A arte nordestina de desenhos em couro é uma forma de expressão artística tradicionalmente praticada na região nordeste do Brasil. Essa técnica consiste em entalhar desenhos e padrões ornamentais em peças de couro, criando belas e detalhadas obras de arte que se tornaram famosas no Brasil e no mundo como uma popular e, ao mesmo tempo, intrincada manifestação artística.

Tais formas e técnicas utilizadas para formar os desenhos em couro, por sua vez, têm raízes históricas e culturais profundas que não se limitam unicamente ao ambiente onde são encontradas e praticadas - o sertão do Nordeste brasileiro - mas muito além dele, tendo sido nele introduzido na gênese de sua formação.

Inicialmente, essa técnica era utilizada na confecção de objetos utilitários para a profissão tradicional do vaqueiro sertanejo, tais como selas, arreios e alforjes para cavalos, todos ligados à profissão artística; mas, ao longo do tempo, ela evoluiu para uma forma de arte decorativa e indumentária, resultando, como diz Euclides da Cunha em sua obra Os Sertões (1902) numa "armadura de couro".


O vaqueiro sertanejo: personagem recorrente da cultura nordestina e suas diferentes faces.

Os artesãos nordestinos que dominam essa técnica são popularmente e curiosamente conhecidos pelo título de "vaqueiros-artesãos" ou, ainda mais poeticamente, como "cavaleiros-cantadores". Eles possuem habilidades excepcionais em entalhar o couro e, nesse ofício, criam desenhos intrincados que representam a cultura e o ambiente da região, bem como a própria herança do lugar, que descende e bebe de diversas culturas ancestrais, como veremos.

Os desenhos são inspirados em elementos herdados principalmente da cultura ibérica (e todas as suas influências), da fauna e da flora local (principalmente da Caatinga, o famoso “sertão” nordestino onde se desenvolveu o ofício de vaqueiro e toda a mística cultural que os envolve) além de figuras religiosas, cenas de festas populares e lendas regionais.

O desenho de couro é o desenho de ornamento coureiro produzido no sertão do nordeste brasileiro por mestres coureiros. Enquanto desenho e ornato, o desenho de couro é tradicionalmente produzido para compor os apetrechos fundamentais da profissão e da aparência do vaqueiro: sua vestimenta de couro e sua sela, também de couro.

Nesse cenário, há no ofício de vaqueiro-artesão uma de suas características peculiares: há famílias em que, por pelo menos três gerações, o ofício de mestre coureiro é transmitido hereditariamente, de pai para filho, enquanto os demais vão vaqueirar. É o que nos mostra o relato do coureiro Seu Antônio, natural de Serra Talhada, em Pernambuco:

“Meu pai nasceu… ele era de 1901 [...] O pai dele era seleiro também, seleiro fino. E o pai dele, com o pai dele também! Olhe, eu... eu já nasci pronto! Ninguém me explicou nada, de couro, nada, de qualquer profissão que eu olhar eu faço [...]"

(Sr. Antônio Leopoldo - Serra Talhada, Pernambuco [NEIVA, 2017].)

Além de ser usada para o trabalho árduo dos vaqueiros, de sol a sol no sertão, as vestimentas também adquiriram, com o tempo, uma certa característica folclórica e lúdica, como nos evidencia uma outra fala de Sr. Antônio:

“É o esporte do vaqueiro: couro...cavalo...e gibão. E perneira [...]. As roupas do vaqueiro leva o ferro do dono. Pra não se perder e nem carregarem, né? (risos) Quando tem festa assim, você sabe... o pessoal carrega” [sic].

(ibid.)

As origens dessa arte e desse costume que se tornaram enraizados no Nordeste podem ser rastreados até os tempos coloniais, que, por sua vez, são a gênese da cultura de pecuária do Nordeste, após a cultura canavieira. Mesmo nos primórdios do Brasil Colônia, durante sua época de produção de cana em engenhos, onde a pecuária não era tão desenvolvida ou relevante, há a menção a um certo tipo de peça de couro trabalhado com ornamentos, de origem ibérica.

O historiador Franklin Pereira descobriu, por exemplo, um grande achado relativo à presença de couro trabalhado no Brasil Colônia, ainda em seu primeiro século de desenvolvimento: num inventário de 1572, pertencente a um engenho de açúcar no interior de Sergipe, consta dentre os itens listados “dois guadameçir e uma guardaporta" [Franklin Pereira 2013, p.2], no que talvez sejam as referências mais antigas de um couro trabalhado no Brasil, especificamente o chamado "guadameci", também conhecido como "couro dourado" espanhol.

Isso não apenas denota que as raízes do trabalho em couro podem ser tão antigas quanto a ideia de “Brasil’, como nos aponta diretamente às origens ibéricas da arte da corioplastia nordestina: uma origem que não é só portuguesa e espanhola, mas também muçulmana e andaluza nos seus primórdios e desenhos, e é exatamente isso que veremos ao compreendermos o que é o guadameci.

O guadameci hispânico, por sua vez, era uma peça de couro trabalhado que se executava principalmente, mas não necessariamente, a partir do couro de carneiro, também chamado de badana nas terras hispânicas, sendo o couro caprino mais delicado e apropriado para o uso de forração de paredes, utilidade mais frequente do guadameci.

Na introdução de seu trabalho El antiguo arte del guadamecil y sus artífices, o pesquisador José-Maria Madurell Marimon apresenta o que são os guadamecis, e diz que também são conhecidos por 'córdovans' - os couros decorados:

“[...] peles curtidas, douradas e gravadas, distinguidas com o nome característico de guadamecis”

[J.M.M. Marimon, 1973, p.5]

O cordobán que Marimon cita é na verdade, unicamente o couro caprino trabalhado, enquanto que o guadameci pode ser qualquer outro couro de qualquer animal trabalhado.


O guadameci foi uma arte hispânica introduzida pelos muçulmanos andaluzos que se popularizou pela Península Ibérica, sendo popular até meados do século XIX e usada para os mais diversos tipos de decoração e motivos.

Há ainda outra modalidade de couro trabalhado, chamado de tallado, que é citado em outras fontes como sendo um terceiro tipo vindo de Espanha, também chamado de calado. Se distingue da técnica guadamecileira por conseguir fazer seus volumes pelo negativo dos seus vazados, isto é, o talho, o sulco, aberto no couro (daí seu nome, que significa “talhado”).

Com relação à etimologia do termo guadameci, tem havido muita especulação em estudos recentes, com duas grandes propostas de origem para a palavra. Ambas, todavia, remetem a origens no Mundo Islâmico. a primeira seria o nome Ghadamés, uma cidade na Líbia antiga que era um conhecido lar de curtumes e também exportadora de peles e couro para o al-Andalus.

A segunda, que por sua vez é tida como mais provável pelos estudiosos, é que o termo teria uma vinculação com o adjetivo arábico wad’ al-másir – que se pode traduzir tanto por “a condição daquilo que possui cores vivas”, como também “estilo de elaboração do que está com ramas”, portanto, sendo um termo descritivo do estilo e do trabalho empregado na decoração do couro.

Franklin Pereira nos dá, ainda, uma confirmação mais que clara das origens andaluzas do trabalho em couro do guadameci:

"No campo dos lavrados (realizados por goiva em V cortante), encontra-se uma série de ornamentos devedores ao legado islâmico [...] esta estilização é continuadora daquela iniciada no Califado e que se prolongou até ao Sultanato de Granada."

[PEREIRA, 2008, p.12]

Mesmo antes dos especialistas espanhóis no manejo do couro em si serem diferenciados dos mestres do guadameci, este já era citado em documentos municipais de Coimbra, Portugal, desde 1145 em uso de calçados, isto é, botas douradas de chamadas de “gudemiciz”.

Na Córdoba de finais do século XVI documentos atestam a onipresença do trabalho de um guadamecileiro não apenas em acessórios de couro, relacionados à cavalaria, mas também em paredes, mesas e guardaportas, alguns permeados dos chamados “motivos mudéjares”, isto é, um estilo islâmico pertencente aos mouriscos e vindo diretamente de al-Andalus, que apenas a pouco deixara de existir.

Dentre todas as aplicações da arte do couro trabalhado, uma em particular nos diz respeito: a do trabalho em selas e artefatos militares. Estojos, baús, arcas, maletas, selas de montar, indumentária popular, as adargas - os escudos de guerra muçulmanos, oriundos da cavalaria andaluza - todos estes objetos eram de uso e de interesse dos militares, desde o período muçulmano.


Interior, em couro trabalhado, ou guadamecí, de uma adarga, um escudo andaluzo medieval: ancestral direto do trabalho em couro do sertão do Nordeste.

Em Portugal, o estilo mudéjar na arte do couro lavrado português dá relevo à herança islâmica deixada no Gharb al-Andalus, de que Portugal é o herdeiro. Ainda hoje a sela muçulmana é o método da equitação artística e da “alta escola” de montaria portuguesa.

Apesar da influência direta, o desenho de couro sertanejo nas selas de couro das tradições nordestinas teve, naturalmente, uma considerável alteração de repertório visual, muito embora a base técnica - a de punção ou ferreteamento e costuras - seja, ainda, a mesma, e através dos traços dos motivos e da própria técnica, a memória ibero-islâmica em si ainda seja rastreável.

Tais motivos, transformados nos sertões do nordeste do Brasil em pleno século XX, se encontram inclusive nas fotografias dos cangaceiros: chapéu de aba levantada – na única peça de couro que usavam, bem como no encouramento mais rico e elaborado de uso dos vaqueiros, ainda em produção pelos mestres do couro sertanejos.

A pesquisadora Suria Seixas Neiva (2017) localizou um curioso motivo mudéjar que sobreviveu na estética do desenho de couro nordestino: um desenho em costura, localizada numa peça de uso do vaqueiro chamada guarda-peito de autoria de Seu Espedito Seleiro, um famoso mestre em corioplastia de Nova Olinda, no Ceará, em um “encouramento rústico”, segundo o mesmo.

Neiva ainda relembra, a partir disso, do uso da planta-baixa básica de palácios muçulmanos e mesquitas no guarda-peito, que como diz seu nome, serve de peitoral e que lembra um pequeno avental. [PEREIRA apud NEIVA, 2017, p.101].

Todavia, os motivos do guarda-peito não são nem de longe os únicos motivos descendentes daqueles do al-Andalus ibérico: o uso de estrelas de seis e oito pontas nos chapéus de couro tipicamente sertanejos também é tido por muitos como herança islâmica.


A estrela de oito pontas dos chapéus dos cangaceiros: dos palácios de Medina Azahara, em al-Andalus, para a indumentária bando de Lampião.

Popularizadas principalmente pelos cangaceiros, os notórios e míticos fora-da-lei do Nordeste, ele foi introduzido na cultura popular fora do Nordeste pelo famoso cantor e compositor Luiz Gonzaga. É justamente essa estrela que simboliza a interferência de Luiz Gonzaga no desenho de couro que reescreveu a memória dos chapéus cangaceiros, usando estrelas salomônicas de seis pontas, com encouramento investido de vaqueiro e com chapéu de cangaceiro estampando as estrelas de oito pontas islâmicas chamada de isbarya, ou zuhara, que inclusive decorava as moedas do Califado Omíada de Córdoba. A partir de Gonzaga, na cultura popular, o cangaceiro passou a usar encouramento e o vaqueiro passou a ter chapéu de cangaceiro, com Estrela-de-Davi e coroa, resultando numa intercalação destas vestimentas.

Além das estrelas, há também as chamadas essadas, que são motivos que seguem padrões estilizados de “SS” (daí o nome “essadas”), ainda muito comuns na arte em couro nordestina e que podem ser traçadas sem nenhuma dificuldade à arte moura e mourisca da Península Ibérica, especificamente até a já citada couraria dos guadamecis. Essa tal “arte essada” em couros tem paralelos com outras, não necessariamente em couro, mas presentes tanto na arquitetura islâmica dos períodos omíada e abássida como na peninsular, em Medina Azahara, e na Mesquita de Córdova, além de produtos do período das Taifas.

Esses motivos e técnicas, advindos de uma cultura que em si era uma mistura de temas, artes e formas como a andaluza, encontraram uma continuação, ainda que singela, na corioplastia sertaneja, perpetuando não apenas alguns métodos de arte em couro que certamente surgiram na Ibéria muçulmana, como nos apontam as evidências e as pesquisas de Pereira e Neiva, mas também motivos artísticos que podem ser diretamente traçados a esse mesmo período da história.

Infelizmente, com a modificação da paisagem e dos modos de produção da pecuária na região sertaneja do Nordeste, a profissão de vaqueiros - e, consequentemente, a de coureiro - está entrando em extinção, uma vez que não se usa mais o cavalo para pastorear o gado, levando à morte das profissões de vaqueiro, seleiro e coureiro, todas intimamente ligadas à arte da corioplastia dos vaqueiros-artesãos. Esse cenário leva, pouco a pouco, à morte da arte ibero-muçulmana de trabalho em couro, seja em chapéus, roupas ou em selas para cavalo, apesar de haver uma tentativa de valorização dessa importante herança cultural, como foi o caso do já citado Sr. Espedito Seleiro.


Seu Espedito Seleiro, mantenedor e divulgador da tradição do trabalho em couro dos artesãos nordestinos.

Hoje, o traço de desenho de couro mais conhecido no país é o dele, tendo recebido, em 2006, um convite da grife Cavalera para um desfile na São Paulo Fashion Week. O Mestre Espedito é responsável por produzir, também, uma coleção de bolsas e sapatos para a marca Cantão, e já produziu até mesmo figurinos de época para o filme O Homem que Desafiou o Diabo, de Moacyr Góes, em 2007; conta também com um ateliê onde reproduz a arte da corioplastia conforme seus ancestrais lhes passaram, provavelmente desde o período da Ibéria Islâmica.

Desse modo, os paramentos dos vaqueiros e a arte que deles provém ganharam projeção, generalizadamente, sob a categoria de “artesanato popular”, o que está contribuindo para a reversão da paisagem de desolação que essa manifestação cultural brasileira sofre. Ela, que é um verdadeiro oásis de cultura nesta paisagem cada vez mais árida que é a cultura e a herança histórica no Brasil.

Bibliografia:

  • NEIVA, Suria Seixas (2017). Desenhos de couro: registro e memória dos desenhos no encouramento do vaqueiro sertanejo. 2017. 196 f. Dissertação (Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade). UEFS, Feira de Santana.
  • DA CUNHA, Euclides (1993) Os Sertões, 12ª edição, p. 118-119. Editora Francisco Alves.
  • PEREIRA, Franklin (1995) "Artes do couro no sul peninsular". In: A Cidade de Évora. Évora: Câmara Municipal. 1-2, p.371-395.
  • PEREIRA, Franklin (2008) A monta "à brida", e "à jineta" nas planícies da Península Ibérica - selas, arreios, e protecção do cavaleiro cristão e muçulmano. Revista Mirabilia 8, julho 2008. ISSN 1676-5818.
  • PEREIRA, Franklin (2013) O comércio de “couro dourado” /guadameci entre Córdova e Lisboa: um contrato de venda de 1525. Revista Medievalista online. Nº 13. Janeiro-junho/2013. 167 Semestral. ISSN 1646-740X.
  • QUEIROZ, Washington (1987) Histórias de vaqueiros – vivências e mitologias. Salvador: IPAC.