Quando se fala de Al-Andaluz, a imagem mais comumente evocada no estereótipo popular imagina 800 anos recheados de opressão e sangue, num cenário onde a população local perdeu sua antiga soberania para permanecer pelos próximos séculos sendo governada pela mão de ferro de uma minoria étnica alienígena, que controlava e desfrutava dos melhores setores sociais enquanto relegava os nativos e não-muçulmanos à margem da sociedade. A imagem típica do “sultão” de Al-Andaluz, pensam eles, seria um indivíduo de pele morena, nariz grande, olhos e barba negros como sua própria alma: um verdadeiro arquétipo do invasor muçulmano.

A imagem de um indivíduo alto, de cabelos ruivos, pele pálida e olhos azuis claros como o céu da tarde se assemelha mais ao que se esperaria de um highlander escocês do que ao tipo de indivíduo que se consideraria como um “mouro”. Porém, essa é justamente a descrição dada por testemunhas oculares sobre a aparência de Abdul Rahman III, o oitavo emir de Córdoba e um dos mais bem sucedidos príncipes da Dinastia Omíada na Península Ibérica. Para explicar como um membro da mesma tribo do Profeta Muhammad adquiriu fenótipos de um hiperbóreo, é necessário voltar a muito tempo atrás, aos tempos do século oitavo, poucas décadas antes do desenvolvimento do Império de Carlos Magno e da Era Viking.

Os Omíadas, originalmente uma família árabe de Meca que teve convivência direta com o próprio Profeta, ascenderam ao poder absoluto do Império Islâmico durante a Primeira Guerra Civil Islâmica (Fitna), que ocorreu entre 656 e 661. Destacando-se por um governo geralmente secular e pela continuidade das campanhas de expansão territorial que tornaram o Califado tão rico e influente no mundo asiático, o império forjado pelos omíadas se estendia da Lusitânia até a Índia Ocidental, da Cordilheira Pirinéus, que separa a Espanha da França, até o deserto do Saara, que separa a África Branca da África Negra.

A existência de um império islâmico tão gigantesco e multicultural naturalmente suscitava toda uma sorte própria de problemas de governo, agravados pelo crescimento do ressentimento de elites islâmicas da Mesopotâmia quanto ao favoritismo do Califado aos árabes, que desfrutavam de mais privilégios políticos em cargos de poder que indivíduos de outras etnias, mesmo islâmicos. É claro que isso não significa, de forma alguma, que não-árabes estavam vetados de cargos públicos, pois temos ampla evidência do contrário. Basta mencionar o exemplo de São João Damasceno, um dos santos mais importantes do Catolicismo Romano e da Ortodoxia Oriental, considerado por muitos como o último Pai da Igreja; São Damasceno, que originalmente atendia pelo nome de João Mansur, pertencia à uma influente família síria cristã de Damasco; os Mansur teriam uma importância fundamental na submissão da cidade de Damasco ao Califado Rashidun (antecessor dos Omíadas), exercendo cargos importantíssimos de poder em um regime nepotista cristão positivado pelos muçulmanos por séculos; São João, assim como seu pai, foi um importante funcionário público na corte califal em Damasco, tendo abandonado o ofício público décadas antes do golpe promovido pelo clã dos Abássidas, uma família persa islamizada, na capital.

A Revolução Abássida foi cruel, mas não teve exatamente em uma eficiência digna de revoluções soviéticas: Abdul Rahman I, o único sobrevivente do Massacre de Damasco em 750, refugiou-se na única possessão do Califado onde estaria seguro dos seus algozes: a Europa. Assim, declarando o emirado de Córdoba como um Estado independente, Abdul Rahman I estabeleceu a exótica experiência de um Estado europeu, islâmico e árabe, com governantes que retiravam ascendência da próprio tribo do Profeta, os coraixitas.

O que geralmente se considera como Emirado de Córdoba consiste na junção de territórios controlados por muçulmanos na Península Ibérica, as ilhas baleares e pequenas faixas de território no Magrebe (parte ocidental do Norte da África). Apesar disso, o Emirado de Córdoba – posteriormente elevado a Califado – estava longe de ser uma união coesa, com a autoridade dos omíadas em Cordoba sendo, em alguns casos, considerada – especialmente nos feudos fronteiriços com os reinos cristãos do norte – puramente nominal.

Naturalmente, estes reinos cristãos ao norte tinham relações ambíguas com o Estado Islâmico ao sul, variando entre hostilidade, alianças e submissão. Neste último caso, esses reinos de fronteira seriam Estados Tributários, fornecendo algum tipo de tributo em troca de sua independência. Nesta época, o pequeno Reino de Pamplona, antecessor do igualmente pequeno Reino de Navarra, era somente um dos vários reinos controlados por cristãos ao norte, fazendo fronteira com o próprio Emirado.

Talvez os Omíadas tenham aprendido algo com os erros cometidos em Damasco, ou talvez o que se procedeu seja puramente um acontecimento espontâneo e inintencional na própria dinâmica heterogênea de Al-Andaluz. Conforme o passar das gerações, distinções entre árabes, ibéricos e berberes dissolvia-se por força da miscigenação. A antiga elite estrangeira se mesclou de tal maneira com as populações nativas que o senso de identidade era, em fins práticos, puramente honorário. De fato, o Emirado de Córdoba deixou de ser um Estado Árabe ou Berbere para se tornar um Estado tipicamente hispânico. E embora os próprios emires – mais tarde califas – fizessem questão de sua estimada genealogia omíada, seu sangue de fato era mais ibérico do que árabe. Na verdade, a própria população islâmica de Al-Andaluz, nesta altura, já era ela mesma ibérica, não estrangeira.

Isto geralmente pode ser difícil de abstrair pelo fato dos próprios conversos adotarem nomes árabes, tornando essa identificação algo praticamente impossível sem um estudo orientado. À título de exemplo, os Banu Qusi, que poderiam facilmente passar desapercebidos como uma dinastia de origem árabe ou africana, traça sua origem do próprio Conde Cássio, um nobre de etnia visigótica ou hispano-romana que governava sobre regiões que hoje correspondem à Saragoça Aragonesa e ao país basco (‘’Qasi’’ sendo uma arabização de “Cássio’’); isto é, os Banu Qasi sequer eram exatamente ibéricos em etnia, mas descendentes de povos estrangeiros que há muito tempo governaram sobre os nativos da Espanha.

Ao invés de indivíduos morenos, nossos muçulmanos andalusos (frequentemente vistos como invasores) eram homens brancos, de barbas e cabelo ruivos e loiros, olhos azuis e esverdeados, distinguíveis de portugueses e castelhanos tão somente pelas suas roupas. É neste tipo de cenário que a genealogia dos soberanos de Córdoba se mistura e se confunde com a do povo basco.

 

O país basco, antes de se organizar no reino de Navarra, foi – como dito anteriormente – organizado no chamado reino de Pamplona. Como uma entidade fronteiriça ao Emirado, os bascos tinham toda sorte de interação com aquele potentado muçulmano extremamente poderoso.

Convém lembrar, por exemplo, que em 796 a população islâmica de Toledo, já etnicamente nativa, agitou-se em um vigor contra estrangeiros e expulsou seu governante, Bahlul ibn Marzuk, aos pontapés. Uma análise mal feita poderia levar a crer que estamos falando aqui de um senhor de guerra berbere ou algo do tipo, mas não é o caso: ibn Marzuk era basco. O conceito de estrangeiro dentro do Emirado, curiosamente, também se aplicava a povos da própria península ibérica, mas que não eram aparentados com o tipo de povo que vivia dentro das províncias do emirado. A revolta de Toledo foi sufocada por Amrus ibn Yusuf, um mullawad (de onde se origina a palavra mulato) de Saragonça. Mestiço de origens visigóticas e berberes, nascido em Huesca, Amrus conseguiu restabelecer a ordem simplesmente por apelar ao senso de irmandade étnica dos nativos, conforme conta a lenda:

“Amrus chegou em Toledo em 787. Lá, ele reuniu os notáveis da cidade, informando que ele, um companheiro nativo, desprezava o amir tanto quanto eles. Assim, ele ganhou a confiança deles” (CATLOS, 2018).

A relação entre bascos e andalusos, por outro lado, é complexa demais para encaixar em generalizações típicas. A invasão carolíngia à Espanha demonstra bem esse tipo de situação:

“As percepções do Islã mantidas pelos europeus fora da Espanha foram moldadas por poemas de cavalaria medievais como A Canção de Rolando. [...] Mas a canção só foi lançada três séculos depois, quando o movimento da Cruzada se solidificou e os cavaleiros francos buscavam fortuna lutando contra os muçulmanos na Espanha. Na verdade, Carlos Magno ainda não era imperador em 778, e seus esforços militares se concentravam nos saxões pagãos do nordeste e nos lombardos cristãos da Itália. [...] Ele [Carlos Magno] veio porque os governadores de Barcelona (Barshaluna) e Zaragoza – orgulhosos árabes que não tinham intenção de se submeter a um príncipe omíada refugiado – enviaram emissários à sua corte, no extremo norte da fronteira saxônica, para apoiar uma rebelião contra Abderramão I: era melhor ser leal a um rei franco distante do que ser forçado a servir um príncipe muçulmano próximo de suas terras, pensavam eles. Seu plano se encaixava bem com a agenda de Carlos Magno, que era proteger sua fronteira sul e pacificar os sempre rebeldes gascões (bascos ou bashkunish). O centro da resistência basca era Pamplona, ​​um reduto fortemente fortificado situado nos Pirenéus ocidentais. Carlos Magno e seu exército chegaram a Saragoça, a metrópole fundada sete séculos antes pelo imperador Augusto [...] Para consternação de Carlos Magno, no entanto, o governador, Husayn ibn Yahya, recusou-se a abrir os portões; as conquistas recentes do rei francês o fizeram reconsiderar sua proposta. Tomar Zaragoza à força seria impossível, então o rei desistiu e liderou seu exército para o noroeste, em direção a Pamplona, ​​onde os habitantes da cidade se submeteram imediatamente e prestaram homenagem de boa vontade – ou assim parecia. Carlos Magno não sabia que as principais famílias de Pamplona – cristãos que haviam abandonado o domínio muçulmano meio século antes – eram parentes por gerações de casamentos mistos com os clãs muwallad vizinhos. No momento em que o orgulhoso rei partiu com confiança, tendo derrubado os portões de Pamplona em um gesto de dominação, a armadilha estava armada. O caminho de volta para a Aquitânia levaria Carlos Magno através da Passagem de Roncesvalles, onde seu exército seria forçado a se mover em um desfiladeiro dentro dos limites de uma madeira grossa. Escondidas de vista, as forças de Pamplona e seus parentes muçulmanos estavam à espreita. Depois que o grosso do exército franco passou e o trem de bagagem real na retaguarda – comandado, segundo a lenda, pelo heróico Roland – entrou na ravina, a emboscada foi deflagrada. Rochas e mísseis choveram sobre a vulnerável linha franca, cuja poderosa cavalaria estava cercada, incapaz de atacar. Os atacantes massacraram o inimigo em pânico e capturaram o tesouro e os suprimentos do rei. Embora o episódio acabasse tomando forma como uma lenda anti-muçulmana, os contemporâneos tinham certeza da identidade dos culpados. Nas palavras de Einhard, o biógrafo de Carlos Magno, foi em Roncesvalles que o futuro imperador "teve um gostinho da traição basca". (CATLOS, 2018)

Sendo então complexa a relação entre bascos e os andalusos, como exatamente se deu a mistura étnica entre ambos? A resposta, novamente, também é complexa.

Os casamentos institucionais com mulheres bascas ‘começam’ com Muhammad I. Na maioria dos dois casos, as uniões entre andaluzes e navarros foram feitas por pactos políticos, sem descartar alguns casos em que certas mulheres foram tomadas como cativas e, depois, como concubinas. A primeira dessas vasconas foi Ushar, esposa de Muhammad e mãe de Abdullah. Este emir manteve a ‘tradição’ de pele branquiça, cabelos loiros e olhos azuis.

Um dos nomes femininos mais interessantes é Onneca (ou Íñiga) Fortúnez. Ela foi capturada junto com seu pai, o herdeiro do trono navarro Fortún Garcés na cidade de Milagros, em 860, e levada como refém para Córdoba. Na capital do emirado passaram mais de 20 anos, sempre sendo tratados de acordo com a categoria que mereciam. Logo, Onneca se casou com o então príncipe Abd Allah, a quem deu duas filhas e um filho. Durante as décadas que passaram em Córdoba, ela ficou conhecida como Durr, que significa "pérola". Muhammad, o filho deles, sentiu-se igualmente atraído pelos nortistas e tomou como amante outra mulher basca, Muzna, famosa por ser a mãe do futuro califa de al Andalus, Abdul Rahman III. Quando, em virtude de vários pactos, Fortún Garcés voltou a Pamplona para reivindicar seu trono, Onneca marchou para o norte, onde se casou com Aznar Sánchez de Larraún. O resultado desse casamento foi a futura rainha Toda, de quem já falamos em outras ocasiões.

Os dois primeiros califas de al Andalus, Abdul Rahman III e Al Hakam II, eram filhos e amantes de mulheres cristãs do norte. Várias das concubinas do primeiro eram bascas, incluindo a mãe de seu sucessor, Muzna. Por sua vez, Al Hakam II, loiro arruivado, com grandes olhos negros, tinha com Subh seu futuro herdeiro, Hisham II. Subh, conhecida em fontes cristãs como "Aurora", era uma bela mulher que se tornou uma personagem muito importante na corte do Califado. Dizem que, tendo sido treinada no coração de Al Andalus, ele também podia cantar baladas ou compartilhar jurisprudência e tradições com os sábios de Córdoba. De grande inteligência, e consciente do poder cativante de seu físico, uma vez que o califa morreu, os textos dizem que ela se tornou por alguns anos a amante do novo poderoso do califado, o hajib al-Mansur (que também era casado com Urraca, filha ilegítima de Sancho II de Pamplona, com quem teve seu filho e futuro hajib Abdul Rahman ‘’Sanchuelo’’ ou ‘’Sanchinho’’, assim chamado por parecer-se muito com seu avô basco).

O que as mulheres do norte da Espanha tinham para deslumbrar os altos dignitários de Al Andalus? O fato de muitos delas terem vindo para Córdoba na infância e terem sido criados na corte nos leva a pensar que sua formação ‘intelectual’ deve ser profunda e adequada aos costumes da época. Se somarmos a isso a beleza e a ingenuidade de que nos contam as fontes, a solução é simples: as mulheres navarras e bascas eram preferidas para serem as esposas e mães dos homens mais influentes da Alta Idade Média Espanhola.“ (ARTÉNCORDOBA. Ellos las prefieren ‘rubias’. Matriomonios omeyas con vasconas) 

Ao todo, o país basco gerou 5 sultanas (que tinham o título de “umm al-walad’’ literalmente “mãe do filho’’ ou “mãe do príncipe’’) para o Emirado e o Califado de Córdoba, um dos potentados mais poderosos da Europa na Alta Idade Média.

Interessante, ainda, é notar como a cultura basca deixou suas impressões na corte andaluza, especialmente numa época em que, após séculos de dominação castelhana e aculturamento forçado, este povo sofre hoje para manter sua identidade e lastro cultural vivo:

“A ikastola [escola ou instituição de ensino basco] dentro do palácio [de Córdoba] é o pequeno embrião de um formato de cultura de identidade para perpetuar aquelas memórias separadas por uma grande distância (para os padrões daquela época) e manter aquele laço emocional como proteção contra outra cultura (obviamente superior naquela época) procurando por elementos de coesão emocional com os quais se possa neutralizar a tristeza ou a melancolia que emana dessa brusca diferença entre duas formas de compreender a natureza tão distantes e opostas; o mundo da natureza mágica dos bascos - vascones do leste da atual Guipúzcoa - e o mundo árabe, mais voltado para o hedônico e dionisíaco. O verde em oposição ao ocre, a chuva diante do sol, a contemplação do canto dos pássaros nas florestas profundas das misteriosas terras bascas em contraponto às áridas terras de Al-Andalus” (van den Brule, 2019)

Bibliografia

-BALL, Warick. Out of Arabia: Phoenicians, Arabs, and the discovery of Europe. Londres: East & West Publishing, 2009. p. 117-122.

-CATLOS, Brian A. Kingdoms of Faith: a new history of Islamic Spain. Nova Iorque: Basic Books, 2018.

-ARTÉNCORDOBA. Ellos las prefieren ‘rubias’. Matriomonios omeyas con vasconas. Disponível em: < https://www.artencordoba.com/blog/cordoba/las-prefieren-rubias-matrimonios-omeyas-vasconas/?fbclid=IwAR0EzOyVJBgkvA3n48TKAJR8Niv7SH7ZeF-8YvmdGu_xHc_uznH64onrwI8>. Acesso em 28 de março de 2021.

-VAN DEN BRULE, ÁLVARO. Las cinco mujeres vascas que fueron sultanas em Córdoba em los tempos de Abderramán. El Confidencial, 6 abril de 2019. Disponível em: < https://www.elconfidencial.com/alma-corazon-vida/2019-04-06/abderraman-iii-euskadi-vascones-navarra_1926722/?fbclid=IwAR27Hq88LYTtXGHG36OaYpSvNpH92Cf3x6R5XWWg-AYZZ6kSct44NiqLBZc>. Acesso em 27 de março de 2021.