Dos dois lados do rio Eufrates, onde ele cruza o sul do Iraque, uma abundância de vegetação verdeja numa faixa estreita de solo fértil, florescem tamareiras e campos cheios de arroz âmbar aromático. Ao norte de Najaf, a cidade do túmulo de domo dourado de Imam Ali, está a vila de al-Kifl, no coração dos arrozais do Iraque. Os habitantes locais pronunciam al-Kifl como “a-Chefel” – o “k” vira um “ch” no dialeto árabe local. 

A cidade abriga um pequeno mercado (bazaar) de tijolos de barro e casas que se espalham pelas plantações por quilômetros e quilômetros.

Al-Kifl é uma cidade iraquiana como qualquer outra, exceto numa característica: a sinagoga que dá ao local a sua identidade. Seguindo a viela do mercado de al-Kifl e atravessando um pequeno corredor, cujos beirais são cobertos de ladrilhos turquesa, está o túmulo do Profeta bíblico Ezequiel.

Conhecido na tradição islâmica como Dhu’l-Kifl (ذُو ٱلْكِفْل‎) – de onde a cidade de al-Kifl deriva seu nome – na tradição cristã árabe e persa como “Hazaqiyal” (حزقیال ou حزقیل نبی) e em hebraico como Yechzqel (יְחֶזְקֵאל), a tumba do profeta está num antigo santuário judaico, que hoje está dentro de uma mesquita islâmica. A tumba de Ezequiel é legado de milênios de diversidade religiosa no Iraque e, por séculos, foi local de peregrinação judaica e islâmica.

A tumba de Ezequiel é um daqueles lugares raros e belos, onde o árabe e o hebraico fluem livremente um no outro, um lembrete da longa história judaica iraquiana. 

Dentro do santuário interno, há placas de madeira com inscrições de hebraico. Dizeres com a língua rodeiam toda a tumba.

O túmulo em si é coberto de inscrições caligráficas árabes, com desejos de paz sobre o Profeta. Ezequiel é mencionado nas escrituras judaicas, cristãs e islâmicas, e nos lembra das raízes abraâmicas compartilhadas pelas três religiões.

Consta que a tumba é dos anos 500, de quando os judeus viviam numa terra onde se misturavam as comunidades dos cristãos, dos zoroastras, dos maniqueus, dos mandeus e dos politeístas. Quando o Islam chegou no Iraque, a tumba de Ezequiel, tal como outras tumbas, teve muçulmanos acrescentados à variedade de visitantes.

A preservação da reverência com os locais sagrados era a norma no oriente Médio – tanto da parte dos exércitos muçulmanos quanto da parte dos habitantes locais que se converteram depois – principalmente com as tumbas das personalidades da tradição abraâmica. Este mesmo fenômeno também pode ser constatado nos locais sagrados nas imediações do Irã, como a tumba de Daniel em Shush e a tumba de Ester e de Mordecai em Hamadã.

O historiador Zvi Yhuda ressalta que o famoso viajante judeu Benjamin de Tudela visitou o local em 1170 e, naquela época, os judeus faziam a peregrinação no outono, entre Ano Novo judaico (Rosh Hashanah) e o Dia da Expiação (Yom Kippur). Não somente os judeus e os muçulmanos adoraram lado a lado por séculos nesse local; suas práticas influenciaram uma à outra. Zvi Yehuda afirma em seu livro A Nova Diáspora da Babilônia (The New Babylonian Diaspora) que a tradição judaica de visitar o santuário de Ezequiel e de se prostrar diante do túmulo surgiu depois da chegada do Islam.

Esses rituais são semelhantes às tradições xiitas (shia) de ziyara (visita) nos túmulos próximos de Imam Ali e de Imam Hussein. O túmulo de Ezequiel está na estrada principal que liga Najaf e Karbala, os locais mais sagrados do Islam shia, e também na estrada que leva os peregrinos ao Hajj em Meca. O túmulo está no centro das rotas locais de peregrinação islâmica.

Na época de 1300, no domínio dos Ilkhans Mongóis, foi construída uma mesquita em volta do túmulo, na observância de uma política de controle amplo dos santuários no território do império. Acredita-se que o antigo minarete do túmulo de Ezequiel que, hoje, pende para o lado, seja daquela era. Sua construção teve início sob o domínio do rei Oljeitu do ilkhanato, que se converteu ao Islam shia e era conhecido em persa como Muhammad Khodabandeh.

Com a construção da mesquita em torno do local, o acesso dos judeus passou a ser controlado pelas autoridades da mesquita, que coletavam pagamentos dos peregrinos. A economia de al-Kifl, que se tornara uma cidade principalmente islâmica, passou a depender diretamente da peregrinação judaica.

O túmulo de Ezequiel não é apenas um lembrete da história antiga; é um relato da diversidade religiosa que continuou existindo até por boa parte do século XX. Existiam comunidades judaicas entre os cristãos, muçulmanos, yazidis, mandeus, hindus e outros em todo o Iraque. No começo do século XX, um terço da população de Bagdá era de judeus.

Numa entrevista conosco, a historiadora Annie Greene disse que registros indicam que, no século XIX e no começo do século XX, os judeus iraquianos faziam a peregrinação – que é chamada em árabe de ziyara – anualmente ao túmulo de Ezequiel no dia de Shavuot (Sete Semanas, a Festa das Colheitas), que vem depois da Festa da Libertação (Pesach, Eid al-Fus) no final da primavera. Os peregrinos judeus vinham de Bagdá e Hilla, ambos locais com grandes comunidades judaicas.

A peregrinação à tumba de Ezequiel era a mais importante no calendário ritual dos judeus iraquianos e Greene ressalta que ela aparece com ênfase nos diários, nas autobiografias e nas memórias dos judeus, independentemente de gênero.

Depois que parte da mesquita desabou numa enchente por volta de 1700, as autoridades otomanas deram aos judeus a permissão para que fizessem a reconstrução. Yehuda diz que os líderes comunitários judaicos aproveitaram a oportunidade para transformar grande parte da mesquita de volta em sinagoga, removendo os símbolos islâmicos e construindo uma yeshiva – escola religiosa judaica.

As tribos islâmicas da cidade, enquanto isso, foram encarregadas de proteger o santuário. Com início em 1850, os judeus do Iraque começaram a construir casas e instituições religiosas para hospedar os peregrinos em al-Kifl.

O papel de al-Kifl na comunidade judaica se assemelhava ao papel das cidades sagradas próximas, Karbala e Najaf, para os muçulmanos shia, que vinham se tornando centros da vida religiosa comunitária que se avivavam durante a temporada de peregrinação, com a chegada dos peregrinos de toda a região.

Greene diz que o aumento das reivindicações dos judeus pelos santuários na metade do século XIX, como o de al-Kifl, foi resultado do empoderamento resultante das reformas jurídicas otomanas que carregavam a promessa de igualdade para os cidadãos do império, independente de religião. Dos quatro representantes iraquianos no primeiro Parlamento Otomano na década de 1880, um – Menahem Salih Efendi Daniel – era judeu. Um total de 4 ou 5 judeus eram membros do Parlamento Otomano.

Greene explicou durante a entrevista: “Havia essa noção de que se você investisse no governo, talvez ele investisse mais em você. As elites econômicas e políticas da comunidade judaica assumiram o investimento.” O crescimento gradativo do poder das comunidades judaicas locais continuou em passo estável à medida em que o Iraque obteve a independência no começo do século XX.

Tudo isso mudou com o surgimento do estado de Israel. Já no começo do século XX, grupos sionistas passaram a obter terrenos do Mandato Britânico da Palestina com o objetivo de criar um estado judaico. À medida em que ficou claro que esse estado judaico não teria abertura para as comunidades árabes nativas, os palestinos locais constantemente se revoltavam. As atrocidades britânicas e os contra-ataques sionistas contra os palestinos despertaram indignação por todo o mundo árabe, levando a revoltas dirigidas contra comunidades judaicas locais, que não eram relacionadas com os acontecimentos da Palestina.

A Inglaterra tomou o controle, como colonizadora, sobre o Iraque após a queda do Império Otomano. Por isso, as revoltas contra o problema da Palestina muitas vezes também assumiam um tom antibritânico. Por exemplo, quando o caos se instaurou depois que um general apoiador da Alemanha assumiu o poder num golpe em 1941, os revoltados em Bagdá tinham como alvo tanto os judeus iraquianos quanto os cidadãos britânicos, saqueando o bairro judeu num acontecimento chamado de “Farhud” que deixou dezenas de pessoas mortas. Os desordeiros também atacaram as lojas dos indianos locais, que eram cidadãos britânicos.

As coisas se estabilizaram nos dias e anos que se seguiram e o governo do Iraque foi, aos poucos, obtendo a independência da administração colonial britânica. Em 1948, quando as milícias sionistas executaram o Nakba – o exílio forçado de 750.000 palestinos da terra natal deles, que resultou na morte de milhares de pessoas – o governo iraquiano passou a tomar medidas de represália contra os judeus locais, usando a existência de uma minoria que havia se unido ao movimento sionista como desculpa para punir toda a comunidade. Na verdade, foi o comunismo que atraiu o apoio da maioria dos intelectuais judeus iraquianos e também dos intelectuais shia.

Neste ambiente de medo e perseguição, dezenas de milhares de judeus iraquianos partiram para Israel. Alguns milhares ficaram no Iraque, mas a perseguição contínua no decorrer dos anos seguintes determinou o fim da comunidade judaica. A última vez que o túmulo de Ezequiel recebeu multidões de visitantes judeus foi em 1950.

Após o êxodo judaico, guardiães muçulmanos assumiram o local. Embora os peregrinos muçulmanos tenham continuado com as visitas, o término da peregrinação judaica trouxe a decadência da economia local.

No começo da década de 2010, uma companhia iraniana foi incumbida com a restauração da mesquita.

De início, alguns temiam que a restauração comprometeria a história judaica presente no local mas, no fim, foi feito um acordo: o pátio externo seria restaurado como mesquita – pois era usado assim – enquanto o santuário interno, sob a jurisdição das autoridades da herança iraquiana, ficaria com os escritos em hebraico, como ficou por décadas depois da partida dos judeus. A empresa iraniana parece ter feito restaurações nos ladrilhos e em outras características estéticas dentro do santuário, mas apenas isso.

Discussões sobre o presente e o futuro do túmulo demonstram as complexidades da preservação histórica de locais que são sagrados para múltiplas comunidades. A preservação traz a necessidade de equilibrar o respeito por aqueles que antes cuidavam do local com os interesses da comunidade que os usa ativamente na atualidade.

Com a restauração de al-Kifl, no entanto, a restauração da “mesquita” do túmulo contou com a remoção ou acobertamento de certas características e inscrições judaicas, o que resultou num ambiente mais enfaticamente islâmico. A intenção era fazer com que o local servisse aos muçulmanos que adoram nele, ao mesmo tempo em que fossem preservadas as características históricas judaicas dentro do santuário.

Os túmulos são “edificações vivas”, diz a historiadora da arte Stephanie Mulder em seu livro, e eles atraem o apoio de líderes e de estados que buscam expressar “desde a mais elevada piedade até o lado mais baixo da política.”

Da mesma maneira que ocorreu na metade do século XIX, quando os líderes judaicos iraquianos se aliaram com o sultão otomano para converter a mesquita de al-Kifl num centro religioso judaico, hoje, a sinagoga vem se assemelhando cada vez mais a um santuário imamzadeh (o nome dado aos santuários de túmulos dos descendentes de imams shia) islâmico shia.

Recentemente, o Iraque vem se tornando um centro internacional de peregrinação shia. As cidades próximas de Karbala e Najaf hospedam 25 milhões de peregrinos durante a observância religiosa do Arbaīn. Nos rituais associados ao Arbaīn, os peregrinos viajam a pé na estrada que liga Karbala e Najaf, passando por al-Kifl.

Alguns dos peregrinos visitam o túmulo de Ezequiel, o que, aos poucos, vem transformando o local num ponto de peregrinação islâmica mundial. Enquanto a quantidade crescente de peregrinos revitaliza a economia local, a história judaica do túmulo vai sendo menos mencionada. Os guias de viagem salientam o passado islâmico do local.

Mas as inscrições hebraicas do santuário interno contam uma história diferente, um lembrete dos séculos de presença judaica e da vida diária compartilhada entre os vizinhos judeus e muçulmanos em todo o Iraque.

Hoje, os judeus iraquianos já se foram há muito tempo, mas o coração do santuário permanece intocado, sob a proteção dos guardiães muçulmanos – até o dia que seus devotos anteriores possam retornar.

Que comemoremos o próximo Shavuot em al-Kifl, inshallah.

Fonte: https://ajammc.com/2019/03/03/ezekiels-tomb-jewish-iraq-muslim