, uma mulher que tinha em seu passado se prostituído, aumentando ainda mais sua credibilidade entre seus seguidores, que o viam semelhante ao profeta Oseias.

Sabbatai Zevi como prisioneiro em Abydos.

Depois, quando voltava para Jerusalém, encontrou em Gaza um homem chamado Nathan, também conhecido como Nathan de Gaza, que viria a se tornar seu braço direito. Sendo rejeitado mais uma vez em Jerusalém, voltaria para sua terra natal Esmirna, onde passaria a ser o líder da comunidade e esmagaria a oposição. Sua fama messiânica se espalharia além do Oriente, indo parar na Europa, como na Itália, Alemanha e Holanda. Tal expansão pode ser explicado devido à situação difícil que os judeus enfrentavam na época, principalmente por conta de Bohdan Khmelnytsky, que segundo estimatimativas matou cerca de 40-100 mil judeus. Dessa maneira, os judeus europeus podem ter visto a ascensão do Messias como uma libertação.

Após isso, Sabbatai se mudaria para Constantinopla, provavelmente expulso pelas autoridades de Esmirna. Já em Constantinopla seria preso e mais tarde transferido para Abidos, onde receberia notícias de um profeta que havia profetizado a chegada do Messias. Esse profeta, chamado Nehemiah ha-Kohen viria a se encontrar com Sabbatai em 1666, que se revelaria em uma insatisfação mútua. Por conta disso, Nehemiah fugiria para Constantinopla, onde fingiria uma conversão ao Islã para ter uma audência com o líder local (kaymakam). Informado das atitudes de Sabbatai, o kaymakam informaria o sultão Mehmed IV do que estava ocorrendo, e então Sabbatai foi novamente transferido, dessa vez para Edirne.

Em Edirne ele seria desafiado pelo vizir do sultão a provar que era de fato o Messias (ou um simples agitador politico querendo incitar guerras internas com uma sublevação judaica), sendo concedida três opções para o rabino: a primeira opção era ficar inerte enquanto uma saraivada de flechas seria atirada em sua direção, todas devendo errar; a segunda opção era ser empalado, e a terceira era se converter ao Islã. No dia seguinte quando Sabbatai se encontrou com o sultão Mehmed IV, jogaria fora seus trajes judaicos, aderindo assim ao turbante turco. Eis que Sabbatai Zevi, até então autoproclamado Messias se converteu à religião Islâmica. O sultão ficou contente com a decisão de Sabbatai em se converter, recompensando o ex-rabino com o título de effendi4.

Os ex-seguidores de Sabbatai fazem penitência por seu apoio a ele.

Por ser uma figura popular, sua conversão não foi a única: arrastou consigo sua esposa Sarah e mais outras 300 famílias em média, todos convertendo-se ao Islã. Os novos conversos ficariam conhecidos como dönmeh, que significa “convertidos” em turco.

Muitos cristãos e muçulmanos viriam a zombar de seus seguidores, enquanto muitos ainda afirmavam que Sabbatai era de fato o Messias, e sua conversão ao Islã era meramente parte de seus planos messiânicos. Entretanto, Sabbatai, figura pitoresca que muito provavelmente sofria de algum transtorno de personalidade, por momentos insultava os fiéis do Judaísmo, enquanto que em outros momentos clamava como se fossem da mesma fé que ele.

A conversão dos dönmeh das 300 famílias anteriormente citadas foi peculiar, uma vez que em março de 1668, Sabbatai afirmaria ter recebido novas revelações divinas. Assim, diria para os judeus que ele era de fato seu messias e que a conversão ao Islã foi meramente uma estratégia para converter os muçulmanos ao judaísmo, enquanto que diria para os muçulmanos (inclusive ao sultão), que na verdade tentava converter os judeus ao Islã, ganhando assim permissão de Mehmed IV para pregar nas sinagogas, ocasião onde as 300 famílias de judeus sefarditas viriam a se converter ao Islã, e daí em diante ganhando a denominação de dönmeh.

Apesar das aparentes conversões ao Islã, os dönmeh ainda manteriam práticas judaicas em suas vidas pessoais, reconhecendo ainda Sabbatai Zevi como Messias, valendo-se dos idiomas hebraico e ladino. Hoje em dia os dönmeh ainda podem ser encontrados na Turquia, e estimativas variam no número de quantos ainda existem, indo dos 100 mil a centenas de milhares.

Notas:

[1] Termo que significa um homem sábio, utilizado normalmente no judaísmo para designar alguém que é um grande conhecedor da Torah.

[2] KOHLER & MALTER, 1906.

[3] Para informações mais aprofundadas sobre as duas tendências a respeito do messianismo judaico, conferir a obra de SHOLEM (2016).

[4] Título de nobreza, análogo ao Sir inglês e equivalente ao “mestre”, empregado normalmente para cargos do governo Otomano que não eram os mais altos, como Pasha ou Bey.

Bibliografia:

SCHOLEM, Gershom Gerhard. Sabbatai Ṣevi: The Mystical Messiah. 1626–1676. Princeton University Press. 2016.

KAUFMAN, Kohler; MATLER, Henry. Shabbetai Ẓebi B. Mordecai. Jewish Encyclopedia. 1906.

PLEN, Matt. Who was Shabbetai Zevi?. My Jewish Learning.

HALPERIN, David Joel. Sabbatai Zevi: Testimonies to a Fallen Messiah. Littman Library of Jewish Civilization. 2007.

FREELY, John. The Lost Messiah: In Search of the Mystical Rabbi Sabbatai Sevi. The Overlook Press. 2001.