“O ponto derradeiro da guerra é capturar ou matar ele [o rei], e quando jogando xadrez, alguém educadamente diz: ‘cuidado, Xá! Agora mova seu rei fora do meu caminho’.”

- Imam Al-Tartushi, grande jurista e teólogo andaluz.

No ano de 1509, o comandante de nau portuguesa Diego Lopez, que à época comandava a primeira expedição portuguesa à Málaca, estava jogando o conhecido jogo de xadrez com um de seus correligionários quando um javanês que adentrou a bordo imediatamente reconheceu o jogo, e se engajou numa discussão com o capitão sobre as formas das peças usadas e outras questões mais. Dois homens, dois povos, previamente totalmente desconhecidos entre si, unidos por um conceito. Um conceito de lazer.

O jogo de xadrez – um tabuleiro onde dois exércitos postos e opostos se enfrentam matemática e estrategicamente – talvez seja o jogo mais popular do mundo, juntamente do seu parente mais do que próximo, o jogo de damas. Difundido pelo mundo todo, da América ao Japão, passando pela Europa, pelo Irã e pela Índia, o xadrez é hoje alvo de campeonatos mundiais e disputadíssimos, que envolvem até mesmo polêmicas. Na realidade, não apenas hoje, pois no século passado deu-se a efetiva popularização das disputas desportivas de xadrez, na tumultuada época da Guerra Fria. De fato, tão prestigiada tornou-se a arte enxadrista que no tabuleiro preto e branco cujas peças representam exércitos medievais, opuseram-se dois países e duas ideologias tão opostas quanto o preto-e-branco do xadrez: Estados Unidos e União Soviética, Capitalismo e Comunismo. Como um jogo aparentemente tão simples – sendo, na realidade, complexo – tornou-se não apenas um enfrentamento simbólico entre duas potências metapolíticas, mas também popularizou-se na burguesia e aristocracia, desde a Idade Média até seu ápice nas eras vitoriana e pós-vitoriana como um “jogo de elites” ? Quais as origens do xadrez? O que tem a ver o Islã com ele e qual sua posição? É o que iremos ver neste texto.

A pala “Xadrez” é um aportuguesamento, uma adaptação lusófona da palavra árabe Xatranj ou Shatranj, que por sua vez vem, via persa Chatrang, do sânscrito Chatarunga, cujo significado aproximado seria algo como “Forças Armadas”, se fomos traduzir para um sentido ocidental; isto ocorre pois chata provém de chatur, cujo significado é “quatro” ou “quarto” (no sentido numérico), com ranga significando “braços” ou “braços armados”. Ou seja, é, como comum no sânscrito, uma palavra um tanto quanto simbólica e poética para o conceito de um Exército completo. Um exército assim, à época, consistia das seguintes unidades básicas: carruagens, cavalaria, elefantes, infantaria e seus líderes – o Rajah e aquele que poderia tornar-se mantri caso chegasse ao final do tabuleiro (falaremos disso mais a frente). Em virtude disso, sugere-se que o jogo de xadrez teve a sua origem a partir de um jogo mais arcaico que os indianos jogavam, mas a situação não nos é tão clara assim.

A nível arqueológico, as peças mais antigas do jogo feitas em marfim datam do século VII. Ásia Central, entre o Irã oriental, o Afeganistão, Paquistão e os restantes países ligados ao Império Sassânida (224 d.C. a 651). As evidências arqueológicas, e até mesmo documentais, de fato, colocam a gênese do chatrang em algum lugar entre a Ásia Central e a Pérsia, com recentes descobertas do século VII tendo sido desenterradas perto da cidade uzbeque de Sarmacanda – um grande centro do mundo islâmico –. Tais escavações desenterraram versões primitivas, apesar de semelhantes, das atuais peças do jogo de xadrez. Eram 7 figuras talhadas que se assemelhavam às tardiamente referidas peças de chatrang, constituindo-se de: Shah (Rei), substituindo o Rajah indiano; farzin (conselheiro), substituíndo o mantri indiano; e, assim como nas possíveis versões indianas, elefante, cavalo, biga e peão. Tais fontes onde as mesmas peças são descritas começaram com um épico do século VII, também, que configura a primeira referência literária ao chatrang persa: Karnamak-i Artaxshir-i Papakan (Os Feitos de Ardashir, filho de Papak), com o protagonista sendo um grande enxadrista.

Como podemos ver, se realmente o xadrez surgiu na Índia, fato é que ao passar para terras persas ele sofreu algumas modificações, a mais significativa delas encarnada na figura do “Conselheiro”. Tal posto, o de farzin, diferenciava-se, no chatrang, do wazir (Vizir/Ministro) por ser um cargo único (enquanto haviam vários vizires), portanto, especial. O farzin nos parece ser uma evolução adaptativa do mantri indiano, que tanto já falamos. Afinal, o que era ele? O mantri era nada mais nada menos que um cargo militar que a peça de um peão comum adquiria ao chegar do outro lado do tabuleiro, isto é, em outras palavras, simbolicamente falando, tornar-se mantri era uma recompensa ao soldado comum por sua bravura ao adentrar no território inimigo. Essa “regra” do xadrez perdurou durante muito tempo enquanto o xadrez se espalhava pelo mundo islâmico, perdendo tal característica após o valor da peça ser transmutado, como veremos mais à frente.

Com a conquista do Império Sassânida no mesmo século das evidências supracitadas pelas forças islamo-árabe entre 633 e 654, o xadrez então teria grande ascensão social e territorial. O chatrang se tornou xatranj, o Shah continuou sendo Shah, mas o farzin tornou-se firz, o asb (cavalo) tornou-se faras, o pil (elefante) virou fil, enquanto mantiveram-se as nomenclaturas wazir (ministro) e rukh (carruagem).

Sob a égide do Islã, pode-se dizer que o xadrez, de fato, prosperou, apesar de uma recepção inicial um tanto quanto avessa que resultou na sua proibição e condenação por líderes políticos e religiosos em várias instâncias, como veremos mais à frente. Todavia, mesmo com uma falta de amistosidade inicial, o xadrez logo popularizou-se por todo o mundo árabe e não-árabe – o mundo islâmico, para ser direto –.

Durante a Dinastia dos Abássidas (750–1258 /1261–1517) que Bagdá foi fundada e que se iniciou de fato a chamada Era de Ouro do Islã. Não demorou muito para Bagdá tornar-se um grande centro urbano, destacando-se entre o hall das maiores e mais ricas cidades da época. Os Abássidas levaram seu Império – com Bagdá na posição dianteira – a ser um parágone de desenvolvimento em todas as áreas, desde engenharia pública até patrocínio de ciências e acadêmicos: ciência, matemática, geografia, astronomia, agricultura, medicina, sufismo, tafsires.

Foi durante esse período de florescimento que o xatranj floresceu junto e alcançou grande prestígio, com ecos das atuais competições, uma vez que jogadores da Pérsia e Ásia Central iam até Bagdá e a Corte Abássida para competirem, exibirem-se e procurar patrocínio. O xatranj era jogado pela nobreza e até mesmo por Califas, que muitas vezes eram ávidos jogadores. É dito que o Califa Harun al-Rashid dos Abássidas certa vez fez uma partida com o Imperador Bizantino Nicéforo por volta do século IX. É também dito sobre seu filho e sucessor, al-Amin (809-813), que durante o cerco de Bagdá pelas forças de seu meio-irmão, al-Mamun, um mensageiro foi até o Califa, que tranquilamente jogava xadrez, que não era a hora para jogar xadrez; al-Amin disse ao mensageiro, então, para esperar, pois estava a apenas a alguns movimentos de fazer xeque-mate em seu oponente. Ele logo perderia a batalha, seria morto e al-Mamun assumiria como Califa. A própria palavra ‘xeque-mate’ vem do árabe shah-mat, “o Rei está morto”, agora servia para designar o destino de al-Amin.

Esse mesmo al-Mamun, já entronizado como Califa, certa vez comprou uma escrava por um preço elevado, devido aos dotes dessa mulher no jogo de xadrez. Isso abre precedente para outra pouca explorada faceta do enxadrismo medieval islâmico: as mulheres enxadristas. Ali ibn Hussein, um bisneto do Profeta Muhammad (sas) tinha um costume de jogar com a sua própria esposa. Alguns contos também relatam histórias de mulheres com perícia para o jogo, como por exemplo, em As Mil e Uma Noites, onde o príncipe árabe Sharkan joga xadrez com a princesa cristã Abriza, valendo no jogo a conversão do outro. A história termina com a vitória de Sharkan e a conversão da princesa ao Islã.

A ciência (ou arte) enxadrista também se desenvolveu com as ciências humanas e naturais em Bagdá. Até chegam relatos de muitos enxadristas famosos e de eletrizantes jogos. Os mais famosos deles são al-Lailaj e al-Suli, ambos vivos no décimo século, com al-Suli já tendo enfrentado o próprio Califa al-Nuktandi. Deles e de muitas outras coisas somos informados por uma obra do século XII intitulada Kitab al-Shatranj (“O Livro de Xadrez”), tais como movimentos utilizados na época, com curiosos nomes, como a pedra do Faraó, a torrente e o estandarte do escravo. Também nos é dada uma visão diferente de como era levada uma partida de xadrez “profissional” na época. Diferentemente da “monotomia” e silenciosidade dos dias de hoje, nas partidas do Califado Abássida os jogadores estimulavam os espectadores a darem pitaco, a participarem e, acima de tudo, a torcerem.

Do Levante, por volta do ano 700 em diante, o xatranj espalhou-se por todo o mundo islâmico conforme o próprio Islã avançava. Notadamente passando pelo Egito, Ifriqya e Magrebe, chegou até então à frontei mais ao norte do Islã até então, Al-Andalus. Embora não se tenha o conhecimento preciso da data de chegada do xatranj à Península Ibérica, diversos autores remetem para a época do Emiradode Córdoba, sobretudo para uma figura muito importante na cultura da época, Ziryab (789-857), músico de origem persa e tocador de alaúde na corte do já citado Califa Harun al-Rashid. A grande difusão do jogo na Europa surge, assim, a partir do século IX através dos árabes e teve um papel importante na Espanha muçulmana, sobretudo nas relações entre muçulmanos e cristãos. No al-Andalus, o jogo teve a sua implantação, difusão eainda mais desenvolvimento, sendo certa a sua existência desde o século IX.

No al-Andalus, também ficou popular, em especial entre a nobreza do período das Taifas. O xadrez andaluzo, no entanto, não se limitou aos muçulmanos ou nobres: expandiu-se por toda a sociedade, não importante credo ou posição social; andaluzos e moçárabes jogavam uns contra os outros e contra berberes e árabes, e, também, contra os judeus, que aliás tiveram parte importante na conservação e transmissão das regras do jogo à Europa Cristã, como aquelas escritas pelo Rabino de Tudela (um grande reduto judaico) Abraham ibn Ezrah (1089/92 – 1167), um importante filósofo, poeta e astrônomo.

Tal tornou-se a popularidade do xadrez na Península Ibérica que logo os cristãos dos reinos do Norte da Penínula estavam jogando também, com peças diferenciadas por forma e nome: cavalos e torres tomaram forma, os ministros tornaram-se bispos e o al-firz, tornou-se o(a) Alfarze, mantendo as mesmas funções. No futuro, com o passar dos séculos e conforme o xadraz se expandia pela Europa via outras rotas, também, o alfarze viria a ser substituído pela figura da Rainha, uma substituição interessante se contarmos que a Rainha é a peça mais poderosa do jogo, mais que o próprio Rei, e uma sociedade um tanto quanto preconceituosa poderia ter ressalvas quanto a isto. Uma das teorias da aceitação e substituição foi que a figura de uma “rainha forte” ganhou forma e destaque com Isabel de Castela. Por outro lado, podemos estranhar bispos no campo de batalha, uma vez que estes, como sacerdotes, deveria estar entregues ao ofício da paz e do acordo; no entanto, nem sempre foi bem assim, uma vez que na Idade Média é sabido que muitos bispos, poderosos detentores de terra e membros da corte iam à batalha e comandavam tropas em períodos de guerra, muitas vezes liderando um exército pessoal próprio.

Conta-se que, certa vez no período das Taifas, durante o reinado do rei-poeta al-Mu’tamid, o exército de Afonso VI de Castela marchou contra i Sul da Penínula, ameaçando as posições andaluzas. O vizir de al-Mu’tamid, Ibn ‘Ammar, também ele poeta e seu amigo, teve uma ideia que poderia impedir os avanços do rei cristão. Ibn ‘Ammar era um excelente jogador de xadrez e sabia que o rei também apreciava o referido jogo. Então, mandou construir um tabuleiro de jogo com peças de extrema beleza incrustadas em ouro. Quando partiu para negociar com o exército castelhano, levou consigo o jogo e, sabendo desse fato, rei Afonso quis jogar com ele. Todavia, Ibn ‘Ammar apenas aceitaria jogar, caso o rei concordasse com a condição proposta: se ele perdesse, o rei ficaria com o jogo, se o rei perdesse, teria de assinar um acordo. Apesar de desconfiado, o rei acabou por concordar, e os dois começaram a partida, ecoando os recentes embates enxadristas entre americanos e soviéticos, uma verdadeira guerra fria do medievo! Todavia, Ibn ‘Ammar deu xeque-mate (al-shah mat) ao rei cristão. Este, apesar da cólera perante tal emboscada, assinou a proposta de retirar o seu exército da zona próxima de Sevilha e, assim, graças à astúcia de Ibn ‘Ammar e ao jogo de xadrez, os muçulmanos venceram as investidas cristãs e al-Mu’tamid continuou a governar a taifa de Sevilha.

O xadrez assentou-se nas mais diversas localidades, indo da Ibéria muçulmana em direção às Ilhas Britânicas e França, da Sicília islâmica e normanda em direção à Alemanha e até a Escandinávia via Leste Europeu, Constantinopla e estepes cáspias. Ele também se expandiu em direção ao Oriente, com os nômades da Ásia Central substituíndo o Elefante pelo Camelo, não raramente e, entre os tibetanos, o Leão e o Tigre substituíram o Rei e o Conselheiro, respectivamente.

O aspecto religioso

Como foi anteriormente citado, sabemos que a popularização do xadrez ou xatranj ocorreu lado-a-lado com a sua proibição e vista groça por alguns fuqahas (juristas) de escolas específicas. Como devem saber – mas se não souberem, saberão agora –, o Islã Sunita é dividido em 4 madhabs, ou escolas de jurisprudência: Maliki, Shafi’i, Hanbali e Hanafi, cada uma com suas visões particulares e ulemá própria para decidir e deliberar questões jurisprudenciais.

No início, o xatranj foi alvo de uma áspera recepção, especialmente pela escola Hanbali, conhecida por seu tradicionalismo. Para a grande maioria dos estudiosos e juristas hanbalitas, o jogo de xadrez era da mesma natureza que os jogos de azar, mesmo que não envolvesse apostas, sendo por isso considerado haram (proibido).

Por outro lado, a escola Hanafi o consideral o jogo grandemente desencorajado quando não envolve apostas, e totalmente haram quando as envolvesse. Seguindo quase essa mesma linha de raciocínio, a opinião da maioria dos membros da escola Shafi’i, como o próprio Imam al-Shafi’i e Imam al-Nawawi é de que xadrez é apenas makruh (desencorajado) quando não envolve apostas, sendo apenas haram quando as envolve.

Do outro lado, grande estudioso Said ibn al-Musaiyyb (642–715), conhecido por ser o mais eminente dos “Sete Fuqahas de Medina”, um tabae’em, isto é, um membro da primeira geração do Islã após o Profeta e os Sahabas, declarou o xatranj como totalmente permissível, contanto que não houvesse apostas envolvidas.

Conclusão

Como pudemos observar, existe uma história absolutamente vasta e curiosa que permeia a relação do Islã com o Xadrez. Ela é perpassada tanto pela questão da mobilidade social e hierárquica e da meritocracia – que no mundo islâmico era, de fato, uma realidade – que se encarna na figura do firz e, também, pelo conservadorismo social e religioso, aqui incorporado pela postura reacionária com relação ao jogo adotada por alguns juristas. O fato é que, apesar das proibições de um lado e acenos do outro, o xadrez conseguiu fazer seu caminho das florestas da Índia e das montanhas rochosas do Irã e do Khorasan para as nossas vidas diárias ocientais (ou não), mudando suas regras e suas formas com o tempo, mas nunca seu espírito que, apesar de representar a arte da guerra, muitas vezes serviu para evitá-la, tanto antigamente quanto recentemente.

Bibliografia

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  • STEWART, Gordon (2009). The Game of Kings. Muslim Heritage.
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