Longe de ser inventado no Drácula de Bram Stoker, em 1897, a mitologia dos vampiros já era bem popular no Império Otomano do século XVI. As criaturas sugadoras de vida eram conhecidas nas diversas línguas do império e folclores locais como upir, obur, vrykolas, hortlak, cadı, mechey, tecz, e strigoi.

Com as mesmas características conhecidas atualmente na cultura pop: mortos vivos que se levantam de suas tumbas, possuíam a habilidade de voar, super força, odiavam a luz do dia e se alimentavam do fluido vital de suas vitimas.

No califado otomano, haviam até mesmo caçadores de vampiros, e incidentes nos quais juristas islâmicos tiveram que lidar com alegados casos de vampirismo, apresentados por aldeões assustados. Derrota-los com uma estaca, arrancar suas cabeças e queimar seus corpos também fazia parte do combate nas terras do sultão.

A origens

Não se sabe exatamente qual cultura especifica no Império teria dado gênese ao “vampiro otomano”, muito provavelmente uma mistura de todas elas, com elementos árabes, persas, gregos, turcos e eslavos, podendo ser identificados na forma como a criatura ficaria conhecida nos primeiros registros judicias do século XVI.

Entretanto, todas possuem um “denominador islâmico comum” que as unem. Sua mais provável raiz, que começaria a surgir no imaginário popular dos povos do Império sob diversos nomes, é que tenha se originado na figura dos gouls, uma categoria especifica dos jinns (gênios) mencionados no Alcorão que, por si só, possuem traços vampirescos como sugar a força vital dos humanos através de seus alimentos.

Manuscrito retratando o heroi Faramarz matando com seu arco o “Rei dos Gouls”, cena extraída do épico persa ShahNameh, século X.

De acordo com uma determinada interpretação das escrituras islâmicas, os gouls se originaram da especie marid da raça dos jinns que já tiveram acesso aos Céus, de onde espionavam os decretos divinos e retornavam à Terra para transmitir conhecimentos ocultos a feiticeiros.

Quando Jesus, também profeta no Islã, nasceu, três esferas celestiais lhes foram proibidas. Com a chegada de Muhammad, as outras também lhes eram vedadas.

Os marids então continuavam a tentar subir ao céu, mas eram queimados por cometas lançados por ordem de Allah, afim de que não pudessem mais iludir a humanidade através de transmissões corruptas do que ouviam nos céus. Se os cometas não os queimavam até a morte, eram deformados e levados à loucura, caindo nos ermos, agora sob a forma de gouls.

Os gouls passavam, então, a coabitar cemitérios, se alimentando dos mortos e vivendo de forma sombria, numa especie de vampirismo. A figura do goul passou a influenciar o imaginário cultural muçulmano, ganhando diversos desdobramentos folclóricos, agora associados não somente aos jinns, de cunho fantasmagórico-espiritual da escritura islâmica, como também a indivíduos humanos ligados ao sombrio, que vagavam por cemitérios.

Eles também aparecem em representações nas Mil e Uma Noites.

Vampiros nos Tribunais da Shariah

Além da religião islâmica e heranças culturais, algo que o Império Otomano levava para os Bálcãs recém anexados desde o século XV era seu folclore. Ali, naquele caldeirão étnico, o goul árabe, o jadi (cadi) persa e o obur turco, se misturava com mitos locais, e dava origem ao ser esquisito que chegaria a corte do grão-mufti Ebussuud Efendi (1490 – 1574) .

De acordo com relatos da época, aldeões das províncias da Rumélia (Bálcãs) e até da própria Anatólia, chegaram ao tribunal do sheykh al-Islam (mestre do Islã) Ebussuud, a autoridade religiosa islâmica máxima do Império no reinado de Sulaiman, o Magnifico, relatando algo estranho.

Os aterrorizados camponeses falavam de cadáveres que se erguiam das covas, sugavam a vida das pessoas, e quando seus túmulos eram investigados, traços vermelhos (sangue?) eram evidentes em suas faces, e se encontravam incorruptos, em posição diferente da que haviam sido enterrados.

Cético quanto a veracidade das queixas, porém querendo acalmas os ânimos do povo em pânico, Ebussuud relatou que não encontrava nas fontes sagradas da shariah islâmica algo especifico para tal criatura, então sugeriu através de uma fatwa o seguinte: se o cadáver parecesse se mover, deveria ser pregado com uma estaca no chão, se novamente voltasse a se erguer, deveria ter sua cabeça arrancada e colocada em seus pés.

Contudo, se voltasse a se levantar mais uma vez, o corpo deveria ser incinerado. Casos de vampiros continuariam a ser reportados nos autos das cortes dos muftis no Império, principalmente nas províncias Balcânicas, até o século XIX.

A lenda dos vampiros era inclusive utilizada pela propaganda estatal otomana para difamar os ainda resistentes membros do corpo dos janízaros, a elite militar tradicional do Império finalmente aniquilada em 1826, cujos membros mesmo após a morte “voltavam para assombrar o povo”, levando a destruição de muitas de suas sepulturas.

Nas viagens de Evliya Çelebi

Outra referencia a vampiros na cultura otomana aparece no livro Seyâhatnâme do famoso explorador do século XVI Evliya Çelebi ( 1611-1682). Çelebi chega a descrever não somente as criaturas que chamou de oburs (famintos), como também a seus “caçadores profissionais”, pagos para identificar túmulos suspeitos e mata-los:

Os parentes do morto deram dinheiro aos identificadores de oburs, que vão aos túmulos em busca dos falecidos que saem da cova, os identificando através do solo remexido.

Imediatamente, as pessoas enxamearam envolta deles, e cavaram o túmulo da criança faminta, e então viram que seus olhos estavam como xícaras cheias de sangue e seu rosto com sangue vermelho por beber sangue humano.

Evliya Çelebi, Seyahatname, Vol. XVII

Na região da Abecásia nas Montanhas do Cáucaso, o explorador também deu mais descrições dos oburs, dizendo que testemunhou pessoalmente a um levitar na vila de Pedsi, bem como falou sobre o método de incineração da criatura utilizado pelos aldeões para destruí-la.

A Cruzada dos Vampiros

Para além das aldeias por todo o Império, os otomanos também enfrentavam vampiros no campo de batalha. Sem sombra de dúvida a referencia histórica mais conhecida no Ocidente associada a figura do vampiro, que inclusive inspirou o personagem de Bram Stoker, é o próprio ”Conde Drácula”, ou mais especificamente Vlad III Dracul (1431-1476), o Empalador.

O voivoda da Valáquia, do século XV, entrou para a história como herói nacional da Romênia por sua luta contra os otomanos, emulando o ideal de cruzada cristã anti um invasor islâmico, no imaginário popular da região.

De cima para baixo os retratos de: Vlad o Empalador, Elizabeth Báthory e seu marido Ferenc Nádasdy.

Contudo, a parte bem mais extensa e menos gloriosa da vida do conde da Transilvânia era que ele mesmo havia chegado ao poder com apoio otomano, sido criado na corte do sultão Murad II, traído seus aliados por interesses próprios, e instaurado um regime sádico em seu país que fazia jus a sua fama póstuma de vampiro.

Vald costumava usar como método de punição para seus inimigos capturados a empalação, ou seja, atravessar pessoas vivas com estacas, as deixando morrer de modo agonizante e extremamente doloroso. Na vida do conde, relatos de canibalismo, torturas e crueldade até mesmo contra seus próprios súditos cristãos abundam.

Seu método de guerra contra os turcos era traiçoeiro, se disfarçando como um igual e ganhando a confiança do inimigo, promovia ataques a partir de dentro, rendendo guarnições apenas por se passar por oficial otomano.

Os anos de terror de Vlad tiveram fim em 1476, quando emboscado pelas forças de seu amigo de infância, o sultão Mehmet II, o Empalador foi decapitado e teve sua cabeça enviada para Istambul. Todavia Vlad não seria o último ”cruzado vampiro” inimigo dos sultões.

Décadas mais tarde, o conde húngaro Ferenc Nádasdy (1555 – 1604) ergueu a bandeira da cruzada e entrou para a história por suas sucessivas vitórias contra a expansão turca no Reino da Hungria.

Porém, assim como seu correligionário anterior, ele era conhecido por também gostar de matar pessoas empaladas como método de execução e espetáculo macabro que alimentava seu sadismo.

Mas com toda certeza, Ferenc não era ninguém quando comparado a sua esposa, a famosa condessa Elizabeth Báthory (1560 – 1614). Nobre, refinada, intelectual e rica, Elizabeth era com toda certeza uma das personagens mais fascinantes de seu tempo, tomando parte inclusive na administração dos domínios de seu marido durante as guerras contra os muçulmanos (1593–1606).

Porém, a fama cavalheiresca da “piedosa nobre cruzada anti-islâmica” cairia por terra, após sucessivas denuncias de seus servos, 300 testemunhas mais especificamente. De acordo com os relatos, a condessa torturou e matou por volta de 600 garotas, com métodos tão horripilantes quanto os de seu marido e com objetivos que a fazem ainda mais “vampira”.

Mordidas, mutilações, cauterizações, e diversas outras formas macabras de infligir dor eram aplicadas por Elizabeth em suas vitimas antes da morte, que então eram drenadas para seus banhos de sangue, que a “rejuvenesceriam”.

Após as denuncias serem averiguadas, a sádica condessa foi condenada pelo rei Matias II da Áustria ao carcere perpetuo em seu castelo, vindo a morrer em 1614.

Conclusão

Do vilarejo ao campo de batalha, a cultura otomana está cheia de vampiros, caçadores de mortos-vivos e “imãs van-helsing”, entretanto o legado desta parte “islâmica” da lenda é esquecido, submerso pelo simbolismo cristão europeu gótico de crucifixos e água-benta.

Em sua pesquisa para criação do “Drácula” e universo dos vampiros em geral, Bran se baseou no trabalho de Emily Gerard, que havia publicado um artigo sobre “lendas transilvanianas” em 1885, Transilvânia esta que havia ganhado independência do Império Otomano poucas décadas antes, mas ainda estava carregada de sua cultura.

Mais recentemente, o professor Dr. Salim Fikret Kırgı coletou todas as referencias históricas otomanas para criação da lenda do vampiro no livro Osmanli Vampirleri – Söylenceler, Etkiler, Tepkiler (Vampiros Otomanos – Boatos, Interações, Reações), ainda sem tradução, mas que abre uma porta para o estudo acadêmico do tema.