Quando se fala em Islã na China, duas reações podem ser comuns entre as pessoas leigas: a primeira é o desconhecimento de comunidades expressivas no país asiático, e a segunda diz respeito às notícias envolvendo os povos Uigures, uma das dezenas de etnias chinesas e que é composta por muçulmanos.

Quanto aos Uigures, famosos habitantes da região de Xinjiang, os mesmos ganharam repercussão nas mídias ocidentais devido às acusações feitas contra o governo chinês de manter os membros dessa etnia em campos de concentração. Contudo, quando nos debruçamos na história do Islã na China, percebemos que as raízes que a religião islâmica possui nesse país já são bem antigas e profundas, e na maior parte das vezes se trata de uma história marcada por uma boa convivência entre muçulmanos e não-muçulmanos.

Estima-se, segundo as fontes tradicionais islâmicas chinesas, a história do Islã na China começou quando alguns sahaba (companheiros de Muhammad), Sad ibn Abi Waqqas (594-674), Jafar ibn Abi Talib e Jahsh pregaram em 616/17 na China. Sad ibn Abi Waqqas iria novamente para a China em 650-651 depois que o califa Uthman lhe pediu para liderar uma embaixada ao país, sendo recebido calorosamente pelo imperador chinês. Muitos acreditam que a mesquita de Huaisheng, uma das mais antigas do mundo e com mais de 1300 anos, tenha sido construída por Sad ibn Abi Waqqas.

Não obstante, mas também a Rota da Seda, que era uma série de extensas rotas comerciais que se espalhavam por todo o Mediterrâneo até o leste da Ásia, foi usada desde 1000 a.C. e continuou a ser usada por milênios. Durante esse grande período de tempo, a maioria dos comerciantes era composta por muçulmanos em direção ao Oriente. Esses comerciantes não apenas carregavam suas riquezas, mas também levavam consigo sua cultura e crenças para o leste da Ásia. Desta feita, a expansão do Islã foi inevitável, espalhando-se por toda a Rota da Seda.

A história do Islã na China, portanto, começa desde a dinastia Tang (618-907), mas foi somente na dinastia Ming [1] que floresceu um dos maiores nomes que a cultura sino-islâmica jamais havia presenciado.

Zheng He, que nasceu com o nome de Ma He em uma família de Kunyang - subdistrito de Kunming em Yunnan, se tornaria um dos maiores navegadores da história humana, liderando frotas invejáveis e muito superiores ao que era utilizado na mesma época em outros cantos do planeta, inclusive superior às frotas que descobriram e colonizaram as Américas.

Nascido em 1371 de uma família muçulmana da etnia Hui, Zheng He já havia o espírito viajante em sua família, uma vez que tanto seu avô quanto bisavô possuíam o título de hajji, isto é, aquele que havia realizado o Hajj, a peregrinação à Meca, um dos cinco pilares da religião islâmica. Assim, o ideal de expedições, viagens e explorar o mundo foi incutido na cabeça do jovem Ma He desde muito cedo, que agora não mais queria ser ver limitado às fronteiras dos territórios da dinastia Ming.

Em 1381 o exército Ming invadiu e conquistou Yunnan, então sob governo do príncipe Basalawarmi. O pai de Ma He morreu resistindo às invasões estrangeiras, enquanto ele foi capturado pelas forças Ming no mesmo ano. Conta a história que Ma He teria se encontrado com o general da marinha Ming, Fu Youde, que descontente com a postura de Ma o tomou prisioneiro e posteriormente o castrou por volta dos seus 10-14 anos, colocando-o ao serviço do príncipe de Yan.

A essa altura, porém, o futuro almirante não era conhecido como Zheng He, mas sim como Ma He, recebendo de seus captores o nome de Sanbao durante o período que serviu ao príncipe de Yan.

Ma recebeu uma educação adequada em Beiping, que ele não teria se tivesse sido alocado na capital imperial, Nanjing, pois o imperador Hongwu não confiava em eunucos e acreditava que era melhor mantê-los analfabetos. O Imperador Hongwu purgou e exterminou muitos da liderança Ming e deu a seus vassalos mais autoridade militar, especialmente aqueles no norte, como o Príncipe de Yan.

O jovem eunuco muçulmano acabou se tornando um conselheiro de confiança do príncipe e o ajudou quando a hostilidade do imperador Jianwen às bases feudais de seu tio levou à Campanha de Jingnan de 1399-1402, que terminou com a aparente morte do imperador e a ascensão de Zhu Di, príncipe de Yan, como o Imperador Yongle, que seria um dos maiores imperadores da história chinesa. Em 1393, o príncipe herdeiro havia morrido, assim o filho do príncipe falecido tornou-se o novo herdeiro aparente. Quando o imperador morreu (24 de junho de 1398), o príncipe de Qin e o príncipe de Jin haviam morrido, o que deixou Zhu Di, o príncipe de Yan, como o filho sobrevivente mais velho do imperador, sendo o primeiro na linha sucessória ao trono. Apesar disso, quem sucedeu ao trono foi o sobrinho de Zhu Di como o Imperador Jianwen. Em 1398, ele emitiu uma política conhecida como xuefan, que implicava a eliminação de todos os príncipes, retirando seus poderes e forças militares. Em agosto de 1399, Zhu Di se rebelou abertamente contra seu sobrinho. No mesmo ano, Ma He defendeu com sucesso o reservatório da cidade de Beiping, Zhenglunba, contra os exércitos imperiais. Em janeiro de 1402, Zhu Di começou sua campanha militar para capturar a capital imperial Nanjing. Zheng He seria um de seus comandantes durante aquela campanha.

O resultado da liderança de Zheng He foi um sucesso: em 1402 os exércitos de Zhu Di venceram as tropas imperiais e marcharam para Nanjing em 13 de julho. Quatro dias depois, Zhu Di seria alçado à posição de imperador. Após Zhu Di se tornar o imperador Yongle, o mesmo promoveria Ma He para o cargo de Grande Diretor da Diretoria dos Servidores do Palácio, e durante o ano novo chinês em 11 de fevereiro de 1404, o imperador Yongle concederia a Ma He o sobrenome de Zheng, porque ele se destacou defendendo o reservatório da cidade Zhenglunba contra as forças imperiais no Cerco de Beiping de 1399 e também por ter se destacado durante a campanha de 1402 para capturar a capital, Nanjing.

Na administração do imperador Yongle, Zheng He permaneceu no oposto de Grande Diretor por mais algum período até que se tornasse o Emissário Chefe do Império durante suas viagens marítimas. Nas três décadas que se sucederam, Zheng He realizaria sete viagens marítimas para o líder chinês com o objetivo comercial e também para coletar tributos na porção oriental do Pacífico e no Oceano Índico.

Entre 1405 e 1433, a dinastia Ming patrocinaria sete expedições marítimas com o objetivo de estabelecer a presença chinesa e impor o controle imperial sobre o comércio do Oceano Índico e estender o sistema tributário do império. Há o rumo de que um dos motivos para as expedições do imperador Yongle seria para capturar seu predecessor que havia fugido, o antigo imperador Jianwen, que havia sido derrubado de seu posto por Zhu Di durante a rebelião Jingnan. Zhu Di, ao assumir o trono sob o nome de Imperador Yongle, apresentou um corpo carbonizado como sendo o de Jianwen, mas rumores circularam por décadas de que o imperador havia se disfarçado de monge budista e escapado do palácio quando o mesmo foi incendiado pelas forças de Zhu Di.

De qualquer forma, sendo o objetivo das viagens para estabelecer o domínio chinês no Índico ou para caçar um imperador que havia fugido, Zheng He foi nomeado como almirante sob comando da imensa frota chinesa e também de suas forças armadas durante essas expedições. Além de Zheng He, Wang Jinghong foi nomeado segundo em comando.

Os preparativos foram minuciosos e abrangentes, incluindo o uso de tantos linguistas que um “instituto de línguas estrangeiras” foi criado em Nanjing. A primeira viagem de Zheng He partiu em 11 de julho de 1405, de Suzhou  e consistia em uma frota de 317 navios com quase 28.000 tripulantes. Era o equivalente a ver uma cidade flutuando em alto mar.

Muito embora as viagens de Zheng He tenham sido marcantes para a história da China e dos locais que visitou, assim como tendo uma frota infinitamente superior as de outras nações de seu tempo, as rotas utilizadas pelo almirante chinês não eram novas, mas já conhecidas antes dele. Com uma frota sem precedentes e valendo-se de rotas já exploradas, Zheng He visitaria Brunei, Java, Siam, o Sudeste Asiático, Índia, a Península Somali e também as Arábias. Em suas viagens, o almirante ficaria marcado pelos presentes generoso que dava aos seus anfitriões, fato histórico explorado nos dias de hoje pelo atual governo chinês em suas relações diplomáticas pelo globo, que se vale do nome de Zheng He como um exemplo histórico da diplomacia e generosidade chinesa para com os povos mais ao ocidente.

Zheng He deu presentes de ouro, prata, porcelana e seda e, em troca, a China recebeu novidades como avestruzes, zebras, camelos e marfim da Costa Swahili. Uma curiosidade bem famosa de suas expedições é que He levou de Malindi uma girafa, que foi considerada como um qilin, uma criatura mitológica chinesa que simbolizaria as bênçãos divinas concedidas ao governo do imperador Yongle.

Muito embora Zheng He fosse um exímio diplomata e prezasse pela diplomacia, o almirante não temia entrar em eventuais confrontos, o que por vezes de fato precisou fazer. Nem sempre era necessário chegar a confrontos militares, uma vez que seu grande exército intimidava a maioria dos possíveis inimigos, sendo relatado por um contemporâneo que Zheng He "andava como um tigre" e não se esquivava da violência quando considerava necessária. Assim, reprimiu impiedosamente os piratas, que há muito atormentavam as águas chinesas e do sudeste asiático. Por exemplo, ele derrotou Chen Zuyi, um dos mais temidos e respeitados capitães piratas e o enviou de volta à China para que fosse executado pelos seus crimes. Ele também travou uma guerra (terrestre) contra o Reino de Kotte no Skri Lanka, e fez demonstrações de poderio militar quando oficiais locais ameaçaram sua frota na Arábia e na África Oriental. De sua quarta viagem, ele trouxe enviados de 30 estados, que viajaram para a China e prestaram suas honrarias na corte Ming.

Nas palavras do próprio Zheng He a respeito de suas viagens:

Atravessamos mais de 100.000 li [2] de imensos espaços de água e vimos no oceano ondas enormes como montanhas subindo ao céu, e pusemos os olhos em regiões bárbaras distantes escondidas em um translucido azul de vapores de luz, enquanto nossas velas, altivamente alçadas como nuvens noite e dia, continuaram seu curso [tão rápido] como uma estrela, atravessando aquelas ondas selvagens como se estivéssemos andando em uma estrada...

Sem sombra de dúvidas, uma das viagens mais marcantes de Zheng He foi ao sudeste asiático, sendo marcante tanto sob o ponto de vista da expedição em si, mas principalmente para os povos locais que passaram até mesmo a cultuar a figura do almirante chinês.

Dentre suas expedições ao sudeste asiático, Zheng He atracou na Indonésia, sendo creditado por ter fundado as comunidades islâmicas chinesas em Sumatra, nas costas de Java, na península malaia e também nas Filipinas, que podem ser encontradas até os dias atuais. A influência de Zheng He nessas regiões foi tão expressiva que o viajante se tornou objeto de culto das comunidades locais, sendo uma figura de vital importância para o desenvolvimento do Islã na Indonésia, principalmente no que tange à escola de jurisprudência sunita Hanafi. Não somente o líder das frotas chinesas se tornaria objeto de devoção popular, mas por vezes até mesmo membros sob seus comandos, como um certo Poontaokong no Arquipélago de Sulu.

Mapa das viajens de Zheng He 

Ainda para exemplificar a influência do muçulmano chines no sudeste asiático, poderíamos citar o fato de que comunidade indonésia chinesa construiu templos dedicados a Zheng He em Jacarta, Cirebon, Surabaya e Semarang. Não somente, mas ainda em tempos recentes, como em 1961, o líder islâmico indonésio e estudioso Hamka creditou Zheng He por desempenhar um papel importante no desenvolvimento do Islã na Indonésia. Já o Brunei Times, periódico que funcionou entre os anos 2006-2016, credita a Zheng He a construção de comunidades muçulmanas chinesas em Palembang e ao longo das margens de Java, na Península Malaia e também nas Filipinas. Não custa lembrar ainda que a Indonésia é hoje o maior país muçulmano, sendo a influência de Zheng He fundamental para a islamização do país, não sendo por acaso o fato da figura do lendário almirante chinês ter se tornado até mesmo objeto de culto popular dentre os nativos indonésios.

Muito embora Zheng He fosse profundamente muçulmano e em suas viagens tenha realizado visitas aos túmulos de grandes santos islâmicos, o mesmo ainda possuía uma religiosidade um tanto quanto contraditória e sincrética, uma vez que também prestava cultos para as divindades chinesas. Exemplo disso era seu culto para a deusa Mazu, a protetora dos navegantes, pescadores e viajantes. Acreditava-se que ela vagava pelos mares, protegendo seus fiéis por meio de intervenções milagrosas. Assim, em homenagem a deusa, Zheng He construiu o palácio Tianfei em Nanjing após retornar de sua primeira viagem ao ocidente em 1407.

Muito embora hoje seja uma figura bastante conhecida, as viagens de Zheng He foram negligenciadas por muito tempo nas histórias oficiais chinesas, mas se tornaram bem conhecidas tanto na China quanto no exterior desde a publicação da obra “A Biografia do Grande Navegador de Nossa Pátria, Zheng He”, de Liang Qichao, em 1904, autor de grande influência política e social na China durante a primeira metade do século XX, que chegou a escrever biografias de importantes figuras na história europeia, como Otto von Bismarck e Oliver Cromwell, não se limitando somente aos grandes nomes do legado chinês.

Hoje, Zheng He é lembrado como um herói nacional na China, sendo o dia 11 de julho, o Dia Marítimo chines, uma homenagem à primeira viagem do almirante muçulmano. Além disso, navios são batizados para honrar o legado desse grande navegador, mas não para por aí: muito embora Zheng He fosse um senhor dos mares de sua época, hoje espaçonaves são dedicadas a ele, como o veículo espacial ZhengHe da agência espacial chinesa, destinada a decolar em 2024 para explorar o asteroide 2016HO3, levando o legado dessa grande figura histórica dos mares até os confins do universo conhecido.

 

NOTAS

[1] O fundador da dinastia Ming, o imperador Hongwu, é também conhecido pelo seu poema panegírico em homenagem ao profeta Muhammad, um dos poemas mais famosos na história islâmica, principalmente na China, intitulado de “Os Mil Elogios”.

[2] Unidade de medida tradicional chinesa para distâncias. É o equivalente a meio quilômetro.

REFERÊNCIAS

DRAKELEY, Steven. The History of Indonesia. Greenwood Publishing Group, 2005.

EBREY, Patricia Buckley. The Cambridge Illustrated History of China. Cambridge University Press, 1996.

GUNDE, Richard. Zheng He’s Voyages of Discovery. UCLA Asia Institute, 2008.

KEAY, John. China: A History. Basic Books, 2009.

MOTE, Frederick W.; TWITCHETT, Denis. The Cambridge History of China: The Ming Dynasty. Vol. 7. Cambridge University Press, 2008.

SEN, Tan Tan. Cheng Ho and Islam in Southeast Asia. ISEAS Publishing, 2009.