Texto de: David J Wasserstein

O Islã salvou os judeus. Esta é uma afirmação impopular e desconfortável no mundo moderno. Mas é uma verdade histórica. O argumento para isso é duplo. Primeiro, em 570 d.C., quando o Profeta Muhammad nasceu, os judeus e o judaísmo estavam a caminho do esquecimento. E em segundo lugar, a vinda do Islã os salvou, proporcionando um novo contexto no qual eles não apenas sobreviveram, mas floresceram, estabelecendo as bases para a prosperidade cultural judaica subsequente – também na cristandade – durante o período medieval até o mundo moderno.

No século IV, o Cristianismo se tornou a religião dominante no Império Romano. Um aspecto desse sucesso foi a oposição a religiões rivais, incluindo o judaísmo, junto com a conversão massiva de membros de tais religiões, às vezes pela força, ao cristianismo. Muito do nosso testemunho sobre a existência judaica no Império Romano dessa época em diante consiste em relatos de conversões.

Grandes e permanentes reduções em números por meio de conversões, entre o quarto e o sétimo séculos, trouxeram consigo uma redução gradual, mas implacável, do status, dos direitos, da existência social e econômica e da vida religiosa e cultural dos judeus em todo o Império Romano.

Uma longa série de decretos privou os judeus de seus direitos como cidadãos, impediu-os de cumprir suas obrigações religiosas e os excluiu da sociedade de seus companheiros.

Isso acompanhou os séculos de luta política e militar com a Pérsia. Como um elemento minúsculo no mundo cristão, os judeus não deveriam ter sido muito afetados por essa questão política ampla. Ainda assim, isso os afetou de forma crítica, porque o império persa nessa época incluía a Babilônia – agora o Iraque – na época lar da maior concentração de judeus do mundo.

Se o Islã não tivesse surgido, os judeus no Ocidente teriam minguado até desaparecer e os judeus no Oriente teriam se tornado apenas outro culto oriental.

Aqui também estavam os maiores centros da vida intelectual judaica. A obra isolada mais importante da criatividade cultural judaica em mais de 3.000 anos, além da própria Bíblia – o Talmud – surgiu na Babilônia. A luta entre a Pérsia e Bizâncio, em nosso período, levou cada vez mais a uma separação entre judeus sob o domínio bizantino e cristão e os judeus sob o domínio persa.

Além de tudo isso, os judeus que viviam sob o domínio cristão pareciam ter perdido o conhecimento de suas próprias línguas culturalmente específicas – hebraico e aramaico – e adotaram o uso do latim, do grego ou de outras línguas locais não judias. Isso, por sua vez, deve ter significado que eles também perderam o acesso às obras literárias centrais da cultura judaica – a Torá, a Mishná, a poesia, o midrash e até a liturgia.

A perda da força unificadora representada pela linguagem – e da literatura associada [a ela] – foi um passo importante para a assimilação e o desaparecimento. Nessas circunstâncias, com o contato com o único lugar onde a vida cultural judaica continuava a prosperar – Babilônia – desagregada pelo conflito com a Pérsia, a vida judaica no mundo cristão da antiguidade tardia não era simplesmente uma sombra pálida do que tinha sido três ou quatro séculos antes. Estava condenada.

Se o Islã não tivesse surgido, o conflito com a Pérsia teria continuado. A separação entre o judaísmo ocidental, o da cristandade, e o judaísmo babilônico, o da Mesopotâmia, teria se intensificado. Os judeus no Ocidente teriam definhado até o desaparecimento em muitos locais. E os judeus no Oriente teriam se tornado apenas mais um culto oriental.

Mas tudo isso foi impedido pela ascensão do Islã. As conquistas islâmicas do século VII mudaram o mundo, e o fizeram com um efeito dramático, amplo e permanente para os judeus.

Um século após a morte de Muhammad, em 632, os exércitos muçulmanos conquistaram quase todo o mundo onde os judeus viviam, da Espanha ao leste, passando pelo norte da África e Oriente Médio, até a fronteira oriental do Irã e além. Quase todos os judeus do mundo agora eram governados pelo Islã. Esta nova situação transformou a existência judaica. Sua sorte mudou em termos legais, demográficos, sociais, religiosos, políticos, geográficos, econômicos, linguísticos e culturais – tudo para melhor.

Primeiro, as coisas melhoraram politicamente. Quase todos os lugares da cristandade onde os judeus viviam agora faziam parte do mesmo espaço político que a Babilônia – Córdoba e Basra ficavam no mesmo mundo político. A velha fronteira entre o centro vital da Babilônia e os judeus da bacia do Mediterrâneo foi varrida para sempre.

A mudança política foi acompanhada pela mudança no status legal da população judaica: embora nem sempre seja claro o que aconteceu durante as conquistas muçulmanas, uma coisa é certa. O resultado das conquistas foi, em geral, tornar os judeus cidadãos de segunda classe.

Isso não deve ser mal interpretado: ser um cidadão de segunda classe era uma coisa muito melhor do que não ser cidadão. Para a maioria desses judeus, a cidadania de segunda classe representou um grande avanço. Na Espanha visigótica, por exemplo, pouco antes da conquista muçulmana em 711, os judeus viram seus filhos serem removidos e convertidos à força ao cristianismo, e eles próprios foram escravizados.

Nas sociedades islâmicas em desenvolvimento dos períodos clássico e medieval, ser judeu significava pertencer a uma categoria definida por lei, gozando de certos direitos e proteções, ao lado de várias obrigações. Esses direitos e proteções não eram tão extensos ou generosos quanto os desfrutados pelos muçulmanos, e as obrigações eram maiores, mas, nos primeiros séculos, os próprios muçulmanos eram uma minoria e as diferenças práticas não eram tão grandes.

Junto com a quase igualdade legal veio a igualdade social e econômica. Os judeus não estavam confinados aos guetos, seja literalmente ou em termos de atividade econômica. As sociedades do Islã eram, na verdade, sociedades abertas. Em termos religiosos, também, os judeus gozavam de liberdade quase total. Eles podiam não construir muitas novas sinagogas – em teoria – e não tornar tão público a sua profissão de fé, mas não havia nenhuma restrição realmente significativa à prática de sua religião. Além da autonomia jurídica interna, também gozavam de representação formal, por meio de lideranças próprias, perante as autoridades do Estado. Imperfeito e muitas vezes não tão otimista quanto possa parecer, era pelo menos a norma geral.

A unidade política trazida pelo novo império global islâmico não durou, mas criou uma vasta civilização mundial islâmica, semelhante à civilização cristã mais antiga que substituiu. Nessa enorme área, os judeus viviam e gozavam de status e direitos amplamente semelhantes em todos os lugares. Eles podiam se mover [pelos territórios], manter contatos e desenvolver sua identidade como judeus. Uma grande e nova expansão do comércio a partir do século IX trouxe os judeus espanhóis – como os muçulmanos – a entrar em contato com os judeus e até mesmo com os muçulmanos da Índia.

Tudo isso foi encorajado por um novo desenvolvimento crítico. Um grande número de pessoas no novo mundo do Islã adotou a língua dos árabes muçulmanos. O árabe tornou-se gradualmente a língua principal desta vasta área, excluindo quase todo o resto: grego e siríaco, aramaico e copta e latim, todos morreram, substituídos pelo árabe. Persa também entrou em um longo retiro, para reaparecer mais tarde fortemente influenciado pelo árabe.

Os judeus mudaram para o árabe muito rapidamente. No início do século X, apenas 300 anos após as conquistas, Sa’adya Gaon estava traduzindo a Bíblia para o árabe. A tradução da Bíblia é uma tarefa gigantesca – não é realizada a menos que haja necessidade. Por volta do ano 900, os judeus haviam abandonado em grande parte outras línguas e adotado o árabe.

A mudança de idioma, por sua vez, colocou os judeus em contato direto com desenvolvimentos culturais mais amplos. O resultado do século X em diante foi uma notável combinação de duas culturas. Os judeus do mundo islâmico desenvolveram uma cultura inteiramente nova, que diferia de sua cultura anterior ao Islã em termos de linguagem, formas culturais, influências e usos. Ao invés de se preocupar principalmente com a religião, a nova cultura judaica do mundo islâmico, como a de seus vizinhos, mesclava em alto grau o religioso e o secular. O contraste, tanto com o passado quanto com a Europa cristã medieval, era enorme.

Como seus vizinhos, esses judeus escreviam parcialmente em árabe e em uma forma judaica dessa língua. O uso do árabe os aproximou dos árabes. Mas o uso de uma forma específica judaica dessa língua manteve as barreiras entre judeus e muçulmanos. Os assuntos sobre os quais os judeus escreveram, e as formas literárias em que escreveram sobre eles, eram em grande parte novos, emprestados dos muçulmanos e desenvolvidos em conjunto com os desenvolvimentos do Islã árabe.

Também nessa época, o hebraico foi revivido como uma língua de alta literatura, paralelo ao uso entre os muçulmanos de uma forma elevada do árabe para finalidades semelhantes. Junto com seu uso para poesia e prosa artística, a escrita secular de todas as formas em hebraico e em (Judeo-)Árabe surgiu, algumas delas de alta qualidade.

Grande parte da maior poesia em hebraico escrita desde a Bíblia vem desse período. Sa’adya Gaon, Solomon Ibn Gabirol, Ibn Ezra (Moisés e Abraão), Maimônides, Yehuda Halevi, Yehudah al-Harizi, Samuel ha-Nagid e muitos mais – todos esses nomes, bem conhecidos hoje, pertencem à primeira classe do esforço literário e cultural judaico.

Onde esses judeus produziram tudo isso? Quando eles e seus vizinhos alcançaram essa simbiose, esse modo de viver juntos? Os judeus o fizeram em vários centros de excelência. O mais notável deles foi a Espanha islâmica, onde houve uma verdadeira Idade de Ouro judaica, ao lado de uma onda de conquistas culturais entre a população muçulmana. O caso espanhol também ilustra um padrão mais geral.

O que aconteceu na Espanha islâmica – ondas de prosperidade cultural judaica paralelas às ondas de prosperidade cultural entre os muçulmanos – exemplifica um padrão mais amplo do Islã árabe. Em Bagdá, entre os séculos IX e XII; em Qayrawan (no norte da África), entre os séculos IX e XI; no Cairo, entre os séculos X e XII, e em outros lugares, a ascensão e queda dos centros culturais do Islã tendeu a se refletir na ascensão e queda da atividade cultural judaica nos mesmos lugares.

Isso não foi coincidência, nem foi produto de um patrocínio liberal especialmente esclarecido por parte de governantes muçulmanos. Foi o resultado de uma série de características mais profundas dessas sociedades, sociais e culturais, jurídicas e econômicas, linguísticas e políticas, que juntas permitiram e de fato encorajaram os judeus do mundo islâmico a criar uma nova subcultura dentro da alta civilização da época.

Isso não durou para sempre; o período de simbiose culturalmente bem-sucedida entre judeus e árabes muçulmanos na idade média chegou ao fim por volta de 1300. Na realidade, havia chegado a esse ponto ainda antes, com o declínio geral relativo à importância e vitalidade da cultura árabe, tanto em relação com as culturas da Europa Ocidental e quanto a outras formas culturais dentro do próprio Islã; Persa e Turco.

A prosperidade cultural judaica na Idade Média operou em grande parte como uma função da prosperidade cultural árabe muçulmana (e até certo ponto política): quando a cultura árabe muçulmana prosperou, o mesmo aconteceu com a dos judeus; quando a cultura árabe muçulmana declinou, o mesmo aconteceu com a dos judeus.

No caso dos judeus, no entanto, o capital cultural assim criado também serviu como semeadura de um crescimento posterior em outros lugares – na Espanha cristã e no mundo cristão em geral.

O mundo islâmico não foi a única fonte de inspiração para o renascimento cultural judaico que veio mais tarde na Europa cristã, mas certamente foi um contribuinte importante para esse desenvolvimento. Seu significado não pode ser superestimado.

Fonte: The Jewish Chronicle