Texto de: Pedro Gaião

Massacres de judeus, muçulmanos e cristãos orientais; quebra de juramentos oficiais para apropriar-se de terras conquistadas; extorsões e espoliações das comunidades judaicas europeias. A Primeira Cruzada, por si só, acumula uma grande quantia de episódios negros e bem conhecidos.

Surpreendentemente, seus episódios de canibalismo recebem uma atenção quase marginal em relação aos demais capítulos negros desta peregrinação militar; mais do que isso, a conotação religiosa e apologética dada pelos próprios religiosos na expedição recebe muito pouca, para não dizer quase inexistente, atenção.

Mas aqui é necessário um adendo: o Cristianismo, assim como outras religiões abrâamicas como o Islamismo e o Judaísmo, repudia a prática de comer carne humana, em qualquer condição. E embora os episódios de canibalismo tenham acontecido durante “contextos de privação”, sua presença em uma Santa Cruzada, por soldados de Cristo e nos contextos em que ocorreram contribuem em muito para o desprezo de quaisquer resquícios de crédito à sua justificação.

Antes de mais nada, é necessário explicar antes o fenômeno histórico da própria Primeira Cruzada. Ao contrário do que a maioria dos leigos supõe, a Primeira Cruzada traz poucas semelhanças com a visão mais estereotipada de uma guerra medieval clássica. Tudo isso porque, tão óbvio quanto se possa ser, estamos falando da Primeira Cruzada, isto é, a primeira vez que uma guerra foi angariada por razões fundamentalmente religiosas pelo líder máximo da religião cristã. Além de uma guerra, a Primeira Cruzada também foi vista como uma peregrinação; uma peregrinação armada e belicista, certamente, mas ainda assim uma peregrinação religiosa. 

Além de cavaleiros, nobres e soldados, constava-se ainda uma imensa massa de peregrinos, pregadores, clérigos e até prostitutas.  E apesar de não constituírem nenhum elemento militar de consideração, esses peregrinos e padres todos seguiam armados de pedras, paus ou, nos melhores casos, de alguma arma militar como arcos ou lanças. 

Nessa massa heterogênea e disforme, os soldados e cavaleiros da chamada “Cruzada dos Barões” constituíam cerca de 125 mil homens, um número surpreendentemente massivo para as condições de guerra da Europa Católica da época. Para se ter um melhor entendimento destes números, é importante comparar que grandes batalhas do período, como Stanford Bridge e Hastings (1066), não movimentaram mais que 12 mil homens nas estimativas mais otimistas; Paris, a cidade mais populosa do mundo católico, era habitada por cerca de 50.000 a 65.000 habitantes, em torno de 50% do que a massa peregrinante da Cruzada dos Barões detinha apenas em soldadesca. A própria Constantinopla, nas alturas da chegada dos expedicionários, contava com cerca de um quarto de milhão de habitantes; o que correspondia a nada mais que o dobro dos soldados católicos que se estacionaram pela mesma; não surpreende, tendo em vista esses números enormes e a própria postura desafiadora dos cruzados católicos na corte imperial, que o próprio imperador bizantino tenha temido que sua própria capital fosse tomada (como de fato seria na ocasião da Quarta Cruzada, em 1204).

Além do problema dos números, havia ainda o problema da organização: enquanto exércitos medievais eram organizados e liderados por uma autoridade visível, presente ou representada no topo de uma cadeia de comando, nada de similar existia na Primeira Cruzada: a função do Papa Urbano foi meramente a de convocar uma Cruzada, não de organizar ou liderar uma. Todo esse aspecto descentralizado na sua organização queria dizer que todos, sejam peregrinos, soldados, cavaleiros ou nobres, se reuniam por conta própria; é claro que eles geralmente se organizavam em torno das comitivas de um nobre local ou em irmandades de cooperação militar (um antecedente primitivo de Ordens Militares como a dos Templários), mas isto ainda passava longe do militarmente aceitável. Historiograficamente, existiram dois movimentos que fazem parte daquilo que podemos chamar de “Primeira Cruzada”: 

  1. A chamada Cruzada dos Barões, composta por um bom número de cavaleiros e soldados, que acompanhava as comitivas de nobres de grande calibre, como o Duque Roberto da Normandia, o Príncipe Boemundo de Taranto, o Conde Raimundo de Toulouse, o Duque Godofredo de Bulhões da Baixa Lorena entre outras dúzias e dúzias de condes e senhores com alguma participação de liderança.
  2. A chamada Cruzada dos Mendigos, composta majoritariamente por peregrinos pessimamente armados, comandados pelo pregador Pedro o Ermitão e nobres como o Conde Emicho de Rhineland e o Barão Walter o Falido.

Não surpreendentemente, a Cruzada dos Mendigos foi virtualmente destruída no primeiro conflito em território inimigo, com o restante dos seus membros sendo dispersa ou mesclada com a Cruzada dos Barões, mais bem equipada e organizada. Mas, diga-se de passagem, mesmo a Cruzada dos Barões não tinha nada próximo de uma cadeia de comando centralizada, ou mesmo com liderança compartilhada. Sendo assim, não se deve em falar em um exército da Primeira Cruzada, mas de exércitos, muitos deles.

Esse aspecto multicéfalo, alinhado com uma cadeia de abastecimento completamente deficiente e mal organizada, seria decisivo no decorrer dos acontecimentos que se seguiriam.

Como todos os suprimentos que abasteciam o exército cruzado no Oriente Médio eram provenientes ou de pilhagem ou de ajuda externa, geralmente bizantina, tarefas como levantar cercos contra cidades inimigas eram dificílimas. Os cruzados não carregavam qualquer equipamento de cerco com eles, de forma que mesmo para erguer escadas ou torres de cerco, era necessário ajuda bizantina para fornecer a madeira necessária para sua construção. Além disso, enquanto batalhas podem ser resolvidas em questões de horas, cercos quase sempre são operações que consomem meses. Com a míriade de bocas a serem alimentadas diariamente no acampamento cruzado, era bastante frequente casos em que eram justamente os sitiantes que se sentiam sitiados, cercando cidades bem abastecidas e fortalecidas dos quais eles mesmos não tinham condições de sitiar. Nesse tipo de cenário, a fome seria se provava uma companheira persistente. Apesar dessas mazelas, era a fé – e em certos casos a própria ganância – que mantinha as hostes de pé enquanto amargavam nas suas necessidades mais fundamentais.

Este é precisamente o caso do Cerco de Antioquia (1097-8), que se estendeu por cerca de oito meses. Eventualmente, a crise no abastecimento se fez presente: nem mesmo as incursões militares para angariar comida e nem o comércio feito com cristãos locais eram capazes de suprir as necessidades dos sitiantes. Como afirma Michaud: “os homens, os cavalos e os animais de carga morriam de fome, de sede e de cansaço” (MICHAUD, 1956, p. 273).

Sem comida, os cavalos foram os primeiros a serem sacrificados; ao fim do cerco, somente 700 cavalos haviam sobrevivido à predação desesperada dos cruzados famintos. Como uma testemunha ocular relata:

“De tal modo os nosso sofreram sede que alguns abriam as veias de seus cavalos e jumentos a fim de beber seu sangue; outros pediam a um companheiro que colhesse com as mãos a urina, para com ela mitigar a sede; outros ainda escavavam o solo úmido, deitavam-se e espalhavam terra no peito, tamanho era o ardor de sua sede” (FRANCO, 1981, p. 40)

Mas as coisas não pararam por aí:

“O que encontrava um cachorro ou gato mortos o comia com grande gosto. Comeram alguns cavalos, mas havia que guardá-los para as batalhas. Comeram couro, erva e até prisioneiros – salvo as cabeças, que colocavam sobre largas estacas à vista dos inimigos” (DUCHÉ, 1964, p. 383).

Embora exista uma ala considerável de leigos e até de historiadores que procure desprezar a ideia de um canibalismo sendo cometido no cerco de Antioquia, a realidade destes episódios são imortalizadas pelas próprias testemunhas oculares: “se algum dos nossos se distanciava do campo e encontrava alguém, também dos nossos, um matava o outro para despojá-lo” (LINS,  1944, p. 317)

Algumas das fontes primárias que mencionam o canibalismo em Antióquia são a Chanson d`Antioche, o historiador e arcebispo Guilherme de Tiro e o escritor inglês William de Malmesbury (RUBENSTEIN, p. 537); este último adiciona alguns detalhes aos eventos:

“E existiram alguns que se banquetearam seus corpos com cadáveres, alimentando-se de carne humana, mas [fazendo-o] muito longe nas montanhas, para que outros não se ofendessem com o cheiro da carne cozida” (MALMESBURY, Gesta regum Anglorum).

Os principais comandantes cruzados no Cerco de Antioquia também indicaram a existência de canibalismo no cerco, conforme a própria carta dos mesmos ao Papa, em setembro de 1099, revela:

“A fome na cidade havia crescido de tal maneira que muitos tiveram dificuldade em se privar de banquetear-se de carne humana” (RUBENSTEIN, p. 538). 

Como Rubestein nota:

“A carta endereçada ao Papa e a admoestação do pregador Pedro Bartolomeo ambos se referem a cristãos comendo cristãos, não muçulmanos.

[…]

A princesa Ana Comnena afirma ter acontecido canibalismo ainda antes disso [ie. do Cerco de Antióquia], com a Cruzada dos Mendigos liderada por Pedro o Ermitão. Conforme seu exército maltrapilho devastava as terras ao redor de Nicéia, ela escreve em termos similares ao de Ralph e Gilo [cronistas da Primeira Cruzada]: ‘eles cortam em pedaços alguns dos bebês, empalam outros em estacas de madeira e cozinham outros no fogo; idosos são submetidos à todo tipo de tortura” (RUBENSTEIN, P. 539).

Assim como seu pai, o imperador Aleixo Comneno, a princesa Ana Comnena observava os peregrinos francos como verdadeiros bárbaros. E a luz dos fatos, bem, dificilmente poderíamos tirar sua razão. 

Em seu Les Croisades, Brentano ainda constata:

“Não encontrando mais, em volta de seu imenso acampamento, ervas, cascas e raízes que lhes aplacassem a fome, passaram a comer seus cavalos, jumentos, camelos, cães e até os ratos que conseguiam apanhar, chegando o poviléu – a famosa gente du roi Tafur da epopeia contemporânea – Chanson d` Antioche – a devorar cadáveres dos sarracenos mortos nos reencontros, indo alguns ao ponto de desenterra-los no cemitério, que ficava fora dos muros de Antioquia” (LINS, 1944, p. 317)

Após oito meses de cerco, os cruzados conseguiram subornar um certo Firouz, rico comerciante cristão armenio que havia se convertido ao Islã, para abri-lhes à cidade pela torre que guardava. Apesar disso, a cidade foi devastada à ferro e fogo, mesmo que a grande maioria da população ainda fosse composta de cristãos, tendo em vista que a mesma só caiu para domínio turco em 1085, doze anos antes de ser sitiada pelos cruzados.

Amin Malouf descreve um pouco da brutalidade cometida após a conquista de Antióquia:

“A cidade está incendiada e o sangue corre. Homens, mulheres e crianças tentam fugir pelas ruelas lamacentas, mas os cavaleiros os alcançam sem esforço e cortam-lhes o pescoço imediatamente. Pouco a pouco, os gritos de horror dos últimos sobreviventes se apagam, logo substituídos pelas vozes desafinadas de alguns saqueadores francos já embriagados. A fumaça sobe de muitas casas incendiadas. Ao meio-dia, um véu de luto envolve a cidade” (MAALOUF, p. 35)

Poucos prisioneiros eram tomados, mas apenas para mutilá-los e reduzi-los à escravidão perpétua. Bastos descreve que “era com satisfação que os barões feudais cortavam os narizes e os lábios dos turcos que aprisionavam” (BASTOS, 1983, p. 92)

Uma vez conquistada e assegurada Antioquia, ela não foi devolvida à autoridade bizantina, com o Boemundo de Taranto alegando que os mesmos teriam “traído” os católicos ao não fornecer suporte adequado ao cerco. Todavia, Duché escreve que “tomar Antuioquia era para Boemundo um assunto pessoal. Ou seja, que tentava tomar para ele. E os outros barões, dando conta de que nada podiam fazer sem aquele diabo de homem, o consentiram” (DUCHÉ, 1964, 382).

Enquanto o exército cruzado ficou emperrado em seu avanço pelas espoliações dos altos barões na disputa pelo domínio da cidade, diversos cruzados tentaram avançar por conta própria, seja por causas mais religiosas ou por causas mais terrenas, como descreve Hilàrio Franco: “cada chefe cruzado se empenhou em ações isoladas procurando realizar uma conquista territorial para benefício próprio “ (FRANCO, 1981, p. 43). Destas iniciativas, destaca-se o Cerco de Maara, por iniciativa de um cavaleiro do séquito do conde Raimundo de Tolosa. 

Maara funcionava como entreposto nas rotas comerciais que levavam à rica e poderosa capital do poderoso Emirado de Damasco. Apesar de contar com pouco mais que civis e milícias de pouco valor militar, a cidade foi capaz de repelir os assaltos cruzados por cerca de duas semanas. Apesar de curto, o fato de o exército cruzado ter cercado a cidade no inverno e com poucas provisões seria decisivo no destino que a população da mesma teria.

No dia 11 de dezembro, uma ação conjunta permitiu a tomada das muralhas e torres defensivas. Apesar de ambos os exércitos terem cessado as lutas no cair da noite, os peregrinos mais pobres aproveitaram as conquistas cruzadas para saquear os interiores da cidade. Na manhā do dia 12, antes dos combates se reiniciarem, a guarnição da cidade negociou sua rendição com o príncipe Boemundo de Taranto, obtendo o direito de salvo-conduto.

Apesar disso, tão cedo quanto os muçulmanos se renderam, os cruzados quebraram seu juramento e se lançaram vigorosamente contra a cidade, saqueando e massacrando sua população. 

“O chefe franco promete garantias se cessarem o combate, deixando para trás algumas construções. Agarrando-se desesperadamente à sua palavra, as famílias reúnem-se nas casas e porões da cidade e, a noite toda, esperam tremendo. Na alvorada, chegam os francos. É uma carnificina. Durante três dias, eles matam mais de cem mil pessoas pela espada, e fazem muitos prisioneiros” (MAALOUF, p. 35)

Se os cruzados esperavam encontrar suprimentos adequados para a passagem do inverno, nisso acabaram sendo frustrados. A longa disputa entre Raimundo de Tolosa e Boemundo de Taranto pela posse de Antioquia só amargou a miséria dos conquistadores, que tiveram que recorrer ao canibalismo. 

Como uma outra carta dos altos barões ao Papa revela: “uma terrível fome atormentou o exército em Ma’arra e impôs a cruel necessidade de se alimentar dos corpos dos sarracenos”

Rudolfo de Caen, uma testemunha ocular do episódio, descreve em seu Gesta Tancredi in Expeditione Hierosolymitana: “em Ma’arra as nossas tropas cozeram pagãos adultos em caldeirões, empalaram crianças em espetos e devoraram-nas grelhadas” (MAALOUF, p. 47)

O banquete profano, ao invés de algo impulsivo ou inocente, parece ter sido na verdade premetido bem antes do próprio massacre: “[os francos] se espalham pelos acampamentos, clamando bem alto que querem devorar a carne dos sarracenos e que se reúnem à noite ao redor do fogo para devorar suas presas” (Ibid)

Baudri, o arcebispo de Dóle, defendia o canibalismo sob a justificativa teológica de que “comer cadáveres de infiéis é ainda fazer-lhes guerra” (Ibid)

Lins declara que os cruzados devoraram cadáveres de muçulmanos “até mesmo já em estado de putrefação” (LINS, p. 317).

Um capelão do conde Raimundo de Tolosa, também testemunha ocular, comenta que “chegaram os cruzados de classe popular a devorar, com avidez, corpos de sarracenos decompostos e já fétidos, que se encontravam nos pântanos, junto da cidade, desde quinze e mais dias” (Ibid, p. 322-323)

O cronista franco Albert de Aix afirmou que “os nossos não repugnavam em comer não só a carne dos turcos e dos sarracenos mortos, mas também a carne dos cães” (MAALOUF, p. 47).

Como bem observado por Rubenstein, existem cerca de 10 fontes primárias sobre o canibalismo em Ma’arra. Mas elas aparentemente divergem em relação a quando houve canibalismo: “a maioria das fontes, sete das dez examinadas até então, colocam o episódio de canibalismo após o cerco de Ma’arra. Mas quando consideramos um das fontes derivadas da Gesta e outras três fontes que consideram o canibalismo durante o cerco, sendo elas altamente independentes uma das outras, somos deixados como uma margem muito maior” (RUBENSTEIN, p. 537).

Uma solução para este aparente problema pode ser que ocorreram atentados canibais durante e depois da batalha, isto não exatamente postula nenhum grande problema. O que é absurdo, diga-se de passagem, é que ainda se negue que os cruzados praticaram canibalismo na Primeira Cruzada, tendo em vista a grande quantidade de fontes e a própria defesa religiosa que um bispo no cerco fez da prática. 

Bibliografia:

RUBENSTEIN, Jay. Cannibals and Crusaders. French Historical Studies, 2008. 

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas Pelos Árabes. 4 ed. Rio São Paulo: brasiliense, 2001.

LINS, Ivan. A Idade Média – A Cavalaria e as Cruzadas. 2 ed.Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944.

FRANCO, Hilário. As Cruzadas. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.

BASTOS, Plínio. História do Mundo – Da Pré-História aos Nossos Dias. 3 ed. Rio de janeiro: Livraria Império, 1983. 

MICHAUD, Joseph François. História das Cruzadas, vol. 2. São Paulo: Editora das Américas, 1956. 

DUCHÉ, Jean. Historia de la humanidade II – El Fuego de Dios. 1 ed. Madri: Ediciones Guadarrama, 1964.