Em julho de 2023, eu concluí o que deveria se tornar a quarta edição - e terceira atualização - do meu livro, The Gun and the Olive Branch: The Roots of Violence in the Middle East, uma história do conflito árabe-israelense. 

Então veio 7 de outubro, a onda de assassinatos do Hamas no sul de Israel, e os desenvolvimentos dramáticos, potencialmente catastróficos, políticos e outros, que isso desencadeou. 

Não incluir esses desenvolvimentos na minha atualização teria sido absurdo, mas fazê-lo seria muito problemático, e eu decidi não tentar. No entanto, acredito que o prólogo e o epílogo da nova edição abortada permanecem válidos e relevantes por si só. 

Aqui estão eles, inalterados, exceto por 13 palavras adicionais - “e Israel está fazendo um trabalho e tanto nisso em Gaza agora” - no último parágrafo. 

Nota do editor: O seguinte foi escrito antes de 7 de outubro de 2023.

PRÓLOGO 

"Viveremos sempre pela espada?" 
Levi Eshkol, então primeiro-ministro de Israel, dirigindo-se aos membros pró-guerra de seu gabinete em 28 de maio de 1967. 

"Sim." 
– Primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, falando ao comitê de assuntos estrangeiros e defesa do Knesset em 26 de outubro de 2015. 

No final da década de 1960, um agente literário me pediu um livro sobre um novo desenvolvimento importante no que já era classificado como um dos conflitos mais longos e perigosos do mundo, este entre árabes e judeus no Oriente Médio. 

Esse desenvolvimento foi a ascensão do movimento de “resistência” palestino, na forma do Fatah de Yasser Arafat e uma série de outras organizações menores, cujos remanescentes continuam operando, em formas muito reduzidas e decadentes, até hoje. 

Eles se consideravam combatentes pela liberdade, determinados a realizar o “retorno”, através da “luta armada”, à sua terra natal ancestral, a Palestina. Os israelenses os chamavam de “terroristas” determinados a “destruir” seu estado recém-nascido. E, de fato, “terroristas”, em grande parte do que faziam, claramente eram. 

Foi com um dos feitos terroristas mais sensacionais e de alta visibilidade de todos os tempos, a tomada de reféns e o assassinato de 11 atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique em 1972, que eles chocaram o mundo - e reforçaram uma ortodoxia ocidental quase universalmente dominante: que, neste conflito, os israelenses eram os justos, enquanto os palestinos e árabes, eram os injustos. 

Essa era a Violência do meu subtítulo. Suas Raízes, no entanto, estavam principalmente na violência do outro lado. 

Narrar tudo isso me levou desde os primeiros e fracos tremores premonitórios na década de 1880 - passando pelos crescentes conflitos entre camponeses palestinos e os recém-chegados colonos judeus do início dos anos 1900; as agitações intercomunitárias dos anos 1920; as campanhas terroristas das décadas de 1930 e 1940, colocando árabes contra judeus, mas, com muito mais efeito, judeus contra árabes e autoridades britânicas do Mandato; e a expulsão da maior parte da população palestina em 1947-48 - até as sucessivas convulsões sísmicas de quatro guerras árabe-israelenses em grande escala nos primeiros 25 anos de existência de Israel. 

PRIMEIRA ATUALIZAÇÃO: 1976-1983 

Esse período de sete anos viu o primeiro acordo de paz do Oriente Médio entre Israel e seu vizinho mais poderoso, o Egito, em 1979, seguido pela invasão de Israel ao seu vizinho mais fraco, o Líbano, em 1982, e a expulsão dos guerrilheiros de Arafat do território libanês. 

Também viu o que posteriormente veio a ser conhecido no Oriente Médio - assim como Bergen-Belsen ou Babi Yar na Europa - como “Sabra e Shatila”, o massacre genocida que a Falange, uma milícia cristã libanesa, sob o controle de Israel e bem debaixo do nariz de seu exército, impôs às mulheres, crianças e aos homens mais velhos que os guerrilheiros em retirada haviam deixado para trás, totalmente indefesos, nos campos de refugiados em Beirute que tinham esse nome. 

SEGUNDA ATUALIZAÇÃO: 1984-2002 

Este período abrangeu a primeira intifada, ou revolta, não-violenta, organizada pelos habitantes da Cisjordânia ocupada e Gaza, que Yitzhak Rabin, que seria primeiro-ministro em 1992-1995, instruiu seu exército a reprimir “quebrando seus ossos” - com médicos presentes para garantir que nenhum dano “irreversível” fosse causado nas quebras. 

Também incluiu a promessa pública e penitencial de Arafat de “renunciar ao terrorismo”, que não foi correspondida por qualquer propensão israelense recíproca, muito menos uma promessa, de reduzir sua própria violência “defensiva” vastamente desproporcional. 

Além disso, este período abrangeu os Acordos de Oslo, o avanço diplomático que deveria levar, através da retirada israelense dos territórios ocupados, a uma solução final de “dois estados” para o conflito. 

Mas isso nunca aconteceria, nem poderia acontecer, pois os colonos recorreram à violência e ao terror, contra outros israelenses e palestinos, para protestar e frustrar os planos - um deles sendo o assassino de Rabin, o “traidor” de Oslo, e outro o médico israelense-estadunidense, Baruch Goldstein, que metralhou até a morte 29 muçulmanos na Mesquita de Abraão em Hebron. A reverência dos israelenses por ele não foi nada inferior, em sua amplitude e intensidade nacional, àquela que os palestinos conferiam habitualmente a seus terroristas e “mártires”. 

Esse período também viu a ascensão do Hamas, o rival islamista de um Fatah agora não-violento, e a primeira grande onda de atentados suicidas que se tornou sua especialidade macabra; e a eclosão da violenta segunda intifada, que o general Ariel Sharon, a encarnação da violência extrema israelense, havia buscado deliberadamente provocar para poder esmagá-la completamente - e, no processo, sabotar qualquer perspectiva de paz que Oslo oferecia. 

TERCEIRA ATUALIZAÇÃO: 2003-2023 

Este período começou com um "primeiro" espetacular na história da violência de Israel: fazer com que outros a administrassem onde se sentia incapaz de fazê-lo sozinho. Tal foi a Guerra do Iraque. 

Nenhum soldado israelense participou da Guerra do Iraque. Mesmo assim, amplamente, e até principalmente, em nome de Israel, senão a seu pedido, que em março de 2003, os Estados Unidos (e seu aliado britânico) invadiram e ocuparam aquela antiga terra árabe, para derrubar o regime e estabelecer um novo regime que fosse supostamente amigável aos Estados Unidos e possivelmente amigável a Israel. 

Este foi, talvez, o exemplo mais extraordinário do apoio histórico e quase servil de Washington a Israel – apoio que os próprios israelenses reconhecem como um dos dois pilares essenciais da existência, sobrevivência e destino ainda em desenvolvimento de seu próprio país no ambiente hostil do Oriente Médio que eles mesmos criaram; o outro, é claro, é a própria força militar de Israel – o tema central deste livro. 

A guerra foi um desastre, em graus variados, para todos os seus participantes. Mas não para Israel, que saboreou a destruição de um estado árabe potencialmente poderoso e hostil. Nem foi para o Irã, aquele outro, e ainda mais formidável, de seus inimigos “distantes”. Agora, Israel conspiraria, nos próximos anos, para se certificar de que os Estados Unidos também entrariam numa guerra contra o Irã, caso este chegasse perto de possuir armas nucleares que desafiaria seu próprio amplo arsenal de armas nucleares, não menos ilícitas e desonestamente adquiridas. 

Quanto aos outros inimigos “próximos” de Israel, pelos próximos 20 anos, um dos exércitos mais poderosos do mundo incorreram em vários problemas ao lidar com eles. Eles consistiam em vários atores não-estatais, o mais notável deles sendo o grupo palestino Hamas e o grupo libanês apoiado pelo Irã, Hezbollah, que tomaram para si a “resistência” contra o invasor sionista que todos os estados árabes, e até o Fatah de Arafat, abandonaram. 

Além de uma guerra bastante grande contra o Hezbollah em 2006, Israel travou uma série de “pequenas” guerras intermináveis em Gaza, a fortaleza do Hamas. Israel chama estas incursões de “cortar a grama”, como se a guerra fosse uma tarefa rotineira que nunca acaba – e como, de fato, não pode acabar para uma nação que, pelo menos de acordo com seu primeiro-ministro a mais tempo em serviço, Netanyahu, “sempre viverá pela espada”. 

Aqueles que vivem assim são - como diz o axioma - propensos a morrer por ela. Os predecessores dos israelenses no século XI, os cruzados, certamente morreram. E as semelhanças entre essa aventura épica da cristandade medieval e a de Sião de hoje são inescapáveis; não apenas em suas naturezas essenciais, objetivos e meios de alcançá-los, mas nas maneiras como seus conflitos com os estados e povos da região realmente se desenrolaram. 

“ANSIEDADE CRUZADA” 

Os israelenses em geral, indignadamente, rejeitam a acusação, padrão no mundo árabe e muçulmano, de que eles sejam os cruzados de nossos tempos. Mas eles o fazem apenas por motivos morais: sua causa, o retorno de um povo exilado e perseguido para sua pátria histórica, simplesmente não aceita comparação com as conquistas imperiais dos militantes medievais da igreja. 

Por razões óbvias, no entanto, eles se interessam muito no assunto e seu país se tornou um centro significativo de estudos sobre as Cruzadas. O que o acadêmico David Ohana chama de “Ansiedade Cruzada”, ou o “temor traumático oculto” de que “o projeto sionista” possa “acabar em destruição” total, como seus predecessores cristãos, tornou-se uma parte intrínseca da psique israelense – ou, pelo menos, daqueles que estão conscientes destes paralelos históricos críticos. E, ele aponta, o prospecto de uma bomba nuclear iraniana não contribui em nada para acalmar tais temores. 

Não menos importante dessas semelhanças tem sido a importância primordial, tanto para cruzados quanto para sionistas, dos dois fatores-chave mencionados acima: a capacidade militar e o apoio de potências estrangeiras.


Uma inscrição cruzada em árabe, encontrada em Tel Aviv, que carrega o nome de Frederico II, “Rei de Jerusalém”, datada de 1229 (AFP)

Quanto aos cruzados, pelos 192 anos de presença na Terra Santa, o apoio veio principalmente na forma de um suprimento aparentemente inesgotável de novos cruzados liderados por reis, príncipes e grandes barões da Europa Feudal. Quanto aos israelenses, vem, principalmente, do subsídio – uma profusão de armamentos, ajuda anual equivalente a um terço do que Washington dá para o mundo inteiro, diplomacia extremamente partidária – concedido pela superpotência estadunidense. 

Foi um declínio no apoio das potências, e não qualquer perda de capacidade militar, que acabou por afetar os cruzados. 

O mesmo pode acontecer com os israelenses. 

Mas, ironicamente, e diferentemente dos cruzados, é exatamente a primeira – sua violência – que, tanto quanto qualquer outra coisa, provocará este declínio. Pois sempre que, por exemplo, o exército israelense “corta a grama” em Gaza, repulsa é gerada no mundo todo acerca do que consiste esta grama – nunca são “terroristas” palestinos, mas homens não-combatentes, mulheres e, sobretudo, crianças, enterradas sob casas que foram reduzidas a pedacinhos. 

E essa é apenas a coisa mais periodicamente chocante; uma série de outras coisas questionam cada vez mais a integridade e a própria legitimidade do estado judeu.

EPÍLOGO 

“Nem um fio de cabelo de suas cabeças deve ser tocado.” 

Assim disse Chaim Weizmann, o grande estadista do início do sionismo, após seu triunfo diplomático, a Declaração Balfour, que ele conjurou do governo da Grã-Bretanha em novembro de 1917. Ele estava falando dos árabes que habitavam a Palestina, sobre cujo território o “lar nacional do povo judeu” deveria ser construído sem que “prejudicasse” estas “comunidades não-judias”. 

E ele estava “certo”, disse mais tarde, “que o mundo julgaria o estado judeu pelo que ele viesse a fazer com os árabes”. 

Mas, notadamente, em seu discurso para a Conferência de Paz de Paris de 1919, ele não tentou explicar como, exatamente, esta transformação da Palestina em “tão judia quanto a Inglaterra é inglesa” – como ele descreveu o projeto sionista – poderia ser alcançada sem prejudicar um fio de cabelo da cabeça de ninguém. 

Um participante famoso e mais qualificado da conferência não teria ficado impressionado, se estivesse presente; Coronel T.E. Lawrence, conhecido como Lawrence da Arábia, já havia adivinhado, ao se encontrar com Weizmann pessoalmente, que o que ele realmente queria era uma “Palestina completamente judia” em 50 anos – o que, com a ajuda do Holocausto, ele obteria em apenas 30. 

Inevitavelmente, então, qualquer história objetiva do sionismo dificilmente poderia ser outra coisa que não uma história também do enorme dano que - seguindo quase exatamente os passos dos cruzados - viria a recair, não apenas sobre os habitantes da Palestina, mas sobre outros povos e estados da região. 

Mas ao fazê-lo, e ao contrário das expectativas de Weizmann, o mundo não “julgou”, muito menos castigou, Israel – ou não, isto é, partes dele, essencialmente os EUA e o Ocidente, cujo julgamento importava. 

O PECADO ORIGINAL 

Considere o primeiro, mais formativo, fatídico e notoriamente ato cruzadístico de Israel – seu “pecado original”, ao qual deve sua própria existência. 

Em 1099, o Reino Cristão de Jerusalém surgiu sobre os escombros de um dos “maiores crimes da história”, o massacre de toda a população muçulmana e judia da cidade sagrada. Oito séculos e meio depois, em 1947-48, Israel nascia através de um “crime contra a humanidade” similarmente massivo; ou, pelo menos, se o artigo da lei internacional acerca deste crime estivesse em vigor na época, e se houvesse vontade de invocá-lo, esta com certeza seria a forma com que a Nakba (Catástrofe) palestina – a limpeza étnica e expulsão, através da força, do terror e de atrocidades, daquelas “comunidades não-judias” – seria julgada. 

Essa vontade não existia, nem por parte dos públicos ocidentais, nem por parte de seus governos. Menos ainda de Washington. Pois era nos Estados Unidos que o sentimento pro-judeu/israelense era mais forte, em meio à celebração generalizada do “nobre sonho” (como Abraham Licoln o chamou) tornado realidade. 

Lá, também, políticos – e jornalistas e acadêmicos – corriam o risco da ira punitiva, que às vezes ameaçava carreiras, de uma instituição já formidável, o lobby de Israel, caso se afastassem demais desta ortodoxia celebrativa. Um que o fez, mas foi crucificado por isso, foi Dorothy Thompson, talvez a mais famosa e admirada jornalista estadunidense de seu tempo; ela chamou o estado recém-nascido de “receita para uma guerra perpétua”. 

E então, como os cruzados, isso se provaria. A cavalaria da cristandade medieval passou 192 anos realizando uma batalha mais ou menos contínua contra este ou aquele reino ou sultanato de um Oriente Médio árabe-muçulmano – então tão internamente rebelde e fraturado como hoje – até que, perdendo o apoio ocidental, acabaram sendo literalmente lançados ao mar. 

Os israelenses têm feito isso, de forma parecida, há cerca de 75 anos agora, no que sua doutrina militar oficial define como “guerras” e “campanhas entre guerras”. 

CONQUISTA E EXPANSÃO 

Para começar – tanto para os cruzados quanto para os israelenses – tais guerras eram, principalmente, guerras de conquista e expansão territorial. 

Assim que Balduíno de Bouillon foi coroado como primeiro rei de Jerusalém, no Natal de 1100, começou a ampliar seu diminuto reino – e este acabou abrangendo a integridade do que hoje é a Palestina, partes da Síria, Jordânia e Líbano. O reino se cercou com formidáveis fortificações fronteiriças e assentamentos agro-militares, esboços do que viria a ser os grandes “muros” fronteiriços de Israel e seus kibbutzim agro-militares. 

David Ben Gurion, o primeiro primeiro-ministro de Israel, também era inclinado à expansão – para realizá-la, uma vez disse, não através da “moralização” ou de “sermões no monte”, mas através das “metralhadoras que precisaremos”. 

Diferentemente de seus predecessores medievais, inocentes de quaisquer sutilezas como as regras ou as éticas da guerra, ele não podia simplesmente invadir e conquistar um país vizinho à vontade. Sua nação era, no fim das contas, “amante da paz”, que apenas recentemente tinha assegurado a sua admissão bastante controversa nas Nações Unidas com base num compromisso solene nesse sentido. 

Tampouco tal ação teria sido adequada ao estado supremamente moral e democrático, e “luz para as nações”, que ele disse ao mundo que ele estava construindo; e que grande parte desse mundo, notavelmente os liberais e a esquerda, já tinha levado a sério, devido, entre outras coisas, aos seus ideais socialistas “inspiradores” e aos kibbutzim em seu cerne. 

Ben Gurion e seus sucessores ansiavam que os outros os atacassem. Enquanto isso, tudo o que eles podiam fazer era esperar – os buscar construir – oportunidades para atacar os outros primeiro; oportunidades que, crucialmente, os permitiria a fazê-lo sob o pretexto de legítima “autodefesa”. 

O pretexto perfeito finalmente chegou em junho de 1967, quando, em resposta a insultos e provocações de sua parte, exércitos árabes começaram a convergir em Israel em meio a um clamor tolo e temível de retórica belicosa. Por um momento, o mundo tremeu em nome de Israel: este se tornaria o local de um segundo Holocausto 25 anos após o primeiro? 

De jeito nenhum, é claro. Como previsto – e há muito preparado para – o icônico general de um olho só, Moshe Dayan, e outros discípulos do mestre, imediatamente cuidaram disso. Na Guerra dos Seis Dias de 1967, eles alcançaram de uma só vez os objetivos territoriais e estratégicos quase idênticos que o Rei Balduíno tinha levado 20 anos para realizar oito séculos antes – além da conquista de todo o Sinai. Eles também precipitaram uma pequena Nakba, outra grande onda de refugiados palestinos. 

O mundo também não julgou Israel por isso. Pelo contrário, elevou o “queridinho do Ocidente” a níveis sem precedentes de prestígio e popularidade. 

JULGANDO A EMPREITADA SIONISTA 

E com isso – tal qual os cruzados – os israelenses se encontraram presidindo uma população indígena, composta daqueles que eles não mataram ou expulsaram, tão numerosos quanto eles mesmos. 

Historiadores das Cruzadas raramente falham em citam o viajante muçulmano do século XII Ibn Jubayr e sua descrição de uma comunidade muçulmana que “lamenta a injustiça de um senhor de terras de mesma fé e aplaude a conduta de seu oponente e inimigo, o senhor de terras franco e está acostumado com a justiça vinda dele”. 

Pois esta é, talvez, a prova ocular sobrevivente mais credível de que, por mais bárbaros que fossem em batalha, os cruzados talvez não fossem tão ruins no exercício do governo – ou não, pelo menos, em relação aos costumes reconhecidamente nada exigentes da época. 

O mesmo, ou melhor, poderia ser dito dos israelenses acerca de sua conquista contemporânea e sua ocupação da Cisjordânia e de Gaza? Objetivamente falando, não poderia – ainda assim, em geral, era. Pois a ocupação deles, sustentam os israelenses, foi a “ocupação mais benevolente da história”, e um mundo ainda apaixonado estava pouco disposto a fazer questionamentos. 

Então, quando é que aconteceu aquilo que poderia ser apropriadamente descrito como o primeiro - e verdadeiramente condenatório - “julgamento” do mundo sobre a empreitada sionista que durante tanto tempo, e acriticamente, abraçou? Pois bem, como Weizmann previra, acabou por acontecer - embora várias décadas depois do previsto. 

Surgiu, muito apropriadamente, no contexto das características mais características do conflito, semelhantes às das Cruzadas: a sua violência perpétua. 

Vender a sua violência contra a dos palestinos como equivalente ao bem versus o mal absoluto há muito que trouxe a Israel um certo crédito adicional aos olhos de um público ocidental já tão apaixonado em seu favor. 

Os “terroristas” palestinos eram simplesmente “assassinos fanáticos dedicados a matar judeus”; o exército de Israel – que, consequentemente, passou a se autodeterminar como o “mais moral do mundo” – ultrapassou todos os outros em sua preocupação com a vida de civis inocentes. 

Mas durante sua invasão ao Líbano em 1982, Israel destruiu irremediavelmente esta contenda já desgastada. Quando Sharon, como ministro da defesa, soltou a milícia cristã daquele país, a Falange, nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila, ele não apenas sabia muito bem o que ia ocorrer ali, mas também desprezou os apelos dos diplomatas estadunidenses, que obviamente também sabiam, para interrompê-la até que o trabalho genocida estivesse concluído. 

DESENCANTO OCIDENTAL 

Praticamente o mundo inteiro reagiu com diferentes graus de choque, ou com a tristeza chorosa de um professor israelense de 80 anos, que imediatamente discerniu nisso uma cópia carbono de Babi Yar, o gueto no qual 'os nazistas enviaram os ucranianos para massacrar os judeus'. Em nenhum lugar, disse o correspondente em Washington do Jerusalem Post, Israel causou mais danos a si mesmo do que nos EUA, seu amigo, aliado e benfeitor extraordinário. 

Sabra e Shatila, e toda a desventura militar no Líbano – o Vietnam de Israel, do qual foi o clímax horrível – foi o primeiro grande sinal apontando para o que se tornaria o longo e lento processo de desencanto ocidental com seu “belo Israel” de antigamente. 

E isto acabou por colocar Israel em perigo, da mesma forma que um processo semelhante em toda a cristandade medieval tinha outrora a colocado em perigo - e finalmente desfeito - o Reino Cristão de Jerusalém. 

O Papado, a coisa mais próxima de uma superpotência de sua época, primeiro pregou a guerra santa pela libertação da Terra Santa do governo infiel muçulmano e, então, pouco mais de dois séculos depois, patrocinou ou inspirou campanhas sobre campanhas com esta finalidade. 

Embora, ao contrário das Cruzadas, o Sionismo fosse de origem autógena, foram essencialmente as grandes potências da época, primeiro o Reino Unido e então os Estados Unidos que permitiram sua implantação na terra dos outros, juntamente ao consequente crescimento, maturação e sobrevivência contínua no ambiente hostil criado por Israel e seus aliados. 

Não foi por questões morais, ira ou remorso sobre as condutas nada cristãs de seus “soldados de Cristo” que o Papado finalmente se cansou de toda a empreitada messiânica. Parece ter sido pouco perturbado, se é que o foi, pela sua grande atrocidade inaugural, o Genocídio de Jerusalém - ou por outras posteriores, menores, como a execução em massa de cerca de 2.700 prisioneiros de guerra muçulmanos por Ricardo Coração de Leão. Foi simplesmente por voltar sua atenção à nova e mais prementes preocupações próximas de casa. 

O mundo do século XX, com seus “valores” do século XX, dificilmente, com toda honestidade, se perturbaria com as similares – talvez não tão terríveis – coisas que os sucessores dos cruzados no século XX fizeram e continuam a fazer para conquistar seu sonho bastante similar. 

Respeito, devoção, solicitude – estes, genuínos ou supostos, Israel ainda comandava em muitos setores, particularmente nos governamentais e oficiais. Mas em muitos outros, e na sociedade em geral, tais sentimentos cediam constantemente aos seus opostos: à crítica, à censura ou à condenação total, e aos apelos à ação punitiva, como as sanções, o embargo de armas e o boicote económico que derrubaram o regime do apartheid na África do Sul. 

VIVENDO PELA ESPADA 

Os israelenses agruparam tudo isso sob o título de “deslegitimação”. E, para eles, a deslegitimação representava, em última análise, uma ameaça existencial – uma ameaça não menos séria, de acordo com Netanyahu, que um Irã armado com bombas nucleares ou os mísseis do Hamas e do Hezbollah. 

Por que? Porque se Israel é um estado condenado a viver perpetuamente pela espada, como Netanyahu disse que era, então não poderá moldar, manter e manejar eficazmente essa espada sem o apoio e a boa vontade de Washington e do Ocidente, tal qual os cruzados não puderam fazer sem o apoio do Papado e da Cristandade Medieval. 

Portanto, os Estados Unidos eram obrigado, por lei, a mantê-lo continuamente munido com todo “meio militar superior” possível para “derrotar qualquer ameaça militar de qualquer estado individual ou potencial coalizão de estados”. 

As armas em si eram apenas uma coisa; outra foi a utilização que Israel lhes deu e que, por mais ilegal que seja na intenção ou criminosa na execução, sempre se poderia confiar que os EUA os apoiariam ou tolerariam. 

Assim, automaticamente, roboticamente, lançou o seu veto contra qualquer resolução, que foram dezenas ao longo dos anos, minimamente críticas a Israel na ONU – o mesmo corpo ao qual, virtualmente único entre as nações, efetivamente devia sua própria criação – e com isso, claro, a “legitimidade” de que, lamentava agora, o mundo procurava privá-lo. 

Sem dúvida continuaria a fazê-lo, com intensidade cada vez maior. Por cada vez que o “exército mais moral do mundo” enterrou mulheres e crianças – juntamente, por vezes, com um ou dois “terroristas” reais – debaixo de casas em Gaza; cada vez que um político ou rabino importante fazia algum comentário extremamente racista ou horripilante sobre árabes ou palestinos; sempre que os colonos religiosos embarcavam num “pogrom”, numa campanha de arrancamento de oliveiras, ou numa tentativa de incendiar uma cidade árabe inteira, rezando enquanto o faziam, a pressão aumentava.


Manifestantes pró-palestinos marcham com um recorte de papelão representando o presidente dos EUA, Joe Biden, em Istambul, em 1º de junho de 2024 (AFP)

De fato, toda vez que algum incendiário religioso ou ultranacionalista subia ao al-Haram al-Sharif, o Nobre Santuário, local da Mesquita de Al-Aqsa e do Domo da Rocha, e deixava uma ou duas insinuações polêmicas sobre ressuscitar um antigo templo judeu em seu lugar - toda vez que essas coisas aconteciam, e o mundo ficava sabendo delas, o 'Estado judeu e democrático' se deslegitimava um pouco mais. 

Claramente, os seus amigos mais francos começaram a alertá-lo, o outrora “queridinho do Ocidente” arriscava tornar-se o seu “pária”, juntamente com países como o seu arqui-inimigo, a República Islâmica do Irã. 

“VALORES PARTILHADOS” 

Com notáveis exceções, era assim que as coisas estavam para grande parte do público ocidental no início da década de 2020. Isto era preocupante, mas ainda mais preocupante era a perspectiva de que os governos ocidentais, sendo democráticos, certamente, mais cedo ou mais tarde, dariam ouvidos aos seus públicos e agiriam para agradá-los. 

Ainda não havia, é verdade, muitos sinais premonitórios disso, e praticamente nenhum por parte do tão importante sinal estadunidense. Na verdade, não apenas isentas da influência da “deslegitimação”, as sucessivas administrações juntaram-se efetivamente a Israel na sua luta contra ela. 

Ainda recentemente, em julho de 2022, e em Jerusalém, o Presidente dos EUA, Joe Biden, comprometeu-se solenemente a “combater todos os esforços para… deslegitimar Israel”, dados os “valores partilhados” dos dois países e o seu “compromisso inabalável com a democracia”. 

Que Israel pudesse ser chamado de democracia era discutível. Uma verdadeira democracia abrangeria normalmente todos os habitantes do território que um Estado compreende, ou - como neste caso - reivindica. 

Mas de forma alguma a “democracia” de Israel se estendeu à vasta maioria dos palestinos, habitantes dos territórios ocupados, sobre os quais governou durante mais de meio século, ao mesmo tempo que discriminou a minoria deles que eram habitantes de Israel propriamente dito. 

Imagine, então, qual deve ter sido, ou certamente deveria ter sido, o constrangimento e a consternação em Washington, quando, apenas meses após a proclamação de Biden em Jerusalém, Netanyahu embarcou em um programa de 'reformas judiciais' que iria minar ainda mais essa democracia já duvidosa, ou destruí-la por completo. 

É verdade que estes supostos “valores partilhados” não eram a verdadeira, ou pelo menos a principal, razão para a indulgência ilimitada de Washington para com a sua “nação favorita”. Aquilo - como Ilhan Omar, a jovem iconoclasta muçulmana e congressista de Minnesota nascida na Somália, tão sucintamente disse - eram “os Benjamins, querido”. 

Omar estava se referindo à nota de 100 dólares, que exibe a imagem de Benjamin Franklin, um dos 'pais fundadores' dos EUA - dólares sendo a principal 'moeda', tanto literalmente quanto figurativamente falando, esbanjados pelo lobby e seus amigos super-ricos na subornação dos grandes e bons de Washington em nome de Israel. 

Seja qual for o motivo, fez pouca diferença. A coisa extraordinária era que, neste ataque demolidor de democracia, um primeiro-ministro israelense estava efetivamente despojando um presidente americano de praticamente sua última justificativa remanescente e ostensivamente baseada em princípios para o histórico de seu país, mas - como árabes e palestinos, não sem razão, veem - manifestamente sem princípios e politicamente oportunista, viés em favor de Israel. 

E, em qualquer caso, quer Israel ainda fosse uma espécie de democracia ou não, isso pouco contava agora em comparação com o que, de outras formas, também era, ou estava em vias de se tornar. 

“GUERREIROS DE DEUS” 

É uma etnocracia, há muito tempo embarcada em uma forma de apartheid que - como visitantes da África do Sul, como o falecido Arcebispo Desmond Tutu, o campeão anti-apartheid, que chamou os "paralelos com minha própria querida África do Sul... dolorosamente nítidos" sempre testificaram - é tão ruim, senão pior do que o que costumava ser o deles. 

Está gradualmente assumindo os atributos de uma teocracia, com rabinos, muitas vezes dos mais preconceituosos e reacionários, ganhando tanta influência nos assuntos da nação que, aos olhos dos secularistas ansiosos, que agora habitualmente se referem a esse processo como a "iranização" de Israel, estava começando a parecer uma versão judaica do reino dos aiatolás. 

É um estado e uma sociedade mantidos reféns por um golem de sua própria criação, seus colonos religiosos - encarnações selvagens e estranhas de uma fusão entre o nacionalismo de "sangue e solo" do século XIX no qual seus predecessores seculares estavam imersos, e o novo messianismo judaico militante deles próprios, que provavelmente exigirá uma guerra civil para contê-los. 

E, sim, em sua religiosidade crescente, o estado realmente está se parecendo cada vez mais com os próprios cruzados, seguindo-os não apenas em método - guerra perpétua - mas também em aspirações, com uma em particular que exemplificava a semelhança acima de todas as outras. 

Para aqueles antigos "guerreiros de Deus", a tarefa suprema, mais sagrada, era salvar o Santo Sepulcro - o local, os cristãos acreditam, da crucificação, sepultamento e ressurreição de Jesus - da "poluição" e das derrogações do Islã. 

Da mesma forma, para um número desconhecido, mas crescente de seus sucessores israelenses - e não apenas os religiosos - o retorno a Sião não será completo até que o Terceiro Templo se erga, ao lado de Al-Aqsa e do Domo da Rocha, ou em seu lugar, neste, o terceiro lugar mais sagrado do Islã; de fato similar - mas, é claro, se isso algum dia realmente acontecesse, também apocalipticamente. 

Então, o mundo, ao finalmente despertar para tudo o que seu protegido fez na terra e nos povos da região nos três quartos de século desde que Weizmann previu que "julgariam" Israel por isso - abandonará ou repudiará o estado, deixando-o à mercê do que o destino possa expô-lo? 

À luz dos "valores" modernos, os EUA e o Ocidente teriam bases muito mais fortes para fazê-lo do que o papado e a cristandade medieval uma vez tiveram para abandonar os cruzados por conta própria. 

Improvável, sem dúvida. Mas quanto mais Israel se "deslegitima" aos olhos do mundo – e Israel está fazendo um trabalho e tanto nisso agora, em Gaza - menos improvável se torna, e com isso, a possibilidade e o cenário de pesadelo de Ohana, o estudioso dos cruzados, de que seu destino venha a se assemelhar ao dos próprios cruzados. Não sendo empurrado para o mar, é claro, mas de alguma forma ou outra superado estrategicamente/militarmente/diplomaticamente.