De um guerreiro bárbaro à fundador de um Império, a figura de Yusuf ibn Tashfin é envolta em uma aura que nunca cessa em fascinar historiadores e entusiastas. Em certos aspectos, talvez se possa dizer que ele foi uma versão africana de conquistadores nômades como o próprio Átila ou mesmo Genghis Khan; é claro, ignorando o comportamento fraticida, orgiástico, beberrão e sádico desses conquistadores asiáticos, onde Yusuf se mostra uma verdadeira antítese. Essa analogia parecia verdadeira para muitos observadores medievais, dentre os quais inclui-se o próprio Ibn Khauldun (1332-1406):

“Em seu famoso Prolegomenon (Muqaddima), ele [ibn Khaldun] argumenta que uma civilização sedentária irá inevitavelmente perder seu dinamismo, tornando-se decadente e sendo substituída por uma nova e dinâmica força ascendente, frequentemente inspirada pela fé. E assim o ciclo continuaria. Suas teorias eram formadas a partir de observações sobre a queda de dinastia muçulmanas e da ascensão de rivais mais vigorosos e motivados. Ibn Khaldun, que serviu como emissário em Castela e, depois, para Timur, estava especialmente atento de que importantes tempos de turbulência anunciavam uma nova ordem mundial. Este “novo mundo” estava nascendo em outras terras (ele não diz onde), mas ele estava dolorosamente ciente de que sua própria civilização de Al-Andalus estava próxima de seu fim.”. (HARRIS, 2002, p. 187)

Como, então, se desenvolve a história de Yusuf? E como ela se assemelha – e se distingue – de outros conquistadores barbáricos? Para responder esses questionamentos, precisamos voltar a atenção para o Marrocos Medieval; mas não o Marrocos urbano, dos grandes centros culturais, do comércio e das riquezas que tipicamente se pensa ao falar dessa região. Yusuf vem de uma região apartada dos privilégios urbanísticos de metrópoles como Ceuta ou Fez, em ermos em que mesmo outros berberes de ajuntamento tribal considerariam hostis: os terrenos mais acidentados da África Ocidental e o próprio Saara, eram nestes locais inóspitos e ásperos que Yusuf tornou-se um homem e um guerreiro.

Pouco se sabe sobre seus dias mais primevos, o que de certa forma é consistente com o tipo de lugar e contexto de onde veio. O local onde Yusuf vivia era habitado por tribos guerreiras dos mais variados tipos, tendo em comum as condições austeras de vida e o ofício marcial como uma realidade cotidiana. Dois fatores foram significativos para a criação do Império Almorávida de Yusuf: seu brilhantismo militar e a doutrina religiosa ao qual abraçou com tanta devoção.

O termo Almorávida é uma ocidentalização do árabe Al-Murābiṭūn, ou ‘’os marabutos’’, remetendo a ideia de indivíduos ascéticos que viviam nos ribats, uma espécie de forte-mosteiro onde se praticava cavalaria sagrada islâmica. Os Almorávidas têm origem numa escola de Lei Malikita do Islã sunita conhecida como ‘Dar al-Murabitin’. A doutrina malikita especifica dos Almorávidas, ao passo que foi desprezada pela população das cidades, encontrou grande popularidade entre as tribos guerreiras dos ermos, tornando-se essencialmente na sua identidade. Ela era conhecida pela sua austeridade e pelo seu caráter devocional, fervoroso e militante, com interpretações rígidas e literais dos escritos sagrados muçulmanos. Por conta desses traços, observadores ocidentais concluíram que o movimento almorávida era essencialmente um puritanismo islâmico. E em certo sentido a alcunha pode possuir suas semelhanças, especialmente conforme os eventos aqui serão narrados. A maioria dos aderentes do movimento vinha das massas africanas que estavam se islamizando em massa nos anos 1040, tal qual ocorria no Oriente islâmico com a adição dos turcos ás fileiras do Islã.

A partir de sua gênese, o movimento almorávida vai começar a ganhar espaço entre as tribos guerreiras do Magrebe, unificando os diversos clãs e etnias tribais em torno de uma causa e liderança comum até levar esse projeto expansionista para as zonas rurais mais prósperas daquela região. Em algumas décadas, o movimento almorávida iria se lançar sobre os grandes centros urbanos da África Bérbere e anexar diversos povos e reinos negros da África Subsaariana. Nesse estágio, os Almorávida já tinham se tornado claramente um Império Islâmico.

Yusuf ascendeu ao poder na ocasião da morte de Abu Bakr ibn Umar, seu primo e antecessor, com o qual ajudou a fundar a cidade marroquina de Marraquexe, em 1062, a qual seria a nova capital do Império Almorávida, que compreendia Marrocos, Mauritânia, Saara Ocidental, Argélia, Sudão e Gana. Sob um heterogêneo exército de negros, berberes e um punhado de mercenários europeus, o Império Almorávida receberia um convite que seria decisivo na história da Península Ibérica, determinando todo um novo arranjo geopolítico e temporal na história da Reconquista.

Décadas após a fragmentação do Califado de Córdoba, o balanço de poder na península ibérica havia mudado definitivamente para os reinos cristãos do Norte. Mesmo Taifas extremamente afastadas, como a Granada, eram vassalas tributárias de reinos cristãos. A importante Conquista de Toledo (1082) por Afonso VI de Leão e Castela havia escancarado algo óbvio: as taifas não tinham condições de se opor ao avanço dos reis do norte. A “Reconquista”, se assim pudemos chamar, parecia indicar sua conclusão ainda no século XI.

Foi neste momento de impotência que o emir al-Mutamid, da Taifa de Sevilha, fez uma tomada de decisão que mudaria para sempre o destino da Espanha Islâmica: ele parou de pagar as parias de Afonso VI e apelou para Yusuf, na África, contra o poderoso rei de Leão e Castela. Condenada por seu filho Rashid, a decisão compreensivelmente era bastante arriscada: para se proteger de Afonso e ter condições de manter e expandir sua soberania, al-Mu’tamid convidou para o seu quintal nada menos do que um Império expansionista e que, apesar de compartilharem a mesma religião, tinham entendimentos bem distintos – e até opostos – dela. Um novo mundo islâmico estava invadindo a península, completamente diferente daquilo que se desenvolveu como islamismo andaluz. Mas, como se defendeu o emir de Sevilha:

“Não tenho qualquer desejo de ser eternizado pelos meus descendentes como o homem que entregou al-Andaluz como prêmio aos infiéis. Eu preferiria ter meu nome amaldiçoado em todos os púlpitos muçulmanos. E, da minha parte, eu prefiro ser um motorista de camelo na África do que um criador de porcos em Castela.” (SMITH, 2018)

Após os apelos de três taifas andalusas, Yusuf cruzou o Mediterrâneo com um formidável exército. Afonso, que cercava Saragoça – capital da taifa de mesmo nome – levantou o cerco ao ser informado da chegada e avanço de Yusuf. Unindo suas tropas com aquelas recolhidas em Valencia, o poderoso rei de Leão e Castela percebeu que mesmo ele precisaria apelar por ajuda, entrando em contato com Sancho I de Aragão. Conforme o novo exército cristão marchava em encontro à Yusuf, os reis das taifas de Sevilha, Granada e Málaga foram, um a um, unindo-se ao exército dos Almorávidas. Ambos os exércitos se encontraram no norte de Badajoz em 23 de outubro de 1086.

O exército de Afonso VI era notoriamente menor que o de Yusuf, embora as fontes de ambos os lados exagerem o tamanho real dos seus respectivos inimigos. Entre a troca de correspondências, consagrou-se na história a célebre demanda de Yusuf aos reis cristãos:

“Fiel aos preceitos estabelecidos pelo profeta Maomé, Yusuf enviou um mensageiro para oferecer a Afonso três alternativas: converter-se ao Islã; submeter-se à proteção do Islã; decidir as diferenças no campo de batalha” (LEWIS, 2008, p. 364)

Isso, é claro, pode facilmente ser tomado como uma postura fanática para observadores modernos de uma sociedade secularizada como a nossa; e sem dúvidas, Yusuf estava bem distante de um liberal ou mesmo de um muçulmano mais ecumênico, como os de Al Andaluz; mas aqui é importante atentar-se ao contexto: eles já estavam em guerra, às vésperas de uma batalha. Independente do juízo de valor que um observador moderno queira tomar sobre essas demandas, elas estavam perfeitamente dentro do padrão de mentalidade que os próprios cristãos ibéricos exerceram sobre os muçulmanos, e até sobre os judeus; o regime das parias é uma aplicação prática de um análogo cristão da segunda demanda de Yusuf (jizya de um Estado tributário).

A Batalha de Sagraças (1086) iniciou-se na alvorada e findou ao cair da tarde. Os muçulmanos, com um número maior de reservas que os cristãos, foi capaz de massacrar as tropas cristãs, já exaustas, com soldados frescos, causando a destruição de praticamente todo o exército cristão; de acordo com as crônicas, apenas 500 cavaleiros foram capazes de fugir, e isto por causa de suas montarias. Afonso VI, embora tenha conseguido fugir do campo, foi ferido numa perna por um soldado negro subsaariano, sendo dito que o mesmo passou o resto da vida tendo que mancar, pela gravidade da cicatriz.

Embora a batalha tenha sido uma vitória decisiva para os muçulmanos, Yusuf não fez uso dela para reverter os ganhos cristãos sobre taifas muçulmanas. Muitos descartam que as baixas tenham qualquer efeito nisso, e mesmo hoje existe discordância sobre a proporção de mortos do lado muçulmano, mas o fator mais definitivo para Yusuf não marchar ao norte, rumo aos domínios cristãos, foi a morte de seu herdeiro, no Marrocos, forçando-o à retornar ao continente africano. Em síntese, por várias décadas ambos os lados se reagruparam, sem combates decisivos ou mudanças significativas de território nesse período.

Por um lado, Sagraças significou que a Reconquista foi finalmente freada, ao passo que os Almorávidas se ocupariam em outras atividades: uma vez mantendo um pé na península, Yusuf retornaria, apenas para estender seu cetro de ferro sobre as taifas ibéricas.

Para o fervoroso chefe tribal marroquino, os andalusos eram decadentes moralmente, militarmente e religiosamente. Para a rígida mentalidade almorávida, o consumo de álcool, a ostentação, as festas e os prazeres dionisíacos eram todas evidências escancaradas dessa apostasia. Os muçulmanos de Al-Andaluz haviam adotado costumes civis e práticas religiosas cristãs, e em alguns casos pré-cristãos, como a conduta pagã hispano-romana que ainda persistia naquelas terras.

Seu retorno para a Europa foi anunciado nas correspondências trocadas com o Califado Abássida – que pelo menos teoricamente ainda representava o poder temporal máximo entre a comunidade muçulmana sunita –, onde Yusuf se colocou como agente do Califado para restauro “da moral e dos bons costumes” dos quais Al-Andaluz havia se apartado; e que era dever dele resgatar. Seu lema de invasão foi: “a propagação da retidão, a correção da injustiça e a abolição de impostos injustos”.

Diante de um formidável e numeroso exército, Yusuf subjugou as taifas muçulmanas uma após a outra com relativa facilidade. Com exceção da Taifa Saragoça, que buscou auxílio com o Reino de Aragão, todas as taifas se encontraram agora sob domínio do Império Almorávida, cuja capital permaneceu no Marrocos.

O próprio al-Mutamid haveria de se arrepender da intervenção que buscou, quando os zelotes almorávidas levantaram cerco sobre sua capital, mataram seu herdeiro e o encarceraram mesmo após ele se render aos conquistadores. Exilado pelos almorávidas para o Aghmat, no Marrocos, al Mutamid passaria seus últimos dias até morrer, em 1091. Sua nora, Zaida, se refugiaria na corte de Afonso VI, pedindo ajuda castelhana contra a ameaça Almorávida (tornando-se também sua rainha). Um poema escrito por al-Mutamid reflete sua insatisfação com o tratamento dos almorávidas:

“Eu disse para minhas correntes: vocês não entendem? Eu me rendi a vocês? Porque, então, vocês não demonstram qualquer misericórdia, ou compaixão?” (CATLOS, 2018, p. 106)

Yusuf combateu cristãos apenas de forma mais indireta, geralmente por conta do auxílio de El Cid às taifas que recorreram aos cristãos para se livrar da conquista almorávida. Apesar das conquistas e de todas as riquezas obtidas, Yusuf permaneceu um home austero, como nos seus tempos com as tribos das terras acidentadas, desprezando o luxo e o conforto das cortes andalusas; algo que seus sucessores, porém, foram menos bem sucedidos em resistir. A Espanha Muçulmana não foi anexada de forma voluntária, e seria uma súdita contrariada por conta das pautas morais e religiosas dos almorávidas. Yusuf morre em 1106. Em 1116, Córdoba é a primeira cidade à se rebelar do jugo puritano dos almorávidas. Os cristãos ao norte revigoram seu ímpeto militar e, na África, surge outro movimento zelote a anexar terras do Império Almorávida: os Almoádas.

Aqui ainda cabem alguns adendos sobre os Almorávidas. A primeira delas é que, apesar das guerras, eles não causaram grandes prejuízos à economia andaluza:

“Apesar das agitações do período, a vida urbana e comercial continuou a prosperar, graças à enorme produção agrícola de al-Andalus e sua grande base populacional, que criou um robusto mercado doméstico de artesanato e produção industrial. O Império Almorávida estendia-se profundamente na África Central, e o fluxo de ouro do delta do Níger, que impulsionara a economia omíada, aumentou sob seu governo. Os dinares de ouro fino que eles cunharam tornaram-se os novos “dólares” do Mediterrâneo Ocidental, aceitos e reconhecidos em todos os lugares. Os governantes cristãos produziriam rapidamente suas próprias imitações - chamadas de “Morabetís” ou “Maravedís” - completas com inscrições árabe-islâmicas genuínas ou substitutas. Sob os almorávidas, o tributo aos reis cristãos diminuiu, o comércio com o norte diminuiu e a economia foi redirecionada para o Magrebe, que era o verdadeiro centro do império. De fato, depois de 1100, dinheiro de al-Andalus estava sendo desviado para apoiar as lutas dos almorávidas contra os insurgentes do norte da África que começaram a se levantar contra eles – uma dinâmica que complicaria ainda mais a colaboração entre os nativos e seus novos governantes e desnudaria a dinâmica colonial que sustentava sua relação.” (CATLOS, ibid, p. 129)

Um segundo adendo é de que o chamado fanatismo dos almorávidas, em muitos aspectos, era exagerado pela pena dos próprios andalusos:

“... o Rei Aragonês, como demonstração de força e para barrar as pretensões leonesas, liderou uma incursão profunda em território muçulmano no Sul, em 1125 [...]. Enquanto as campanhas de Afonso I em 1125 não anexaram território, elas expuseram as vulnerabilidades almorávidas. Isto ajudou a fomentar tensões entre muçulmanos andalusos e cristãos. Os últimos parecem ter se aliado com Afonso, muitos deles seguindo as hostes de volta para Aragão, onde eles se assentaram no território do antigo reino de Saragoça. Foi este ato de traição que nulificou o status dos cristãos como dhimmis aos olhos dos Almorávidas, levando ao transporte forçado dos moçárabes restantes ao sul do Marrocos no ano seguinte. Embora o dito tenha vindo de um Ali ibn Yusuf enfurecido, a fatwa que foi usada como base para esta política havia sido promulgada por Muhammad ibn Rushd, um jurista de Córdoba que estimulou Ali a aplicá-la. Em outras palavras, a expulsão é evidência de uma “intolerância” andaluza, não almorávida. Ironicamente, esses moçárabes exilados se tornaram parte integrante do regime, servindo como soldados na luta dos almorávidas contra as tribos locais que se rebelaram contra eles. Seu papel era tão importante que seu líder, um nobre catalão conhecido como Reverter, que havia sido capturado em uma campanha separada na década de 1130, foi nomeado comandante das forças militares de 'Ali no Magreb. Foi em grande parte graças aos seus regimentos de cativos e mercenários cristãos que os almorávidas duraram tanto tempo. Mas não demorou muito. Já em 1149, o emirado fundado por Yusuf ibn Tashufin não existia mais.” (Ibid, p. 130)

Em síntese: “Os almorávidas muito raramente se engajaram naquilo que pode ser descrito como perseguição ativa. E quando eles fizeram – como no transporte massivo da população moçárabe do Guadalquivir ao Norte da África em 1126 – eles foram cuidadosos em justificar essas medidas na lei islâmica. Por outro lado, quando as comunidades cristãs eram abusadas contrariamente à lei islâmica, tanto os almorávidas quanto os juristas andalusos intervinham para protege-los: o emir Ali ibn Yusuf uma vez depôs e prendeu um governador almorávida de Granada após cristãos locais relatarem seus abusos. “ (ibid, p. 129)

Bibliografia:

HARRIS, Jonathan. Crusades: the Ilustrated History, ed. MADDEN, Thomas

The Poems of Mu’tamid, King of Seville, ed. SMITH, Dulcie L. Disponível em: < https://web.archive.org/web/20111001223639/http://ebooks.ebookmall.com/ebook/225154-ebook.htm>. Acesso em 29 de abril de 2020.

CATLOS, Brian A. Kingdoms of Faith: a New History of Islamic Spain. Nova York: Hachette Book Group, 2018.

LEWIS, David L. God’s Crucible. Nova York: 2018.