Ibn Battuta: Uma biografia do príncipe dos viajantes
Autor: Guilherme Freitas 17/03/2022Além dos filósofos, médicos e cientistas muçulmanos, dentre as personalidades mais conhecidas da história islâmica estão os seus viajantes. Figuras como Ibn Fadlan, Ibn Jubayr, Zheng He e muitos outros não somente despertam um interesse pelos relatos de suas viagens, mas também possuem grande importância histórica, sendo por vezes as principais fontes para o estudo de determinado povo e localidade, como no caso de Ibn Fadlan a respeito dos povos vikings do Volga e seus costumes.
Dentre os famosos viajantes muçulmanos e com grande importância para o estudo da História, podemos mencionar também Ibn Battuta, talvez o “maior viajante” muçulmano de todos os tempos. Figura quase que lendária, pouco se sabe a respeito do começo de sua vida, senão aquilo que temos registrado em seus próprios escritos com caráter autobiográfico em alguns de seus relatos de viagens. Segundo o próprio biografado, o mesmo seria de ascendência Berbere, nascido em uma família de juristas muçulmanos (qadis) no Marrocos em 24 de fevereiro de 1304.
Pertencente à tribo berbere Lawata, Ibn Battuta seria educado nos ditames da escola de jurisprudência Maliki, a maddhab predominante no Norte da África na época, e posteriormente seria convidado a ser o juiz (qadi) na região, uma vez que já era proveniente de uma família de juristas.
Em 1325, aos 21 anos de idade, Ibn Battuta sairia para realizar a peregrinação islâmica até Meca, mais conhecida como Hajj. O que era para ser uma viagem de 16 meses até um local específico se tornaria uma jornada pelo mundo todo, voltando a visitar o Marrocos somente 24 anos depois de sua partida.
Parti sozinho, sem companheiro de viagem em cuja companhia eu pudesse encontrar ânimo, nem caravana em que pudesse participar, mas influenciado por um impulso dominante dentro de mim e um desejo há muito acalentado em meu seio de visitar esses ilustres santuários. Assim, tomei a decisão de deixar meus entes queridos, mulheres e homens, e abandonei meu lar como os pássaros abandonam seus ninhos. Meus pais ainda vivos, me pesou muito me separar deles, e tanto eles quanto eu fomos afligidos com tristeza por esta separação.
Ele viajou para Meca por terra, seguindo a costa norte-africana através dos sultanatos vigentes. A rota o levou pela Argélia e depois Tunis, onde permaneceu por dois meses. Por segurança, Ibn Battuta geralmente se juntava a uma caravana para reduzir o risco de ser roubado na estrada. Na Tunísia, Ibn Battuta se casou na cidade de Sfax, mas logo a deixou devido a uma disputa com o pai de sua nova esposa. Esse foi o primeiro de uma série de casamentos que aconteceriam durante suas viagens.
Um ano depois de partir de sua terra natal, Ibn Battuta chegaria em Alexandria, no Egito. Lá, teria um encontro com dois ascetas egípcios que fariam certas previsões a respeito de seu futuro. O primeiro, o sheikh Burhanuddin, supostamente teria dito que Ibn Battuta se tornaria um viajante pelo mundo, conhecendo o irmão do sheikh, Fariduddin, na Índia, assim como Rokonuddin em Sind e outro Burhanuddin na China. Já o segundo asceta de Alexandria, o sheikh Murshidi, teria supostamente interpretado um sonho de Ibn Battuta e dito que o mesmo estava destinado a viajar pelo mundo.
Ibn Battuta ficaria mais algumas semanas em Alexandria, onde visitaria alguns locais importantes da cidade e posteriormente partiria para o Cairo, até então capital do sultanato Mameluco. Já no Cairo, o viajante marroquino permaneceria por cerca de um mês na cidade até dar continuidade em sua jornada à Meca. Nessa época haviam três rotas principais que levavam da capital mameluca até a cidade sagrada nas Arábias, mas Ibn Battuta optou pela menos popular delas, que passava pelo vale do rio Nilo e ia até o antigo porto de Aydhab no Mar Vermelho. Contudo, ao se aproximar do seu destino, o viajante precisou retornar devido a uma rebelião que acontecia na cidade, tendo que dar meia volta e ir novamente em direção ao Cairo.
Mais uma vez alocado na capital mameluca, Ibn Battuta agora tinha em mente ir para Damasco, também território mameluco. Durante sua primeira viagem, ele encontrou um homem santo que profetizou que ele só chegaria a Meca viajando pela Síria. A mudança em seu trajeto trouxe uma vantagem: devido aos lugares sagrados ao longo do caminho, incluindo Hebron, Jerusalém e Belém, as autoridades mamelucas não pouparam esforços para manter a rota segura para os peregrinos. Sem essa ajuda muitos viajantes seriam roubados e assassinados pelos bandidos à espreita na beira das estradas. [1]
Ibn Battuta passaria o mês sagrado do Ramadan em Damasco, e lá se juntaria a uma caravana com destino à Medina para visitar a famosa Mesquita do Profeta. O viajante ficaria quatro dias em Medina, e de lá partiria para Meca. Após realizar a peregrinação islâmica em Meca, Ibn Battuta receberia o título de al-hajji, ou “aquele que performou o Hajj”, honorífico utilizado para designar os muçulmanos que cumpriram a peregrinação sagrada em Meca.
Para um viajante cujo objetivo era apenas realizar a peregrinação, o esperado seria retornar para sua terra natal após cumprir com seu itinerário. Esse, contudo, não foi o caso de Ibn Battuta. Após performar o Hajj, Ibn Battuta decidiu ir para o Ilcanato, um canato mongol ao nordeste de onde ele se encontrava.
Depois de se hospedar em Meca por um mês, Ibn Battuta partiria em 17 de novembro de 1326 com uma grande caravana de peregrinos que retornava ao Iraque através da Península Arábica. A caravana viajava para o norte em direção à Medina, e de Medina viajaram durante a noite para Najd, onde Ibn Battuta visitou o mausoléu de Ali, sobrinho do profeta Muhammad e quarto califa do Islã. Ao invés de seguir para Bagdá com a caravana, Ibn Battuta iniciou um desvio de seis meses que o levou ao Irã. De Najaf, ele viajou para Wasit, depois seguiu o rio Tigre para o sul até Basra. Seu próximo destino foi a cidade de Isfahan no Irã. Ele então seguiu para o sul para Shiraz, uma cidade grande e próspera que foi poupada da destruição causada pelos invasores mongóis nas cidades do norte. Finalmente, ele voltou pelas montanhas para Bagdá, chegando lá em junho de 1327. Partes da cidade ainda estavam arruinadas pelos danos infligidos pelo exército invasor de Hulagu Khan em 1258.
Em sua jornada, Ibn Battuta conheceu várias figuras importantes, dentre elas Abu Said em Bagdá, o último governante mongol do Ilcanato unificado. Abu Said estava deixando a cidade com uma grande comitiva e Ibn Battuta se juntou a eles, mas logo foi para o norte na Rota da Seda até Tabriz, no Azerbaijão.
Ibn Battuta partiu novamente para Bagdá, provavelmente em julho, mas primeiro fez uma excursão para o norte ao longo do rio Tigre. Ele visitou Mosul, onde foi convidado do governador do Ilcanato e depois as cidades de Cizre e Mardin na Turquia moderna. Em uma montanha perto de Sinjar, ele conheceu um místico curdo que lhe deu algumas moedas de prata. De volta a Mosul, ele se juntou a uma caravana de peregrinos em direção ao sul para Bagdá, onde eles se encontrariam com a caravana principal que atravessou o deserto da Arábia até Meca. Doente com diarreia, ele chegou à cidade fraco e exausto para seu segundo Hajj.
A respeito de sua nova estadia em Meca, as fontes são conflitantes a respeito de quanto tempo Ibn Battuta ficou hospedado na cidade sagrada do Islã. Em sua obra intitulada Rihla que narra suas viagens, somos sugeridos ao tempo de três anos de estadia, sendo de setembro de 1327 até o outono de 1330. Contudo, alguns comentadores de sua obra acabam sugerindo sua partida no ano de 1328 após o hajj. De qualquer forma, após o hajj, seja ele em 1328 ou 1330, Ibn Battuta partiu para Jedah na costa do Mar Vermelho. De Jedah, partiria para o Yemen usando vários barcos chamados jalbah, pequenas embarcações feitas de tábuas de madeiras conectadas uma nas outras.
Uma vez no Iêmen, ele visitou Zabid e depois a cidade montanhosa de Taizz, onde conheceu o rei da dinastia Rasulida, Mujahid Nur al-Din Ali. Ibn Battuta também menciona visitar Sanaa, mas alguns lançam dúvidas a respeito desse relato. Muito provavelmente, ele foi diretamente de Taizz para o importante porto comercial de Aden, chegando por volta do início de 1329 ou 1331.
Após Aden, Ibn Battuta se direcionaria para a Somália. Assim como todo local que visitara, o viajante marroquino traçava notas a respeito da população local, do governo e assim por diante. No caso da Somália, mais especificamente Mogadishu, a cidade estava em seu zênite de prosperidade no período em que Ibn Battuta os viajou, que descreveu a cidade como “excepcionalmente grande” com vários mercadores bem sucedidos vendendo produtos de altíssima qualidade importados de outros cantos do mundo, como o Egito. Alguns detalhes sobre o governo também foram anotados, como o fato da Somália ser governada pelo sultão Abu Bakr ibn Sayx Umar, assim como os idiomas locais falados sendo o somali e o árabe, ambos com a mesma fluência pelos habitantes nativos.
Depois de sua visita à Somália, as viagens pela África iriam continuar. Dessa vez, Ibn Battuta partiria para a costa Swahili, região outrora conhecida em árabe como bilad al-zanj [2]. Inicialmente se hospedaria em Mombassa, e de lá partiria para Kilwa na atual Tanzânia. A África islâmica era um tanto quanto diferente do que conhecemos hoje, sendo famosa por sua riqueza e elegância: nesse período, Kilwa fazia parte de uma importante rota para o transporte de ouro, sendo descrita por Ibn Battuta como “uma das cidades mais belas e bem construídas; todos os edifícios são de madeira, e as casas são cobertas com juncos de dis”.
Assim como nas suas viagens por outras regiões, Ibn Battuta não deixou de mencionar a respeito do governante de Kilwa, mais especificamente do Sultanato de Kilwa. Nessa época governado pelo sultão al-Hasan ibn Sulaiman, Ibn Battuta fez alguns elogios a respeito de sua humildade e zelo religioso. Ibn Battuta ainda mencionou a extensão do território governado pelo sultão, lançando mais um elogio a respeito de seu governo, mais especificamente sobre o incrível planejamento da cidade, creditando ser essa a razão para o enorme sucesso que Kilwa percebia na época.
As rotas de viagem de Ibn Battuta
Após visitar Kilwa, Ibn Battuta navegou para a Arábia, onde visitou Oman e o estreito de Hormuz e depois partiu para o hajj em Meca em 1330 (ou 1332). Essa seria a terceira vez que Ibn Battuta realizaria a peregrinação islâmica. Após performar o hajj, o viajante marroquino tinha agora a intenção de partir até o sultanato de Dheli para ser empregado pelo sultão Muhammad bin Tughluq. Contudo, para poder chegar até Dheli, era necessário passar pelo território do sultanato seljúcida da Anatólia e de lá partir para a Índia.
Ele cruzou o Mar Vermelho e o Deserto Oriental para chegar ao vale do Nilo e depois seguiu para o norte até o Cairo. De lá, ele cruzou a Península do Sinai até a Palestina e depois viajou novamente para o norte através de algumas das cidades que havia visitado em 1326. Do porto sírio de Latakia, um navio genovês o levou para Alanya, na costa sul de moderna Turquia. Ele então viajou para o oeste ao longo da costa até o porto de Antália. Posteriormente ele iria para Egidir, na atual Turquia. A partir desse momento, sua viagem pela Anatólia acaba ficando confusa, muito embora os historiadores acreditem que Ibn Battuta de fato tenha visitado os locais que mencionou em sua obra Rihla, mas talvez não necessariamente na ordem em que ele tenha mencionado.
Uma vez que nessa época o Império Bizantino ainda existia, vindo a cair pouco mais de um século depois nas mãos do sultão Mehmet II, existe ainda a chance de Ibn Battuta ter conhecido o Imperador bizantino Andronikos III Palaiologos no final de 1332. Curiosamente, nessa mesma época o viajante marroquino teria chego até os territórios do beylik Otomano, mais especificamente em Bursa, sua capital. Seriam os otomanos que conquistariam Constantinopla e colocariam um fim no Império Romano do Oriente pouco mais de um século depois da visita de Ibn Battuta.
Posteriormente Ibn Battuta iria parar em Sinope, e de lá partiu para o território da Horda Dourada. Ao chegar no porto de Azov, o mesmo se encontrou com o emir do khan, partindo para a rica cidade de Majar. Ele deixou Majar para se encontrar com a corte itinerante de Uzbeg Khan, que estava na época perto do Monte Beshtau. De lá, ele fez uma viagem para Bolghar, o ponto mais ao norte que atingiu em suas viagens, e notou que suas noites eram incomumente curtas no verão, comparado aos locais que já havia visitado. Após, ele voltou para a corte (itinerante) do Khan e com ela foi para Astrakhan, cidade Russa na porção europeia do país.
A parte mais curiosa e interessante dos relatos de viajantes feito Ibn Battuta e muitos outros não é necessariamente a descrição de suas rotas, dos governos ou da riqueza dos locais que visitaram, mas principalmente a respeito dos povos e seus costumes, muitos deles que se perderam no tempo [3]. No caso dessa viagem ao território da Horda Dourada, Ibn Battuta visitou Bolghar, na atual Bulgária.
O viajante registrou que, enquanto estava em Bolghar, ele queria viajar mais ao norte para a “terra da escuridão”. Esse território era todo coberto de neve (norte da Sibéria) e o único meio de transporte era o trenó puxado por cães. Lá vivia um povo misterioso que relutava em se revelar ao mundo. Eles negociavam com os povos do sul de uma maneira peculiar. Os mercadores do sul levavam vários bens e os colocavam em uma área aberta na neve durante a noite, depois voltavam para suas tendas. Na manhã seguinte, eles iam até o local e encontravam suas mercadorias levadas por esse povo misterioso, mas em troca encontravam peles que poderiam ser usadas para fazer casacos, jaquetas e outras roupas importantes no inverno. O comércio era feito entre os mercadores e as pessoas misteriosas sem se verem, de forma totalmente anônima e misteriosa. Como Ibn Battuta não era um mercador e não via vantagem em ir para lá além da mera curiosidade, ele desistiu de realizar uma expedição até as terras desse misterioso povo das neves [4].
Dando continuidade, Ibn Battuta partiria para Astrakhan, e ao chegar lá, Öz Beg Khan acabara de dar permissão para uma de suas esposas grávidas, a princesa Bayalun, filha do imperador bizantino Andrônico III Paleólogo, retornar à sua cidade natal de Constantinopla para dar à luz. Ibn Battuta deu jeito para participar desta expedição, que seria sua primeira além das fronteiras do mundo islâmico [5].
Chegando a Constantinopla no final de 1332 (ou 1334), ele conheceu o imperador bizantino e visitou a grande igreja de Hagia Sophia (atualmente mesquita) e conversou com um padre Ortodoxo sobre suas viagens na cidade de Jerusalém. Após um mês na cidade, Ibn Battuta retornou a Astrakhan e relatou os relatos de suas viagens ao sultão Öz Beg Khan. Então ele continuou viajando até Bukhara e Samarqanda, onde visitou a corte de outro rei mongol, Tarmashirin do canato de Chagatai. De lá, viajou para o sul até o Afeganistão, depois para a Índia pelas passagens montanhosas do Hindu Kush. No Rihla, ele menciona essas montanhas e a história do comércio de escravos, que por ali passavam.
Depois disso, segui para a cidade de Barwan, na estrada para a qual há uma alta montanha, coberta de neve e extremamente fria; chamam-lhe de Hindu Kush, isto é, matadora de hindus, porque a maioria dos escravos trazidos da Índia para lá morrem por causa da intensidade do frio.
Não se sabe por qual rota Ibn Battuta entrou no subcontinente indiano, mas sabe-se que ele foi sequestrado e roubado por rebeldes hindus em sua jornada para a costa indiana. Já na Índia, Ibn Battuta chegaria durante o governo do sultão Muhammad bin Tughluq, governante famoso pelo seu patrocínio a eruditos, sufis, juristas e vizires. Nesse sentido, com base em seus anos de estudo em Meca, Ibn Battuta foi nomeado qadi, ou juiz, pelo sultão. No entanto, ele achou difícil fazer cumprir a lei islâmica para além do tribunal do sultão em Delhi, devido à falta de apelo ao Islã na Índia.
O sultão era instável até mesmo para os padrões da época, e por seis anos Ibn Battuta oscilou entre viver a vida de um subordinado confiável e cair sob suspeita de traição por uma variedade de transgressões. Seu plano de partir com o pretexto de fazer outro hajj foi frustrado pelo sultão. A oportunidade para Battuta deixar Delhi finalmente surgiu em 1341, quando uma embaixada chegou da China da dinastia Yuan pedindo permissão para reconstruir um templo budista do Himalaia, popular entre os peregrinos chineses.
Ibn Battuta foi encarregado da embaixada, mas a caminho da costa no início da viagem para a China, ele e sua grande comitiva foram atacados por um grupo de bandidos. Separado de seus companheiros, ele foi roubado, sequestrado e quase perdeu a vida. Apesar desse revés, em dez dias ele alcançou seu grupo e continuou para Khambhat, no estado indiano de Gujarat. De lá, navegaram para Calecute, onde o explorador português Vasco da Gama desembarcaria dois séculos depois. Enquanto em Calecute, Battuta foi o convidado do governante Zamorin. Outro revés surgiria durante sua visita: quando Ibn Battuta visitava uma mesquita em terra, surgiu uma tempestade e um dos navios de sua expedição afundou. O outro navio então partiu sem ele apenas para ser apreendido por um rei local de Sumatra alguns meses depois.
Com medo de retornar para a Índia e ser visto como um fracasso, Ibn Battuta permaneceu mais algum período no sul indiano sob a proteção de Jamal ud-Din, sultão do sultanato de Madurai. Após a derrubada do sultanato, Ibn Battuta não teve escolha a não ser deixar a Índia. Embora determinado a continuar sua jornada para a China, ele primeiro fez um desvio para visitar as Ilhas Maldivas, onde trabalhou como juiz, ficando nas ilhas por 9 meses.
Seu plano inicial nas Maldivas não era permanecer por tanto tempo, mas como os governantes da nação haviam acabado de se converter do Budismo ao Islã, os mesmos precisavam de um juiz (qadi) que tivesse domínio do idioma árabe e do Alcorão. Ibn Battuta, apto ao cargo, acabou ficando nas ilhas por mais tempo do que o planejado, uma vez que recebeu propostas irrecusáveis de riqueza, tendo também sua saída dificultada pelos governantes locais.
Fato curioso a respeito das viagens de Ibn Battuta é que quando ele se estabelecia em algum local por um período mais prolongado, o mesmo acabava contraindo casamentos com as mulheres locais. Em sua estadia nas Maldivas, Ibn Battuta se casou com 4 mulheres diferentes no período de 9 meses, se divorciando de todas quando partiu para outras terras, assim como já havia feito antes em outros locais que visitara. Em sua obra, ele escreveu que nas Maldivas o pequeno valor dos dotes e a não mobilidade feminina se combinavam para, de fato, fazer do casamento temporário algo conveniente para viajantes e marinheiros do sexo masculino [6].
Ainda nas Maldivas, Ibn Battuta ficou conhecido pela sua estrita e rígida aplicação da lei islâmica nas ilhas, o que não foi muito bem visto pelos líderes locais que passaram a antagonizar o viajante marroquino, chegando ao ponto de Ibn Battuta renunciar do seu cargo de qadi.
Após sua estadia nas ilhas Maldivas, Ibn Battuta partiu para o Sri Lanka, onde visitou locais famosos como o Sri Pada e o templo de Tenavaram. O navio de Ibn Battuta quase afundou ao embarcar do Sri Lanka, enquanto o navio que veio em seu socorro sofreu um ataque de piratas. Encalhado em terra, ele voltou para o reino de Madurai, na Índia. Aqui ele passou algum tempo na corte do Sultanato de Madurai sob o governo de Ghiyas-ud-Din Muhammad Damghani, e de lá retornou às Maldivas e embarcou em um barco chinês, ainda com a intenção de chegar à China.
Ele chegou ao porto de Chittagong, no atual Bangladesh, com a intenção de viajar para Sylhet para conhecer o santo sufi Shah Jalal, que se tornou tão famoso que Ibn Battuta, então em Chittagong, fez uma viagem de um mês pelas montanhas de Kamaru, perto de Sylhet, para encontrá-lo. A caminho de Sylhet, Ibn Battuta foi saudado por vários discípulos de Shah Jalal que vieram ajudá-lo em sua jornada muitos dias antes de sua chegada. Ao conhecer o santo, o viajante observou que ele era alto e magro, de pele clara e morava perto da mesquita em uma caverna, onde seu único item de valor era uma cabra que ele mantinha para leite, manteiga e iogurte. Ele observou que os companheiros de Jalal eram estrangeiros e conhecidos por sua força e bravura. Ele também menciona que muitas pessoas visitavam o Shah para buscar orientação.
Dando continuidade em sua viagem, Ibn Battuta agora iria para o sultanato de Samudra Pasai, no norte de Sumatra. Nessa época, o sultanato era governado por Al-Malik Al-Zahir Jamal-ad-Din, que segundo Battuta era um homem muito piedoso e zeloso em suas obrigações religiosas. A essa altura, Ibn Battuta se encontrava no final do território dominado pela religião islâmica, uma vez que o sultanato de Samudra Pasai marcava o fim das terras do Islã (dar al-Islam) [7].
Posteriormente, Ibn Battuta chegaria a conhecer mais uma figura lendária em suas viagens, dessa vez sendo a princesa Urduja em um estado chamado Kaylukari em Tawalisi. Essa localização é motivo de debates entre os estudiosos, alguns acreditando se tratar de Champa no sul do Vietnã, enquanto outros acreditam se tratar da província Pangasinan nas Filipinas. O local atribuído à Kaylukari varia desde Java (Indonésia) até Guangdong na China. Alguns autores, inclusive, afirmam que nem Kaylukari nem Urduja existiram de fato, sendo apenas ficção. De qualquer forma, a princesa Urduja é retratada como sendo uma guerreira conhecida pela sua bravura, opositora da dinastia Yuan chinesa. Hoje, na modernidade, Urduja tem sido destaque em livros e filmes filipinos como uma heroína nacional.
Partindo desse local lendário e quiçá até mesmo fictício, Ibn Battuta agora chegaria finalmente na China, mais especificamente em Quanzhou, na província de Fujian. Então sob o domínio dos mongóis da dinastia Yuan, os mesmos que Urduja se opunha, uma das primeiras coisas que o viajante notou foi que os muçulmanos se referiam à cidade como "Zaitun" (que significa azeitona), mas Ibn Battuta não conseguia encontrar azeitonas em lugar nenhum. Mencionou artistas locais e sua maestria em fazer retratos de estrangeiros recém-chegados, sendo usados para fins de segurança. Ibn Battuta elogiou os artesãos e sua seda e porcelana, além de frutas como ameixas e melancias e as vantagens do papel-moeda.
Ele descreveu o processo de fabricação de grandes navios na cidade de Quanzhou. Ele também mencionou a culinária chinesa e seu uso de animais como sapos, porcos e até cães que eram vendidos nos mercados, e observou que as galinhas na China eram maiores que as no ocidente. Estudiosos, no entanto, apontam vários erros no relato de Ibn Battuta sobre a China, por exemplo, confundindo o Rio Amarelo com o Grande Canal e outras vias navegáveis, bem como acreditando que a porcelana era feita de carvão [8].
Em Quanzhou, Ibn Battuta foi recebido pelo chefe dos comerciantes muçulmanos locais e também pelo Imam, que vieram ao seu encontro com bandeiras, tambores, trombetas e músicos. Ibn Battuta observou que a população muçulmana vivia em uma parte separada da cidade, onde tinham suas próprias mesquitas, bazares e hospitais. Assim como hoje em grandes cidades ocidentais temos locais como a Chinatown, na China medieval tínhamos uma pequena porção do dar al-Islam em algum canto das cidades.
Ainda em Quanzhou, ele conheceu dois iranianos proeminentes, Burhan al-Din de Kazerun e Sharif al-Din de Tabriz (figuras influentes, sendo mencionados na História Yuan). Enquanto em Quanzhou ele subiu ao "Monte do Eremita" e visitou brevemente um conhecido monge taoísta em uma caverna.
De Guangzhou ele foi ao norte para Quanzhou e depois seguiu para a cidade de Fuzhou, onde passou a residir com Zahir al-Din e conheceu Kawam al-Din e um compatriota chamado Al-Bushri de Ceuta, que se tornou um rico comerciante na China. Al-Bushri acompanhou Ibn Battuta para o norte até Hangzhou e pagou os presentes que Ibn Battuta daria ao imperador mongol Togon-temür da dinastia Yuan.
Em Pequim, Ibn Battuta se referiu a si mesmo como o embaixador do Sultanato de Delhi e foi convidado para a corte imperial de Togon-temür. Ibn Battuta viajou de Pequim para Hangzhou e depois seguiu para Fuzhou. Ao retornar a Quanzhou, ele logo embarcou em um barco chinês de propriedade do sultão de Samudera Pasai em direção ao sudeste da Ásia, após o que Ibn Battuta foi pesadamente taxado pela tripulação e perdeu muito do que havia adquirido durante sua estadia na China.
A sua viagem à China chegava agora ao fim. Com isso, o viajante tinha em mente voltar para sua terra natal: Marrocos, no continente africano. Quando chegou em Calicut, na Índia, Ibn Battuta reconsiderou voltar a servir ao sultão Muhammad bin Tughluq de Deli, mas optou por seguir para Meca. A caminho de Basra, ele passou pelo Estreito de Ormuz, onde soube que Abu Said, último governante do Ilcanato, havia morrido no Irã. Os territórios de Abu Said posteriormente entraram em colapso devido a uma violenta guerra civil entre iranianos e mongóis.
Nessa etapa de sua viagem, Ibn Battuta seria afligido pelo sentimento de luto e pela presença constante da morte. Quando chegou em Damasco em 1348, o mesmo descobriu que seu pai já havia falecido 15 anos atrás. Não obstante, a Peste Negra havia atingido pesadamente o oriente, e ele parou em Homs quando a praga se espalhou pela Síria, Palestina e Arábia. Ele ouviu falar do terrível número de mortos em Gaza, mas retornou a Damasco em julho daquele ano, onde o número de mortos chegou a 2.400 vítimas por dia. Quando em Gaza, descobriu que a mesma estava despovoada e, no Egito, ficou em Abusir. Segundo consta, as mortes no Cairo chegaram a 1.100 pessoas por dia.
Ele performou o hajj em Meca e então decidiu retornar ao Marrocos, décadas depois de ter saído de casa em sua famosa jornada. No caminho ele fez um último desvio para a Sardenha, então em 1349, e retornou a Tânger por Fez, para também descobrir que sua mãe havia falecido alguns meses antes de sua chegada.
Ibn Battuta ficaria poucos dias no Marrocos, decidindo agora viajar para al-Andalus, o território muçulmano na Península Ibérica. Nessa época, o rei Afonso IX de Aragão e Castela havia ameaçado atacar Gibraltar, no sul da Península. Valendo-se disso, Ibn Battuta se juntou a um grupo de muçulmanos saindo de Tânger para defender o porto de Gibraltar, porém o rei Afonso seria assolado pela Peste e viria a morrer também. Diante desse cenário, o viajante aproveitaria a oportunidade para conhecer a Espanha islâmica, visitando Valencia e indo até Granada.
Após partir de al-Andalus, decidiu viajar pelo Marrocos. Ao voltar para casa, ele parou por um tempo em Marrakech, que era praticamente uma cidade fantasma após a Peste e também pela transferência da capital marroquina para Fez. De Fez, partiria para Sijilmassa, no sudeste marroquino, onde compraria vários camelos e se hospedaria por quatro meses. Ele partiu novamente com uma caravana em fevereiro de 1352 e depois de 25 dias chegou ao leito do lago salgado de Taghaza com suas minas de sal.
Taghaza era um centro comercial e repleta de ouro, mas mesmo assim Ibn Battuta não teve uma impressão muito favorável do local, registrando que era cheio por moscas e a água era salobra.
Depois de dez dias em Taghaza, Ibn Battuta viajou para sudoeste ao longo de um rio que ele acreditava ser o Nilo (na verdade era o rio Níger), até chegar à capital do Império do Mali. Lá ele conheceu Mansa Suleyman, rei desde 1341. Ibn Battuta desaprovava o fato de que escravas, servas e até mesmo as filhas do sultão saíam expondo partes de seus corpos, o que não condizia com o comportamento esperado de um muçulmano.
De qualquer forma, Ibn Battuta partiria agora para Timbuktu. Muito embora fosse se tornar a cidade mais importante do Império do Mali pelos dois séculos subsequentes, na época que foi visitada por Battuta a cidade ainda não revelava a potência que um dia viria a ser, vez que era pequena e de pouca significância.
Foi durante esta viagem que Ibn Battuta viu pela primeira vez um hipopótamo. Os animais eram temidos pelos navegadores locais e caçados com lanças às quais eram presas cordas bem resistentes. Após uma curta estadia em Timbuktu, Ibn Battuta desceu pelo Níger até chegar em Gao, valendo-se de uma canoa que havia sido esculpida através de uma única árvore. Na época Gao era um importante centro comercial, e lá Ibn Battuta permaneceria por cerca de um mês.
Após sua estadia em Gao, o viajante partiria com destino a Takedda, na atual Nigéria. Em sua jornada pelo deserto, ele recebeu uma mensagem do sultão de Marrocos ordenando-lhe que voltasse para casa. Ele partiu para Sijilmassa em setembro de 1353, acompanhando uma grande caravana que transportava 600 escravas, e voltou ao Marrocos no início de 1354.
Chegando em 1354 ao Marrocos, Ibn Battuta narraria suas viagens a Ibn Juzayy, um erudito que conhecera em Granada, sob o pedido do governante marroquino Abu Inan Faris. Esse relato escrito por Ibn Juzayy é a única fonte das aventuras de Ibn Battuta. O título completo do manuscrito pode ser traduzido como Uma obra-prima para aqueles que contemplam as maravilhas das cidades e as maravilhas de viajar, abreviado somente como al-Rihla, ou As Viagens.
Pouco se sabe a respeito de sua vida após o seu retorno ao Marrocos em 1354 e a confecção de seu relato de viagem. Sabe-se que teria sido nomeado juiz e que teria falecido por volta de 1368-69. Sua obra, contudo, só veio a ser conhecida no Ocidente no começo do século XIX, após Ulrich Jasper Seetzen (1767-1811), viajante alemão, ter adquirido uma coleção de manuscritos no Oriente Médio, contendo entre eles um resumo dos escritos de Ibn Juzayy. Três extratos foram publicados em 1818 pelo orientalista alemão Johann Kosegarten. Um quarto extrato foi publicado no ano seguinte. Já os estudiosos franceses foram alertados para a publicação por uma longa resenha publicada no Journal de Savants pelo orientalista Silvestre de Sacy.
Ainda no século XIX, manuscritos com o relato resumido foram adquiridos por Johann Buckardt, viajante suíço, e foram parar na Universidade de Cambridge. Os manuscritos seriam traduzidos ao inglês por Samuel Lee, sendo publicados em Londres em 1829.
Novamente no que diz respeito aos franceses, na década de 1830, durante a ocupação francesa da Argélia, a Bibliothèque Nationale em Paris adquiriu cinco manuscritos das viagens de Ibn Battuta, dos quais dois continham o relato completo. Um dos manuscritos, contendo apenas a segunda parte da obra, é datado de 1356 e acredita-se ter sido escrito pelo próprio Ibn Juzayy.
Hoje em dia, muitos estudiosos duvidam que Ibn Battuta tenha de fato viajado por todos os locais que é narrado em seu diário de viagens. Não há indicação de que Ibn Battuta tenha feito anotações ou diário durante seus vinte e nove anos de viagem. Quando ele veio a ditar os relatos para Ibn Juzzay, ele teve que confiar em sua memória e nos manuscritos produzidos por viajantes anteriores. Ibn Juzayy não mencionou fontes e apresentou algumas das descrições anteriores como observações do próprio Ibn Battuta. Ao descrever Damasco, Meca, Medina e alguns outros lugares do Oriente Médio, ele teria copiado passagens do relato do viajante andaluz Ibn Jubayr, que havia sido escrito mais de 150 anos antes da Rihla. Da mesma forma, a maioria das descrições de lugares na Palestina de Ibn Juzayy teriam sido copiadas de um relato de outro viajante do século XIII, Muhammad al-Abdari.
Alguns dos relatos, contudo, foram confirmados por obras acadêmicas, sendo esse o caso do estudo realizado por Tim Mackintosh-Smith. Através de um estudo de campo onde Mackintosh-Smith visitou dezenas de locais mencionados no Rihla, o mesmo relata manuscritos anteriormente desconhecidos sobre a lei islâmica armazenados nos arquivos da Universidade de Al-Azhar no Cairo e que foram copiados por Ibn Battuta em Damasco em 1326, corroborando com a data contida no seu relatório de viagem sobre sua estadia na Síria.
NOTAS
[1] Assaltos e até assassinatos eram bem comuns nas estradas medievais que levavam de uma cidade à outra. A própria Ordem dos Cavaleiros Templários foi fundada com o objetivo de proteger os peregrinos que iam até Jerusalém, uma vez que poderiam facilmente ser vítimas dos ladrões durante o longo percurso que tinham que enfrentar.
[2] O termo significa “Terra dos Zanj”. Zanj significa negros. Existem discussões etimológicas a respeito da origem da palavra zanj, alguns afirmando ser proveniente da China ou até mesmo do sul da Ásia. De qualquer forma, uma revolta escrava muito famosa na história islâmica ficou conhecida como Revolta dos Zanj, uma massiva rebelião escrava que abalou o Império Abássida alguns séculos antes do nascimento de Ibn Battuta.
[3] Os viajantes muçulmanos são uma das principais fontes (ou as vezes a única fonte) para o estudo de alguns povos africanos.
[4] Vários são os povos que vivem nessa região ao norte da Sibéria, como os Nenets, Nganasans, Enets e Selkups. É incerto qual povo Ibn Battuta se referia, uma vez que ele próprio não teve a oportunidade de conhecê-los.
[5] As viagens de Ibn Battuta demonstram a imensidão dos territórios do dar al-Islam, englobando quase o mundo conhecido inteiro.
[6] O termo árabe para casamento temporário é nikah mutah. Tal prática é condenada pelas quatro escolas de jurisprudência sunita, sendo permitida no xiismo duodecimano. Cumpre salientar que Ibn Battuta era muçulmano sunita.
[7] Com território islâmico ou terras do Islã, nos referimos até onde o mundo islâmico alcançava nessa época, e não algo como um governo central ou um bloco monolítico islâmico.
[8] O próprio uso de animais “exóticos” ou que temos como pets na culinária chinesa também pode ser discutido, pelo menos em comparação com a culinária chinesa moderna. Embora exista a ideia de que chineses comem cachorros ou animais exóticos (como morcegos, por exemplo), esse pensamento não se reflete no dia-a-dia do povo chines, sendo apenas mais um estereótipo.
REFERÊNCIAS
DUNN, Ross Edmund. The Adventures of Ibn Battuta: A Muslim Traveler of the Fourteenth Century. University of California Press, 2012.
LEE, Samuel. The Travels of Ibn Battuta: in the Near East, Asia and Africa, 1325–1354. Dover Publications, 2013.
MACKINTOSH-SMITH, Tim. Travels with a Tangerine: A Journey in the Footnotes of Ibn Battutah. John Murray, 2012.
WAINES, David. The Odyssey of Ibn Battuta: Uncommon Tales of a Medieval Adventurer. I.B. Tauris, 2010.
DIMEO, David; HASSAN, Inas. The Travels of Ibn Battuta: A Guided Arabic Reader. The American University in Cairo Press, 2016.