Quando pensamos em Idade Média, imaginamos o mundo polarizado do Mediterrâneo entre cristandade e Islã sem espaço para algum outro ponto de vista que não seja o religioso. Ou que pessoas de outras religiões, ou até mesmo sem religião não tinham a opção para expressar suas ideias livremente ou até mesmo viver sem serem condenadas a morte por autoridades eclesiásticas.

Bem, para uma parte do mundo desta época tal clima de intolerância podia até ser verdade, porém, não era a realidade do califado abássida e seu ferrenho critico da religião conhecido como Abu al-‘Alā al-Ma’ari (973-1057).

Al-Ma’ari era um poeta e escritor árabe da cidade de Maarrat al-Numān na Síria que não só era ateu convicto (ou agnostico), como também não deixava suas opiniões guardadas a cabeça, e as publicava em livros e poemas em pleno mundo islâmico medieval. Em seus versos, al-Maari chegou até mesmo a chamar os religiosos muçulmanos de sua época de pessoas sem cérebro e rejeitar a profecia de Muhammad. E o que ocorreu com ele? Foi decapitado pelas autoridades locais? Obviamente não! O mundo islâmico medieval era extremamente mais tolerante de para os padrões da época, e seguia o Islã com muito mais sabedoria do que o fanatismo de alguns grupos atuais, e Al-Maarri morreu de velhice aos 83 anos de idade, passando a vida inteira criticando o Islã impunemente em meio a milhares de muçulmanos.

Al-Maarri perdeu a visão aos quatro anos de idade devido à varíola, e quando tinha idade suficiente para ingressar no brilhante mundo acadêmico islâmico de sua época, então passou a estudar em Alepo, Antioquia, e em outras cidades sírias prosseguindo uma carreira como pensador, filósofo e poeta antes de retornar à sua cidade natal de Maarrat al-Numan, onde viveu o resto de sua vida, praticando ascetismo e veganismo (sim, um ateu vegan não é produto do secularismo do século XXI).

Viajou rapidamente para o centro de Bagdá, onde atraiu um grande número de discípulos de ambos os sexos para ouvir suas palestras sobre poesia, gramática e racionalismo. Um dos temas recorrentes de sua filosofia era a dos direitos da razão contra as pretensões de costume, tradição e autoridade.

Entre suas declarações estavam:

”Não suponha que as declarações dos profetas sejam verdades; elas são todas mentiras. Os homens viviam confortavelmente até que eles vieram e estragaram a vida. Os livros sagrados são apenas um conjunto de contos ociosos que podem ter sido produzidos em qualquer época e de fato realmente foram.”

”Todos erram – muçulmanos, cristãos, judeus e zoroastrianos:
Dois fazem a seita universal da humanidade:
Um homem inteligente, sem religião,
E, um religioso sem intelecto.”

Al-Maarri criticou muitos dos dogmas do Islã, tais como a peregrinação à Meca ,que chamou de “uma jornada de pagãos”.

Embora fosse um defensor da justiça social e da ação, al-Maarri sugeriu que as mulheres não deveriam ter filhos, a fim de salvar as gerações futuras das dores da vida.

E em sua lápide ele pediu que fosse escrito:

”Este mal foi por meu pai feito a mim,
porém nunca feito por mim para alguém.”
(se referindo a não ter deixado filhos)

Algumas décadas após a morte de Al-Maarri, em 12 de Dezembro de 1098, sua cidade foi palco de um grande massacre promovido pelos soldados cristãos da Primeira Cruzada, que segundo fontes da época, comeram os cadáveres dos muçulmanos mortos após o massacre.

Em 2013, quase mil anos depois de sua morte, a Frente al-Nusra , um ramo da al-Qaeda , decapitou uma estátua de Al-Ma’arri durante a guerra civil .na Síria. Mais uma prova dos grandes abismos que separam o Islã clássico de suas interpretações modernas.

Bibliografia:

-P. Smoor, “Al-Maʿarri” in: H. A. R. Gibb (ed.), The Encyclopaedia of Islam, Volume 3, Part 1, Brill, 1984, 927–935.

-Tharoor, Kanishk; Maruf, Maryam (8 March 2016). “Museum of Lost Objects: The Unacceptable Poet”. BBC News.

-Lloyd Ridgeon (2003), Major World Religions: From Their Origins To The Present, Routledge: London, page 257.

-Fisk, Robert (22 December 2013). “Syrian rebels have taken iconoclasm to new depths, with shrines, statues and even a tree destroyed – but to what end?”. The Independent.