Seria o Islã algo distante do Ocidente? E o Profeta Muhammad seria apenas um “rival” do Ocidente, representante de uma cultura “estranha e bárbara”, como alguns pregadores e demagogos da política anti-Islã buscam dizer? A resposta para ambas as perguntas é: não!

Ainda na Idade Média, o Islã foi o responsável pelo renascimento do interesse científico quando um dos pioneiros do campo do “arabismo”, o inglês Robert de Chester (séc. XII) descobriu o ”Al-Kitab al-Mukhtasar fi Hisab al-Jabr wal-Muqabalah”, traduzido por ele ao latim como “Liber Algebræ et Almucabola”, isto é, “O Livro da Álgebra e das Medidas”, atribuído ao célebre polímata persa al-Khwarizm e também o “Masaʾil Khalid li-Maranus al-rahib”, traduzido ao latim como “Liber de compositione alchemiae”, isto é “O Livro da Composição Alquímica”, falsamente atribuída ao príncipe omíada Khalid ibn Yazid.

Tais publicações renderam ao Ocidente, a partir deste século, um interesse frenético não só pelos escritos científicos dos muçulmanos, mas também por suas traduções árabes dos antigos clássicos gregos. Poucos séculos depois, este movimento desembocou na Renascença Europeia, gerando desenvolvimento científico, cultural, político e arquitetônico, graças à influência islâmica.


O Liber Algebræ et Almucabola

Mas este movimento não foi um fenômeno único: ainda no mundo pós-Renascentista, a Europa ainda era influenciada pelo poder da Igreja Católica, que se mantinha como a principal fonte de legislação ou inspiração de governo, conforme podemos ver no próprio ano de 1600, quando Giordano Bruno (1548 - 1600) foi queimado pelas fogueiras da inquisição. Enquanto os países eram assolados pelo controle clerical, divisões internas, guerras de casas nobres por poder e até mesmo pela fome, escândalos como “O Caso dos Diamantes”, que caiu como uma bomba na já decadente monarquia francesa de Luís XVI (1754 - 1793), surgiram na Europa homens com ideias reformadoras, em busca de leis mais justas e em uma luta pelo fim do controle clerical. Junto a este movimento, surge também o chamado “Movimento Orientalista”: os primeiros arabistas, alguns acadêmicos e estudiosos ocidentais começaram a buscar na literatura oriental uma inspiração para um novo mundo.

Novamente, a chave para alguma transformação benfazeja parecia vir do Oriente. Pois se o Império Otomano parecia prosperar em tanta diversidade intelectual e religiosa, inclusive para judeus e cristãos, como explicar uma Europa tão corrupta, claudicante e em guerras sectárias sangrentas? É nesse sentido que analisaremos grandes intelectuais desta época que, tanto no movimento iluminista como no orientalismo, enxergaram no Profeta Muhammad uma grande inspiração: um homem cujo exemplo estava além da mensagem profética, mas que também era um norte enquanto gênio militar, governante, legislador e doador de valores éticos e morais refinados.

Podemos começar com uma figura muito pouco religiosa e até mesmo debochada: François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694 – 1778), que disse que Muhammad era um “Fanático de Boa fé”, em sua obra “Ensaios sobre os costumes” (Essais su les Moeurs). Embora também tenha feito uma peça teatral blasfema e crítica ao Islã, chamada “Maomé ou o Fanatismo” (Mahomet ou Le Fanatisme), podemos perceber que esta última utilizou o Profeta para atacar os clérigos e religiosos como um todo: pois enquanto crítico da Igreja Católica e da monarquia, afirmou que o Império Otomano formava uma sociedade mais tolerante, além de admirar as leis relativamente progressistas do Império Otomano sobre a liberdade religiosa e sua natureza cosmopolita.

Edward Gibbon (1737 – 1794), importante político, filósofo e historiador e iluminista inglês, disse: “Muhammad foi um grande homem, líder carismático, reformador e legislador da nação árabe”. Em sua obra "A História do Declínio e Queda do Império Romano" (The History of the Decline and Fall of the Roman Empire), por muito tempo tida como obra base para compreender a queda total de Roma, Gibbon coloca o Islã em um ponto chave da história do mundo: a expansão islâmica frente ao Império Romano do Oriente (Bizantino) se deu por conta das divisões internas, corrupção e degeneração intelectual, moral e religiosa dos bizantinos, enquanto os muçulmanos estavam fundados em uma legislação sólida, organizados e fortes.

Nesse sentido, Gibbon apresentou o Islã como uma força religiosa e política que representava um desafio à ordem estabelecida. Nesta obra, ele também mostra sua admiração à proeza militar dos conquistadores árabes e sua capacidade de unir diversos povos sob a bandeira do Islã. Nesse sentido, Gibbon de fato conseguiu compreender um ponto histórico, admitido até pelos bizantinos: os valores dos muçulmanos foram decisivos na queda de um império que era marcado pela corrupção, (SPHRANTZES, 1980), onde até padres e clérigos eram vistos caídos bêbados pelas ruas (WARE, 1993).

“Um livro de leis inspirado e produzido por um dos maiores legisladores do mundo, Muhammad.” Thomas Jefferson

Estas foram as palavras de Thomas Jefferson (1801-1809), terceiro presidente dos Estados Unidos, sobre o Alcorão, após adquirir a edição inglesa de George Sale, de 1734, uma das primeiras traduções inglesas do Alcorão, um pouco posterior à tradução de Alexander Ross (1590 - 1664), feita a partir da versão francesa “O Alcorão de Maomé” (L'Alcoran de Mahomet), de 1649, por Sieur du Ryer (séc. XVII). Mas é preciso destacar algo importante da edição de Sale: ela foi feita diretamente do árabe. George Sale foi um inglês que publicou sua tradução do Alcorão em 1734 e era contemporâneo do chamado “Movimento Orientalista”, que buscava traduzir todas obras do Oriente. Sua tradução, intitulada "O Alcorão: comumente chamado de Alcorão de Muhammad" (The Koran: Commonly Called the Alcoran of Mohammed), visava fornecer aos leitores ingleses uma melhor compreensão das escrituras islâmicas. O tradutor expressou sobre Muhammad: Um brilhante e inspirado reformador religioso; e em sua introdução à tradução, mencionou o Profeta como Um reformador iconoclasta, um reformador anticlerical, que revogou o poder de um clero avarento e corrupto e baniu as crenças e práticas supersticiosas dos primeiros cristãos”.

Desta forma, o Alcorão também foi inspirador aos iluministas europeus, que lutavam contra uma Europa dominada por um clero corrupto e contra as superstições, como a Arábia Pagã da época do Profeta. A tradução de Sale foi baseada no texto árabe original do Alcorão. Ele estudou extensivamente a literatura árabe e islâmica e consultou vários comentários islâmicos e fontes históricas para auxiliar em seu trabalho de tradução. A publicação também possui diversas notas explicativas e, apesar de alguns problemas linguísticos e informações datadas, foi um marco na literatura e na relação do Ocidente com o Islã. Também durante sua presidência, Thomas Jefferson lidou com os desafios colocados pelos Estados da Barbária (Magrebe) do Norte da África, conhecidos pela pirataria e pela captura de navios americanos.

Mas o interesse de Jefferson sobre o Islã não acabou por aí: em seu livro "Notas sobre o Estado da Virgínia”, Jefferson expressou suas opiniões sobre vários assuntos, incluindo o Islã, onde reconheceu as contribuições da civilização islâmica para a ciência, filosofia e literatura, além de defender a liberdade religiosa aos muçulmanos. Em 1805, Jefferson ofereceu um jantar de iftar na Casa Branca para Sidi Soliman Mellimelli, um enviado da Tunísia, durante o mês do Ramadã, seguindo os costumes islâmicos. Mas o interesse de Jefferson no Islã não era uma idiossincrasia particular: Adolph Weinman (1870 – 1952), ao esculpir os grandes legisladores no famoso prédio da Suprema Corte Americana, inclui Muhammad ao lado de legisladores como Moisés.


A edição do Alcorão de Thomas Jefferson.

Claude-Étienne Savary (1750 - 1888), tradutor do Alcorão, egiptólogo e orientalista, também influenciado pelo movimento intelectual do Orientalismo, fez uma obra que desempenhou um papel significativo na formação das percepções europeias sobre o Oriente Médio e contribuiu para o crescente fascínio pela cultura oriental durante o final do século XVIII. Sobre o Profeta, ele disse: Muhammad foi um homem extraordinário, um gênio militar, e um homem que sabia inspirar lealdade em seus seguidores. Sua obra "Cartas sobre o Egito" (Lettres sur l' Egypte) forneceu um relato abrangente da sociedade, cultura, história e geografia egípcia.

O trabalho de Savary foi extremamente reconhecido na Europa, pois oferecia uma compreensão detalhada e diferenciada do Egito, seu povo e suas tradições islâmicas. O livro descrevia vários aspectos da vida egípcia, incluindo práticas religiosas, costumes sociais, atividades econômicas e sistemas políticos. Também continha descrições vívidas de marcos históricos, como as pirâmides e o rio Nilo, bem como discussões sobre arte, arquitetura e literatura islâmicas, das quais era um grande apreciador. Ele discutiu a caligrafia islâmica, os intrincados desenhos das mesquitas e a beleza estética encontrada em várias expressões artísticas islâmicas. Por meio de suas descrições, pretendia transmitir a riqueza e sofisticação das tradições artísticas islâmicas a seus leitores.

Além disso, as traduções de Savary de textos árabes, como as "Mil e Uma Noites" e as "Fábulas de Bidpai", desempenharam um papel na introdução da literatura islâmica e da narrativa no mundo ocidental. Essas obras mostraram os aspectos narrativos e morais da cultura islâmica e contribuíram ainda mais para a popularização das tradições literárias islâmicas. É importante observar que, embora Savary apreciasse profundamente a cultura e a religião islâmica, sua perspectiva era a de um estranho e observador. E aqui temos a ligação entre dois homens deste texto: Napoleão leu a tradução do Alcorão feita por Savary em sua viagem ao Egito, rumo à expedição militar. Napoleão viu o Profeta como um general brilhante, um legislador e líder carismático.


O Alcorão em versão francesa de Savary

Quando falamos em poesia ocidental, é impossível não reconhecer o gênio de Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832), conhecido como Goethe, marco da cultura alemã. Além de poeta, foi também filósofo, jurista e dramaturgo. Este gênio da poesia, ao ler o Alcorão em tradução alemã, disse sobre Muhammad:Poeta inspirado e profeta arquetípico.”  Goethe chegou à literatura islâmica através de seu fascínio pelo poeta persa Hafez (1325 - 1390).

A abordagem mística e filosófica de Hafez ressoou em Goethe, que no persa não só ressoou como estilo, mas também rendeu uma de suas obras mais conhecidas: o livro de poesias "Divã Ocidento-oriental", que demonstra seu fascínio pela cultura islâmica através de poemas líricos inspirados na poesia persa. Nesta obra, Goethe buscou preencher a lacuna entre as culturas oriental e ocidental, promovendo uma compreensão e valorização mais profundas das duas tradições. Seu envolvimento com a literatura islâmica e sua admiração pela sabedoria e beleza nela encontrada destacam seu apreço pela tradição islâmica.

A admiração de Goethe por Muhammad foi tão profunda que, ao elogiar Napoleão, de quem era admirador, o chamou de “Muhammad do mundo”. Aos grandes pensadores ocidentais, Muhammad não era apenas uma figura da religião islâmica, mas um arquétipo de governante poderoso, justo e elogiável. Victor Hugo (1802 - 1885), obcecado por Napoleão, o chamou de “Napoleão do Oriente”.


O Divã Ocidento-oriental, de Goethe, com decoração arabesca.

Este era um verdadeiro elogio a Napoleão: é impossível negar a relação de admiração que Napoleão Bonaparte (1769 – 1821) nutria pelo Oriente. O próprio se chamou de “Novo Muhammad” e repetiu para si mesmo as gentilezas de Goethe e Victor Hugo. De fato, Napoleão via Muhammad como inspiração não só como homem, mas como líder militar e estrategista.

Em 1798, Napoleão liderou a invasão francesa do Egito, que marcou um encontro significativo entre a Europa e o mundo islâmico. A campanha militar no Egito visava enfraquecer o acesso da Grã-Bretanha à Índia e estabelecer a influência francesa na região. Durante seu tempo no Egito, Napoleão procurou se apresentar como um amigo e libertador do povo egípcio, chegando a emitir proclamações que expressavam respeito pelo Islã e pelo Profeta.

Sua expedição ao Egito e o subsequente interesse acadêmico e cultural pelo mundo islâmico que ela gerou tiveram um impacto duradouro nas percepções europeias do Islã e no estudo da cultura e história islâmicas. Quando exilado na ilha de Elba, escreveu sobre o Profeta: um grande homem que mudou o curso da história, conquistador e legislador, persuasivo e carismático.

Tudo isso nos aponta a um fato inegável: Muhammad e a cultura islâmica não são “excentricidades orientais”, mas também são fontes de inspiração humana para todos os povos e também para seus grandes intelectuais e líderes. Pois, conforme já sabemos, a cultura islâmica teve uma influência significativa no Ocidente ao longo da história, como nos campos da ciência, filosofia, arte, arquitetura e direito. Esta influência não seria possível se o Profeta Muhamamd também não fosse uma influência admirada pelos intelectuais ocidentais, e influente, inclusive, nos processos políticos e sociais do Ocidente.

Bibliografia:

  • PHRANTZES, Georgios (1980). The Fall of the Byzantine Empire: A Chronicle by George Sphrantzes 1401-1477. The University ‎of Massachusetts.
  • WARE, TIMOTHY (1993). The Orthodox Church: An Introduction to Eastern Christianity.
  • MAGEE, Alexander Gleen (2008). Hegel and the Hermetic Tradition. Cornell University Press.
  • YATES, Frances (2001) Mughal Glory.
  • CHERFILLS, Christian (2021). Napoleon & Islam Bonaparte Et L’islam: Bonoparte Etl’islam; D'Apres Les Documents Francais Et Arabes By Christian Cherfills, UKEY Publishing.