Se as obras de Ibn Khaldun sobre a sociedade e a civilização forem revisitadas através da perspectiva dos direitos humanos, ele poderá servir como fonte de inspiração e orientação não só para o mundo islâmico contemporâneo, mas também para a humanidade como um todo, na abordagem de questões de direitos humanos.

Ibn Khaldun foi um renomado erudito na área das ciências sociais, creditado pela fundação da disciplina da “Ciência da Sociedade e da Civilização” (Ilm al-Umran). Nascido em Túnis, em 27 de maio de 1332, viveu uma vida tumultuada, que incluiu o desempenho de várias funções como a de burocrata, político, diplomata, especialista e acadêmico do Direito. Ele faleceu em 17 de março de 1406, deixando para trás uma rica herança intelectual.

Os direitos humanos são entendidos com os direitos e faculdades que asseguram a liberdade e dignidade do indivíduo. No mundo moderno, a chamada “era dos direitos humanos”, apesar de toda discussão, ainda, na prática, vê violações persistentes e sérias. Portanto, só podemos falar numa verdadeira era de injustiça, não numa verdadeira era de direitos humanos, devido ao que ocorre perante os olhos da humanidade.

As ideias de um pensador da sociedade e da civilização do século XIV pode nos inspirar hoje? Se sim, como?

A universalidade dos direitos humanos

A noção de “dignidade humana” é essencial e é a base dos direitos fundamentais por excelência. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, dispõe, em seu preâmbulo, que: “Considerando que, de acordo com os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, a liberdade, a justiça e a paz no mundo” e “Reconhecendo que estes direitos derivam da dignidade inerente à pessoa humana”.

Para Ibn Khaldun, o pensamento é a faculdade que distingue o homem dos animais e o faz respeitar as criaturas (shurrifa). Assim, o pensador considera a dignidade humana como uma característica distintiva dos seres humanos.

Ele também começa reconhecendo a universalidade dos direitos humanos, que estão ligadas à igualdade dos homens. Ele diz: “Mais de uma característica distingue os homens uns dos outros; no entanto, é verdade que todos eles são filhos de Adão”. Como podemos ver, o pensador afirma a unidade da comunidade humana, como lemos no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948: “O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Em seu famoso livro “Muqaddimah”, há um foco em uma consideração holística dos direitos humanos, ao invés de fatos isolados.  Pelo contrário, é uma teoria sistemática e compreensiva sobre os direitos humanos. Vamos explorar os fundamentos deste conceito.

Justiça: Respeito pelos Direitos Humanos

A definição de justiça dada por Ibn Khaldun na Muqaddimah corresponde à sua definição moderna: “Colocar cada um em seu lugar é um tratamento justo (al-insaf) – em outras palavras: justiça”. A justiça desempenha um papel essencial nesta nova ciência. Ibn Khaldun se refere ao famoso círculo da justiça (ou política) para enfatizar as especificidades metodológicas de sua ciência em relação à política. Após dar dois exemplos do círculo da justiça da literatura política persa, um de Mobed e outro de Anocharvan, e um tratado sobre política atribuído a Aristóteles, ele diz: “Quem olhar com a necessária atenção e compreensão para o capítulo que dedicamos ao Estado e ao poder encontrará ali, de forma completa, baseada em provas e argumentos claros, a explicação destas máximas. E a exposição detalhada do que foi apresentado aqui em termos gerais”.

Em nossa opinião, o círculo da justiça e os comentários de Ibn Khaldun sobre este demonstra a importância do trabalho do pensador em inspirar juristas e cientistas políticos. Ele desenvolveu o conceito de justiça e sua relação com a injustiça (zulm), na Muqqadimma – uma de suas teorias mais cruciais – que é similar à atual teoria dos direitos humanos.

Injustiça: Violação dos Direitos Humanos

Ibn Khaldun transformou a concepção tradicional de injustiça (zulm) em um novo conceito legal e técnico. De acordo com ele: “A injustiça não significa simplesmente retirar o dinheiro ou outra propriedade de alguém que é seu dono, sem compensação e motivação, apesar de esta ser a opinião comumente aceita... Ninguém tem o poder de cometer injustiça, exceto aquela sobre a qual outros homens não têm poder: a injustiça é obra de pessoas que têm capacidade e exercem autoridade”.

Ele afirmou que este conceito abrange vários tipos de violação de direitos humanos num sentido amplo, que podem ser perpetrados por autoridades públicas. Esta definição de injustiça no sentido amplo e legal corresponde perfeitamente ao conceito de violação dos direitos humanos modernos.

O pensador vê a injustiça como uma ameaça à destruição da sociedade e da civilização. Ele diz: “O Estado está na forma da sociedade e da civilização, e necessariamente corrompe a si mesma através da corrupção de seu material”. Portanto, o poder e o Estado pertencem à sociedade e à civilização da mesma forma que a “forma” pertence à “matéria”. Sem poder (mulk), não há estado (dawla), e sem este, a civilização é, ela mesma, privada de forma. Consequentemente, a sobrevivência do Estado depende da proteção dos direitos humanos.

Direitos Humanos Modernos

Na “Muqqadima”, a justiça e a injustiça são os conceitos mais proeminentes, representando respeito pelos direitos humanos e a violação dos mesmos. Ibn Khaldun também usa a expressão “direitos do povos” em sua obra no mesmo sentido moderno do termo “direitos humanos”. Portanto, Ibn Khaldun é o pensador mais antigo a utilizar a frase “os direitos dos homens” em sua interpretação moderna de direitos humanos, afirmando que “Aqueles que não respeitam os direitos do povo (hukuq na-nas), cometem uma injustiça”.

Por outro lado, referenciando a função da autoridade judicial (qada) na sociedade, ele enfatiza: “os direitos humanos são levados em conta graças à autoridade judicial”. Hoje, estamos discutindo a proteção legal dos direitos humanos em nível nacional através de jurisdições internas e em nível internacional através de jurisdições internacionais, como a Corte Europeia de Direitos Humanos. De fato, nenhuma proteção internacional dos direitos humanos pode ser seriamente implementada sem mecanismos jurídicos apropriados. É o que Ibn Khaldun nos propôs e o que hoje aceitamos como o sistema mais efetivo de proteção no campo dos direitos humanos. Ele usa o mesmo conceito duas vezes ao descrever o “testemunho judicial” em estados muçulmanos da época: “A testemunha judicial recebe o depoimento, testemunha em julgamento, registra o testemunho e o julgamento por escrito em ações para preservar os direitos humanos (hukuq an-nas), as propriedades e todas as transações”.

Finalmente, a sentença de Ibn Khaldun a seguir mostra que o pensador considera a proteção dos direitos humanos como a principal função do judiciário como é entendida hoje: “O juiz deve averiguar as condições e a conduta das testemunhas judiciais para garantir sua probidade. Ele não deve negligenciar este ponto, pois ele deve salvaguardar os direitos humanos (hukuq an-nas)”.

Antes de vários pensadores políticos ocidentais, como Maquivel, Hobbes e Locke, Ibn Khaldun começou a examinar a natureza humana para justificar a necessidade da proteção dos direitos humanos. Ele apontou que a natureza humana possui uma dimensão dupla: um lado animal e um lado humano. “O homem, enquanto um animal, é inclinado, por natureza, à agressividade (udwân) e à injustiça (violações dos direitos humanos)”.

“Nos homens, o mal se manifesta de várias maneiras, a mais óbvias delas é a injustiça (zulm) e a agressividade (udwan). Aquele que foca seus olhos no bem dos outros, não falhará em colocar suas mãos nela, a menos que uma autoridade o impeça de fazê-lo. Além disso, o o poeta estava correto ao dizer: ‘a injustiça é uma qualidade da alma humana; se há um homem que se abstém dela, sempre há uma razão por trás’”.

Assim, ele justifica a necessidade da autoridade na sociedade humana com a natureza animalesca humana. Ele acredita que a autoridade política é essencial na vida social porque a natureza animal do homem contém agressividade (udwan) e injustiça (zulm). Esta tendência à agressividade e injustiça (violação dos direitos dos outros, especialmente do direito à vida, segurança e propriedade) na natureza humana, constitui uma ameaça à vida social. A razão é parte da boa natureza dos humanos. O poder e a política emergem desta habilidade em impedir ações que surjam da tendência à agressividade e injustiça na natureza humana. Portanto, a natureza humana é um fator primário na justificativa da teoria do Estado do pensador. Sempre que ele fala da necessidade da autoridade, ele está se referindo a esta natureza.

O pensador explica a razão de ser da autoridade (Estados futuros) como a necessidade de prevenir injustiças (zulm) entre si, ou seja, violações dos direitos humanos na vida social e civil. Esta prevenção das violações dos direitos humanos diz respeito, em particular, ao direito à vida, o direito à segurança e o direito à propriedade. Então, estes direitos constituem a razão de ser da autoridade política, que se estende ao estado como uma sociedade política global.

Boa Governança: Um Elemento Crucial dos Direitos Humanos

Ibn Khaldun vê a boa governança como um principal elemento para a proteção dos direitos humanos e a discute como a qualidade de um líder político num capítulo separado. Ele aponta que “um chefe poderoso trata todos os homens de acordo com as regras de equidade (al-insaf)”, ou seja, com justiça. “O poder está ligado apenas às qualidades nobres dos políticos no poder. Quando as boas qualidades começam a desaparecer, é de se esperar a queda deste Estado”.

Ele nota que o uso excessivo da força mina o próprio poder. Esta é uma perspectiva muito moderna e democrática. O que importa para um líder político é que sua governança seja boa e benéfica para os cidadãos.

Ele estava ciente da ameaça que o Estado representava para os direitos humanos, apesar de sua autoridade ter sido estabelecida originalmente para protegê-los. Ele menciona que: “nas capitais e nas cidades, são as autoridades governamentais e os estados que impedem as pessoas de atacarem umas às outras. Eles controlam o povo para impedir ataques e atos de hostilidade. A restrição e o governo são suficientes para conter as más paixões, com exceção, porém, da tirania do próprio governante”.

Estas expressões mostram a necessidade da restrição do poder do Estado. É por isso que ele costuma enfatizar a indispensável relação entre a prevenção das violações dos direitos humanos e a continuidade e proteção da sociedade, civilização e Estado.

Para limitar o poder absoluto, Ibn Khaldun entende que é necessário que o poder e o Estado respeitem os direitos humanos. Ele postula isso com uma lei social que o expressa de forma impressionante: “Violações dos direitos humanos anunciam a ruína da sociedade e da civilização”. Em outras palavras, o poder violento e arbitrário acelera sua queda. Ibn Khaldun, então, alerta contra uma reversão do governo contra seus súditos, o que provoca o colapso dos Estados.

Em sua nova ciência, encontramos uma teoria dos direitos humanos sistemática e holística. Uma abordagem holística à nova ciência de Ibn Khaldun revela que suas teorias sociais e políticas possuem uma robusta teoria sobre os direitos humanos num sentido moderno.

Uma análise da Muqaddima de Ibn Khaldun revela que ele foi o primeiro a se referir aos “direitos do povo” num sentido moderno de direitos humanos. Ele colocou a prevenção das violações dos direitos humanos no centro da estabilidade política da sociedade e do Estado. Apesar da visão contemporânea dos direitos humanos como a base para um Estado-nação, Ibn Khaldun argumentou que tais direitos devem estar enraizados ao nível da sociedade, civilização e do Estado.

Ele explicou as noções de justiça e injustiça de uma maneira que permanece relevante hoje. Por outro lado, ele claramente expressou em sua nova ciência que os valores universais sobre os quais os direitos humanos modernos são baseados estão enraizados na dignidade humana e na universalidade dos direitos fundamentais.

No sistema de pensamento de Ibn Khaldun, o Estado existe para proteger os indivíduos e garantir-lhes justiça, ordem e segurança na vida social. Posteriormente, o Estado, enquanto poder político organizado, teve de agir de acordo com sua razão de ser para garantir a segurança e a prevenção de violações dos direitos humanos na vida social.

O ser humano é, ao mesmo tempo, livre desde o nascimento e teve que levar uma vida social. Portanto, é necessária uma organização social como uma sociedade e uma civilização. Assim, proporcionar segurança e prevenir a violação dos direitos dos outros é a razão da existência e da legitimidade do poder político e do Estado. Além do mais, a sobrevivência da sociedade e da civilização necessita do estabelecimento de um equilíbrio entre a liberdade e autoridade.

Ele considera a violação dos direitos fundamentais dos indivíduos pelo estado, que foi criado para, na verdade, salvaguardá-los, como uma violação dos direitos humanos no sentido legal e técnico. A violação dos direitos humanos pelo estado leva à desintegração da sociedade e da civilização, o que leva à perda do poder e ao colapso do Estado.

Para Ibn Khaldun, a lei, a justiça, a boa governança e a prevenção da injustiça são essenciais para a sobrevivência da humanidade na terra enquanto sociedades, estados e civilizações. Ele considera estas noções como elementos essenciais da vida social e da civilização.

Ao reler o pensador da sociedade e da civilização desta maneira, Ibn Khaldun pode inspirar e guiar tanto o mundo islâmico atual quanto toda a humanidade na superação dos desafios aos direitos humanos.

Fonte: Daily Sabah