Existem certas figuras da história que se destacam em algumas áreas, e não raramente elas possuem algum parente que também veio a atingir algum prestígio em outra seara ou ainda na mesma. No caso dos irmãos Banu Musa, todos atingiram grande renome na mesma área, com o mesmo assunto e com a mesma obra, o que mostra de certa forma a união desses irmãos, que juntos buscavam a evolução da humanidade através do conhecimento, algo sempre muito frisado pelo Alcorão e pelos hadiths do Profeta Muhammad.

Os irmãos de origem persa Abu Jafar, Muhammad ibn Musa ibn Shakir, Abu al‐Qasim, Ahmad ibn Musa ibn Shakir, Al-Ḥasan ibn Musa ibn Shakir [1], mais conhecidos como Banu Musa, receberam esse apelido devido ao seu pai, Musa ibn Shakir. O apelido significa, basicamente, “Filhos de Musa” [2]

O próprio Musa ibn Shakir foi um estudioso, mais especificamente um astrônomo em Khorasan, na Pérsia. Nessa época, Al-Mamun, futuro califa Abássida, era ainda o governante de Khorasan e também amigo de Musa, empregando o mesmo em sua corte como astrólogo e astrônomo. Quando Musa veio a falecer, seus três filhos ficaram sob o cuidado da corte de Al-Mamun, que posteriormente se tornou califa em Bagdá, e ao reconhecer as habilidades e conhecimentos dos irmãos os colocou na famosa Casa da Sabedoria.

Agora estabelecidos na Casa da Sabedoria em Bagdá, os irmãos Banu Musa teriam como seu professor Yahya ibn Abi Mansur, famoso astrônomo da época. Assim como os demais sábios da Casa da Sabedoria, os Banu Musa inicialmente ajudariam nos diversos trabalhos de tradução, principalmente do grego devido às boas relações do Califado com o Império Bizantino. Nesse processo, os irmãos acabaram aprendendo o idioma, uma vez que também precisavam viajar para o Império para adquirir as cópias gregas dos manuscritos que pretendiam traduzir para o árabe.

Ainda no que tange às traduções da Casa da Sabedoria, eles também foram os mais famosos e influentes de todos os patrocinadores abássidas desse grande movimento de tradução, pagando um bom dinheiro aos melhores tradutores de Bagdá (um salário mensal de 500 dinares) por livros em uma variedade de assuntos, desde medicina até astronomia.

Individualmente, os irmãos foram cientistas brilhantes e escreveram vários tratados sobre mecânica e geometria. É dito que o mais velho, Muhammad, foi a primeira pessoa a sugerir que os corpos celestes como a lua e os planetas estavam sujeitos às mesmas leis da física que na Terra - o que marcou uma clara ruptura com a opinião já estabelecida de sua época. Na verdade, seu livro “O Movimento dos Astros e a Força da Atração” nos dá alguns sinais de que ele tinha uma noção não muito longe da lei da gravidade de Newton, que nasceu quase mil anos depois dos irmãos Banu Musa

Mas os irmãos são provavelmente mais conhecidos por suas grandes invenções e projetos de engenharia. Todos os irmãos foram grandes gênios na matemática e escreveram diversos tratados de mecânica e geometria. Dois deles, Muhammad e Ahmed, foram encarregados de projetos de canais para fornecer água para as cidades de Bagdá e Samarra, ainda em crescimento.

A obra dos Banu Musa é de fato muito vasta. Nas áreas de matemática e mecânica, que os irmãos dominavam, vieram a discordar dos gregos no que tange à medição de áreas e circunferências. A principal diferenciação com os gregos sobre esse tema está na atribuição de valores numéricos às áreas e circunferências, algo que pode ser visto na obra Kitab Marifat Masahat Al-Ashkal (O livro de medição de figuras planas e esféricas). Muitos difamadores do legado islâmico insistem em afirmar que os muçulmanos apenas preservaram o conhecimento dos antigos, porém dentre os milhares de exemplos históricos que refutam essa afirmação se encontram os irmãos Banu Musa, que não somente valorizaram o legado de quem veio antes deles, como também não se contiveram em corrigi-los e aprimora-los conforme achavam necessários.

Outro indivíduo muito famoso e influente na história islâmica que tomou esse tipo de atitude crítica com as obras dos gigantes da antiguidade foi Al-Kindi, que por sinal se tornou rival dos irmãos Banu Musa por um período, o que para muitos foi uma motivação para a perseguição que Al-Kindi sofreu do califa Al-Mutawakkil, o mesmo califa que contrataria os Banu Musa para a construção de um canal na mais nova cidade de Al-Jafariyya.

Outra área de grande destaque dos irmãos seria a astronomia, assim como o pai deles havia se destacado. Nessa área, estimariam a duração de um ano em 365 dias e 6 horas, uma imprecisão de pouquíssimos minutos com o que sabemos hoje em pleno século XXI. Não obstante, fariam ainda várias observações aos astros, principalmente o sol e a lua, e foram encarregados de missões no deserto da Mesopotâmia pelo califa Al-Mamun para outros trabalhos de medições.

Contudo, a área em que os irmãos mais se destacaram foi no âmbito da automação, o que ilustra bem a genialidade dos três na matemática e engenharia. O livro mais famoso deles foi o seu Dispositivos Engenhosos (Kitab al-Hiyal), publicado em 850. Era uma grande obra ilustrada sobre dispositivos mecânicos que incluía autômatos, quebra-cabeças e truques de mágica, bem como os “brinquedos” que hoje temos em mesas de escritórios [3]. Muitos envolviam dispositivos complicados que usavam água, assim como válvulas e alavancas inteligentes para o seu funcionamento. Ao se valerem do movimento da água entre vários mecanismos, os irmãos criaram manivelas operadas automaticamente, um pouco semelhantes ao moderno virabrequim, um dos principais componentes do motor do carro.

Foram elencadas mais de 100 invenções nessa obra, muitas delas com o cunho de entretenimento. Porém, muito embora o objetivo delas não fosse erguer grandes arranha-céus ou a construção de uma Ferrari, mas sim para o divertimento, eles empregaram tecnologias inovadoras na engenharia, como válvulas unidirecionais e bidirecionais capazes de abrir e fechar por si próprias, assim como memórias mecânica e assim por diante, sendo a maioria desses dispositivos operados por hidráulica. Sem dúvida essa obra pavimentou o caminho para a mecânica moderna, a mesma que hoje constrói arranha-céus feito o Burj Khalifa e suspensões de um carro superesportivo multimilionário, mesmo sem esse ser o objetivo dos geniais irmãos Banu Musa.

Uma das belíssimas páginas do Kitab al-Fiyal.

Além desse Magnum opus em engenharia mecânica, outras obras do gênero ainda seriam escritas pelos irmãos, como uma obra de pneumática escrita por Ahmad ou livros envolvendo até mesmo teoria musical.

O legado dos Banu Musa sem dúvida foi aproveitado pelos medievais ocidentais, uma vez que algumas de suas obras matemáticas foram traduzidas pelo famoso Gerard de Cremona, sendo amplamente utilizadas como verdadeiros textbooks em geometria, citados inclusive por grandes nomes como Leonardo Firbonacci e o próprio Roger Bacon.

Dentre as engenhosas invenções dos irmãos, talvez a dessa figura seja a mais famosa: uma lâmpada automática.

NOTAS

[1] Cujas datas de nascimento são incertas, porém estima-se que Abu Jafar tenha nascido por volta de 803 e falecido em 873. Quanto aos outros irmãos, não há data estimada.

[2] Já Musa, por sua vez, é o equivalente árabe de Moisés.

[3] Exemplo desse tipo de dispositivo é o pêndulo de Newton, que apesar de não ter sido inventado pelos irmãos, serve para ilustrar o tipo de “brinquedo” que havia em sua obra.

BIBLIOGRAFIA

O’CONNOR, John; ROBERTSON, Edmund F. Banu Musa brothers. MacTutor History of Mathematics. 1999.

BANU MUSA BROTHERS. Muslim Heritage. [s.d.].

UMMAHSONIC. How the Banu Musa Brothers From Ninth Century Baghdad Laid the Foundations for Modern Mechanics. 2017.

AL-KHALILI, Jim. The House of Wisdom. The Penguin Press. New York: 2011.

LYONS, Jonathan. The House of Wisdom: How the Arabs Transformed Western Civilization. Bloomsbury Press. 2009.