Ninguém acreditaria, exceto os conhecedores do Islã e sua história, que o primeiro muezim que chamou os muçulmanos e muçulmanas à oração era negro e de origem escrava. Nos referimos à Bilal Ibn Rabah al-Habashi, cuja vida está envolta em lendas, mas sobretudo em feitos revestidos de heroicidade. Bilal, filho de um árabe e com uma escrava abissínia, se negou a renunciar publicamente a sua crença sobre a unicidade divina que então predicava o Profeta Muhammad, e isto apesar do sangrento castigo decretado por seu amo que poderia telo levado a morte. A partir de então, seus feitos a serviço do nascente império árabe-islâmico serão cantados e recompilados como sinônimos de pureza, respeito e fidelidade, convertendo-se num modelo de emancipação as populações pretas.

Bilāl Ibn Rabāḥ al-Ḥabashī fazendo o cahamado à oração. Wikimedia commons.

A figura de Bilal e a vocação universalista do Islã —com a consideração de todos os seres humanos, é claro, os muçulmanos, como iguais perante Deus— promovem a alforria de escravos ('itq) principalmente como uma ação piedosa e/ou como compensação de dívidas legais ou religiosas. No entanto, embora existam inúmeros hadiths e passagens corânicas que vão nessa direção, a realidade desta civilização será diferente, pois não apenas resistirá a acabar com essa forma de dependência humana, mas será uma das mais beneficiadas para o referido negócio. Uma questão é a intencionalidade da lei e o impulso transformador dos primórdios do movimento e outra é a aplicação feita por uma sociedade em expansão.

O ponto de partida é a Arábia pré-islâmica, onde abundavam os escravos, não só negros, mas também brancos e até de origem árabe. Os negros vinham principalmente do Chifre da África (Zanj) e arredores, área com a qual a Península Arábica mantinha desde os primórdios relações culturais, políticas e comerciais. Ali realizavam todo tipo de tarefas: domésticas, agrícolas e artesanais. Em uma sociedade altamente organizada em torno de laços de sangue, clãs e suas hierarquias internas, ter algum progenitor negro era motivo suficiente para ser desenraizado.

‘Antara bin Shaddād e sua amante Abla. Wikimedia Commons.

No entanto, esses preconceitos poderiam ser quebrados se o indivíduo realizasse grandes feitos para a prosperidade e bem-estar de sua tribo. Então o excluído tornava-se honrado e o desenraizado, herói. Aliás, exemplos disso não faltam. Assim, alguns dos personagens que compõem o substrato cultural e o subconsciente coletivo árabe eram negros ou mestiços, e de evidente origem escrava. Lembramos antes do caso de Bilal, mas no estágio da Ignorância (jāhiliyya, como os árabes muçulmanos chamam o período anterior à chegada do Islã) dois personagens se destacaram acima de tudo. O primeiro foi Shanfara (lit. "o de lábios largos"), filho de uma escrava abissínia e um dos principais poetas da civilização árabe, a quem alguns atribuem a autoria do lāmiyyat al-'Arab, uma das sagas mais conhecidas da literatura árabe. E o segundo, 'Antara bin Shaddād, filho de um aristocrata pertencente a uma das principais tribos da Arábia e uma princesa etíope capturada em um dos muitos ataques que foram dirigidos contra Axum, foi o compositor de um dos mu'allaqāt que, segundo a lenda, vieram para pendurar na Caaba. Ambas as personalidades possuem as mesmas características, são descendentes de negros, marginalizados pela cor da pele e origens, e devem realizar méritos extraordinários para obter o reconhecimento de seus coabitantes. Os dois conseguem e acabam se tornando referência para toda a civilização árabe.

Escravos negros nas Maqamat de al-Hariri. BNF ms. Arabe 5847, f. 105r.

São exceções, mas sem dúvida são de grande importância pela marca indelével que deixaram. No entanto, como apontamos, se o espírito da nova religião, em seus momentos iniciais, incentiva a emancipação dos escravos, como ato piedoso, quando o projeto político-religioso começa a formar um império, eminentemente árabe e, claro, Islâmico, não apenas uma das principais receitas econômicas não será abandonada, mas aumentará exponencialmente. Não devemos esquecer que as capturas eram permitidas na terra dos inimigos (dār al-harb). Isto é claramente observado, especialmente quando a África negra está integrada nas redes comerciais mediterrâneas. No Oriente já havia prelúdios sobre isso. O aumento acelerado de escravos negros e sua superexploração são evidentes na esplêndida Bagdá, onde a exploração e o tratamento desumano levam às revoltas dos zanj (escravos negros do Chifre da África). É quando milhares de negros se organizam e se rebelam em prol de um regime alternativo que vive do saque sistemático das principais cidades. Poucos estudiosos e especialistas se deram ao trabalho de explicar essas revoltas que mantinham em xeque a principal potência mundial da época, o califado abássida, e que, em uma delas, a terceira (869-883), eles iriam mesmo a ponto de fundar uma nova capital rebelde, al-Mukhtara (‘’a Escolhida’’), a noroeste de Basra.

Preconceitos e cenas vilipendiando os escravos negros são comuns na poesia e na literatura. Recorda-se a figura do negro nas 1001 noites ou da sátira que o poeta al-Mutanabbī dedica ao eunuco iquixida Kāfūr, vizir do Egito:

‘’Me assombra ver teus pés com sandalhas,

pois te vi descalço com sandalhas.

És tão tolo que nem tu mesmo sabes se és negro, ou se branco se tornas-te.

A tira em teu calcanhar me lembra a corrente que um dia ali ostentavas.

 Quando, nú, andavas vestido à peixe preto.

Se não fosse pela indiscrição das pessoas,

não ficarias sabendo da sátira que meu panegírico continha,

e terias saltado de alegria com o que eu recitava,

ainda que impregnado de sátira estivesse

. Se nada de bom me concedeste, ao menos me diverti olhando tuas fuças.

 Que faz parecer que de um distante país trouxeram,

para fazer rir aos enlutados.’’

 (Veglison, 1997: 191 poesía nº 152)

Mas o contato real entre o Islã e a África negra ocorre no Ocidente do mundo conhecido naquela época. Quando os árabes chegaram ao norte da África, geógrafos e cronistas começaram a descrever com enormes preconceitos, e carregados de elementos fantasiosos, os povos da África negra, que chamavam de al-Bilād al-Sūdān. Autores como al-Mas‛ūdī (século X), al-Bakrī (século XI) ou al-Idrīsī (século XII) enchem suas histórias de mitos e lendas sobre antropofagia, poliandria e barbárie. O próprio Ibn Khaldūn (século XIV), um exemplo de racionalismo árabe, também não fica aquém. São várias as passagens que esse historiador tunisiano de origem sevilhana dedica aos negros:

‘’O comportamento sudanês é caracterizado por irreverência, inconsistência e exuberância. Eles se entregam à dança e às excentricidades assim que ouvem a música, em todos os países. Segundo os filósofos, a razão de tudo isso é que a natureza da alegria e da felicidade causa a expansão e liberação do espírito animal.’’

Por sua vez, o viajante mais universal do Islã, Ibn Baṭṭūta (século XIV), ficou impressionado com a submissão dos negros à seu mansa, mas também com a liberdade que as mulheres desfrutavam para se relacionarem com seus pares masculinos a sós, como foi destacado em outro artigo de revista.

Apesar do caráter negativo dessas visões, vale insistir que a construção do “outro”, neste caso, não se dá tanto pelo pertencimento a outra etnia ou cor quanto pelo fato de pertencer a outras religiões que não o islamismo, na maioria das vezes, politeístas. De fato, observamos tantos preconceitos, e às vezes até mais negativos, em relação aos cristãos da Península Ibérica, que são descritos como rudes, sujos e bárbaros. A construção ideológica do supremacismo e a consequente inferioridade do negro terá que esperar vários séculos, mas é óbvio que, à força de associar, cada vez mais frequentemente, a escravidão à negritude, o significante "negro" (e seu zanj/aswad/agnau , este último em amazigue) acabaria se tornando sinônimo de escravo e inferior, assim como havia acontecido na Europa com o termo eslavo, origem da palavra escravo.

A islamização da África Subsaariana pelos amazigues

Quando os europeus chegaram ao rio Senegal, ignoraram tudo nesta área do continente. Por outro lado, os mercadores árabes e, sobretudo, os amazigues, comercializavam, residiam e negociavam com os nativos há séculos. Não em vão, o nome dado a este país é o de uma das tribos berberes, os Zanaga, embora a etimologia popular senegalesa aponte que deriva de Sunhu Gaal (Wolof), nossa canoa. Séculos de relações fazem com que os berberes se tornem os verdadeiros islamistas das populações subsaarianas, que se convertem ao islamismo quase sem derramamento de sangue e à mercê sobretudo das trocas comerciais e culturais. Numerosos são os vestígios do amazigue nas línguas negras africanas, bem como os empréstimos referentes a celebrações e assuntos religiosos, palavras como takhabone (título da famosa canção de Ismael, associada a festa do fim do jejum), timmis ( oração do pôr do sol), tabaski ('īd al-kabīr, popularmente conhecida como a festa do cordeiro)… fazem parte da identidade compartilhada entre os berberes e a África subsaariana.

A conversão foi feita de forma piramidal. Primeiro, foram as elites que adotaram os costumes islâmicos por meio de suas relações com os mercadores. Numa segunda fase, com a islamização dos sultões e da corte, viria o resto da população, sem de modo algum provocar o abandono de algumas crenças anteriores, dando origem a sincretismos interessantes. A islamização que chega aliada a uma arabização mínima se integra ao universo cultural, religioso e favorece o econômico. Em virtude disso, desaparecem alguns preconceitos em relação aos negros, e há até uma certa admiração pelas novas elites que estão se islamizando.

 Não devemos esquecer que o fundador do Sijilmāsa, 'Isā b. Yazīd ou Mazīd al-Aswad (140/757- 155/771), era negro, algo que se enquadrava na ideologia carijta sufri dos Ayt Midrār, embora o tenham deposto sob o pretexto de que todos os negros eram ladrões, eles o capturaram e deixado para morrer amarrado a uma árvore. E também sabemos que os almóadas vieram a santificar alguns personagens negros da comitiva de Ibn Tūmart, como Muslim al-Gnāwī, Abū Muḥammad Wasnār, Aghuwāl, Mimūn al-Kabīr, Mimūn al-Ṣagīr e Iburak Isamgan. E vale destacar o caso de Mansa Musa, imperador do Mali, a quem as fontes árabes enchem de elogios, destacando sua generosidade e caráter piedoso. Esse personagem, digno de um extenso artigo em si mesmo, tornou-se famoso no mundo mediterrâneo por sua peregrinação a Meca, na qual entraram em contato, não pela primeira vez, mas com mais clareza do que nunca, a África negra, o mundo árabe-islâmico e comerciantes europeus. A expedição lhe rendeu muitos elogios, sua comitiva e seus enormes gastos que levaram a uma desvalorização significativa do ouro foram destacados. Desde então, a relação da África negra com o ouro na Europa da época se consolidará —árabes e berberes já a conheciam há séculos—. Sintomático disso é a imagem com cetro, coroa e, sobretudo, com uma enorme pepita de ouro na mão, com a qual o mansa está representada no Atlas do judeu maiorquino Abraham Cresques (1375), uma das jóias da nossa cartografia.

No entanto, a islamização, que implica integração, melhor conhecimento e revitalização de contatos, também gera uma série de transformações e efeitos inexoráveis ​​nessas sociedades subsaarianas. As elites integradas se tornariam, de um lado, disseminadoras da nova religião e, de outro, delegados do tráfico de escravos negros, em teoria apenas não-muçulmanos, mas na prática também do referido credo. Assim, se estes impérios do Bilād al-Sūdān sempre colocaram no mercado um número significativo de servos que chegaram ao Magrebe, al-Andalus e ao resto do mundo conhecido, a partir de então a captura sistemática de não muçulmanos africanos se acelerou na savana e arredores. Tudo isso seria o início do que, em larga escala, e integrando as grandes fazendas de monocultura, os europeus realizariam a partir dos séculos XV e XVI. Os pioneiros disso, sem dúvida, seriam os portugueses, já estabelecidos na costa atlântica desde o início do XV.

Para expandir:

  • BOVILL, Edward W.: The Golden trade of the Moors, Londres: Markus Wiener Publishers, 1968 (reed. de la de 1933).
  • BURESI, Pascal y GHOUIRGATE, Mehdi: Histoire du Maghreb médiéval (XIe-XVe siècle), París, Armand Colin, 2013.
  • DI TOLLA, Anna M: “Midrār (Banū) ou Midrārides”, Encyclopédie berbère [Online], 32 | 2010, documento M113, Online desde 06 noviembre del 2020, connection on 23 September 2021. URL: http://journals.openedition.org/encyclopedieberbere/599 ; DOI: https://doi.org/10.4000/encyclopedieberbere.599.
  • HEERS, Jacques: Les négriers en terres d’islam : la première traite des noirs, VIIe-XVIe siècle, París: Perrin, 2003.
  • IBN BAṬṬŪṬA: A través del Islam, ed. y trad. Serafín Fanjul y Federico Arbós, Madrid: Alianza Literaria, 1981.
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  • KĀTĪ, Maḥmūd: Tā’rīj al-Fattāŷ fī ajbār al-buldān wa-l-ŷuyūš wa-akabir al-nass/Crónica del investigador sobre la historia de los países, los ejércitos y los grandes personajes, trad. fr. O. Houdas y M. Delafosse, París: Ernest Leroux, 1981.
  • KI-ZERBO, Joseph (dir.): Histoire générale de l’Afrique. IV. LAfrique du XIIe au XVIe siècle, París, 1991.
  • LEWICKI, Tadeusz: «L’État nord-africain de Tāhert et ses relations avec le Soudan occidental à la fin du VIIIe et IXe siècle», Cahiers d’Études Africaines, vol. 2, nº 8 (1962), pp. 513-535.
  • NIANE, Djibril T.: Le Soudan occidental aux temps des grands empires, s. XI-XVI, París, 1975.
  • SÉNAC, Philippe y CRESSIER, Patrice: Histoire du Maghreb Médiéval VIIe-XIIe siècle, París: Armand Colin, 2013.
  • VEGLISON, Josefina: La poesía árabe clásica, Madrid: Hiperión, 1997.

Fonte: alandalusylahistoria.com