Al-Kindī foi o primeiro pensador no mundo islâmico a se considerar um “filósofo” (em árabe faylasūf), um orgulhoso herdeiro da sabedoria dos gregos. Ele desempenhou um papel crucial na transmissão da ciência e filosofia gregas para o árabe e foi homenageado com o epíteto de "filósofo dos árabes". Nada disso o impediu de ser vítima de uma intriga da corte durante o reinado de al-Mutawakkil em meados do século IX. Graças à conivência de estudiosos rivais, al-Kindī caiu em desgraça e foi espancado, e sua biblioteca foi confiscada. Gosto de pensar que, neste momento de teste, ele foi capaz de colocar em prática o que pregou em um pequeno tratado que compôs chamado “Como afastar a Tristeza”.

Como quase tudo que al-Kindī escreveu, a obra é uma composição original, mas se inspira em exemplares gregos. Há uma versão estendida de uma metáfora que já apareceu no estóico Epiceto, que compara nossa vida aqui na terra a uma estada em terra que interrompe uma viagem marítima. Assim como o viajante deve estar preparado para correr de volta ao barco, se for chamado, para conseguir os melhores lugares, assim também a vida após a morte mais favorável aguarda aqueles que estão preparados para a morte. Outro pensador grego aparece disfarçado como um herói moral indomável. Este é Sócrates, que é apresentado como invulnerável à dor e à tristeza porque, como ele explicou: “Não possuo nada cuja perda me entristecesse”. Este é o cerne do conselho de al-Kindī sobre como evitar a tristeza. A tristeza é o resultado previsível de formar um apego a coisas que podem ser tiradas de você. Para enfatizar a questão, al-Kindī conta a história do rei Nero, que gostava tanto de um pavilhão fabuloso que o trouxe para desfrutar em uma excursão por uma ilha. Infelizmente para Nero, o barco que carregava o pavilhão afundou no caminho. Al-Kindī extrai a seguinte moral dessa história: “se você deseja ter poucos infortúnios, deve possuir pouco fora de si.’’

Embora al-Kindī não se concentre nesse ponto, a implicação é que a tristeza pode ser afastada evitando o apego a qualquer coisa que seja vulnerável às vicissitudes da fortuna. Isso incluiria amigos e família, algo apontado pelo mencionado Epicteto - que deu o conselho enervante de que, ao beijar um filho, devemos nos lembrar de que a criança pode morrer facilmente amanhã - e um pouco mais tarde do que al-Kindī por outro especialista em ética chamado al -Rāzī, que sugere sem sentimentalismo que devemos evitar amar alguém ou, pelo menos, valorizar outras pessoas levianamente.

Esse conselho, de que podemos evitar a tristeza evitando o apego às coisas do mundo ao nosso redor, pode nos lembrar do budismo. Mas al-Kindī não era budista. Ele não negou a realidade do eu, nem de fato recomendou evitar todo apego. Ao contrário, ele nos encoraja a dar grande valor às coisas que não podem ser tiradas de nós. Para os estóicos, isso significaria virtude. Para citar Epicteto novamente, “você pode acorrentar minha perna, mas não minha vontade”, e está totalmente em meu poder governar virtuosamente minha própria vontade. Al-Kindī, entretanto, tem uma visão mais metafísica. Ele pensa que existe todo um reino de objetos que nos proporcionam grande prazer e são invulneráveis ​​à perda. Esses objetos residem no "reino do intelecto". O que ele quer dizer é que a pessoa imune à tristeza é o filósofo, cujo objetivo na vida não é possuir pavilhões ou televisores de tela plana, mas compreender a verdade inteligível.

Nada disso quer dizer que devemos evitar os prazeres e posses corporais a todo custo. Essa foi a estratégia sugerida por alguns filósofos antigos, como Diógenes, o Cínico, que vivia mal tendo apenas um jarro de vinho como abrigo e que ao encontrar um doce em seu desjejum o jogou fora dizendo “fora com tiranos”! O conselho mais moderado de Al-Kindī é que não devemos evitar nem buscar prazeres ou riquezas. Em vez disso, devemos tratá-los como o nobre rei cumprimenta seus convidados. O rei "não avança em direção a uma pessoa nem se despede dela quando ela sai, mas gosta de tudo o que encontra agindo com mais calma e mostrando que não precisa deles."

Parece um excelente conselho quando se trata de pavilhões e televisores, mas é menos atraente quando se trata de, digamos, filhos ou amigos. Uma pessoa que poderia suportar a morte horrível de seus entes queridos sem tristeza é, você pode argumentar, não um herói moral, mas um monstro imoral. Eu tendo a concordar, mas mesmo aqui temos algo a aprender com al-Kindī. Seu principal insight, também visto pelos cínicos, estóicos e budistas, é que a dor que você sentirá na vida é diretamente proporcional ao apego que você cria por coisas que pode perder. A lição a tirar pode não ser que devemos evitar formar apego inteiramente, mas que devemos fazê-lo com moderação e apenas por um bom motivo. Em outras palavras: ame seus filhos, mas não sua televisão de tela plana. Além disso, al-Kindī pode nos ajudar a lidar com a perda de coisas que valorizamos corretamente. Ele conta outra história com um rei: quando Alexandre, o Grande, estava perto da morte, disse à mãe para convidar para o funeral apenas aqueles que nunca haviam enfrentado o infortúnio. É claro que ninguém apareceu, lembrando-lhe que não estava sozinha em sua dor. Todos nós nos apegamos a coisas e pessoas, todos nós podemos e iremos perder o que amamos. Para aqueles de nós que não são Sócrates ou Buda, isso torna a tristeza inevitável, mas se seguirmos o conselho de al-Kindī e nos prepararmos sabendo que a perda com certeza virá, então a tristeza será mais fácil de suportar.

Fonte: iai news