No círculo de grandes líderes e estrategistas da História mundial, sem dúvida um dos de maior destaque e prestígio é o francês Napoleão Bonaparte (1769 – 1821). Nascido na ilha francesa da Córsega de uma família nobre, Napoleão teve uma carreira militar meteórica durante os conflitos que se seguiram à Revolução Francesa em 1789, que depôs a monarquia e instaurou a república. Despontando como um líder corajoso da revolução, Napoleão assegurou a estabilidade da República e derrotou seus inimigos monarquistas estrangeiros, pavimentando o caminho para ele próprio se tornar Cônsul em 1799 e Imperador da França em 1804.

Poucos adversários seus conseguiriam alcançar a proeza de derrota-lo no campo de batalha ao longo de sua vida. Suas mais lembradas derrotas foram na campanha da Rússia em 1812 e na fatídica Batalha de Waterloo em 1815, onde foi derradeiramente derrotado pelos britânicos, liderado pelo Duque de Wellington. Napoleão, todavia, também sofreu uma outra derrota significativa muito antes destas, antes mesmo de se coroar Imperador da França, quando ainda era cônsul, numa campanha que, apesar de famosa por seus resultados culturais, tem sua parte militar pouco conhecida – em parte pois, para os franceses, ela terminou como um grande fracasso: a Campanha do Egito (1799 – 1801).

Essa grande derrota pouco comentada das forças republicanas francesas no Oriente Médio se deu, principalmente, por dois fatores, apesar da debilidade dos Mamelucos, a dinastia subordinada ao Império Otomano que ainda administrava o Egito à época: as dificuldades logísticas aliadas a problemas de estabilidade na França, em primeiro lugar e, em segundo, um nome: Ahmed Jazzar Pasha. As dificuldades logísticas poderiam ter sido superados, ocasionando uma vitória francesa sobre os otomanos não fosse a resistência efetiva de Jazzar Pasha aos assédios de Napoleão em seu avanço, e aqui veremos quem foi este homem, o primeiro a derrotar o grande general da Córsega, e como ele fez isso.

Embora sua data exata de nascimento seja incerta, acredita-se que Ahmed “Jazzar” (que era sua alcunha ganha durante seu futuro governo na Síria) tenha nascido por volta de 1722. Diferentemente do homem que derrotaria décadas à frente, Ahmed teve uma origem humilde: nasceu em Fatnica, um vilarejo localizado a cerca de 70 quilômetros da cidade histórica de Mostar, na atual Bósnia-Herzegovina, então parte do Império Otomano. Ele foi para Istambul e serviu sob o comando de Hekimoglu Ali Pasha, a quem seguiu para o Egito. Lá ele começou sua ascensão política e ganhou a reputação de um executor eficiente.

Desse modo, deixando sua terra natal como muitos outros jovens bósnios muçulmanos que entraram a serviço do Sultão, ele começou a construir sua carreira como uma espécie de "aventureiro" do estado no Egito. Inicialmente, ele conseguiu um emprego no Egito como pistoleiro contratado na casa de Bulutkapan Ali Beg na década de 1760, servindo como uma espécie de líder paramilitar a serviço do governo egípcio, à época ainda sob os Mamelucos, mas que eram oficialmente subordinados ao Sultão Otomano.

Nessa função, ele foi implacável com os beduínos do deserto da Líbia que estavam em rebelião durante o mandato de seu chefem, Ali Beg. Foram os beduínos que lhe deram o apelido, "Cezzar" ou seja, Jazzar, que significa "açougueiro", em 'virtude' de seus métodos brutais de execução de dezenas de tribos beduínas rebeldes e da sua extrema truculência.

No vácuo político que se seguiu à morte de Zahir el-Omer em 1775, o líder do clã árabe dos Ziyad que então dominou o que hoje é parte da Palestina, Líbano e Síria por quase meio século, Jazzar, através de sua lealdade e serviços a Ali Beg e aos otomanos, conseguiu a atenção do sultão Abdülhamid I (1774 – 1789), que o delegou a tarefa de reimpor a autoridade do sultão na cidade portuária de Acre, na Palestina. Em 1777, ele recebeu o título de governador da província libanesa de Sidon, que compreendia grande parte do que hoje é o Levante, e permaneceu nessa posição até sua morte.

Ahmad: o bosníaco muçulmano que viria a derrotar o futuro Imperador da França.

Enquanto a capital administrativa de Sidon Eyalet era nominalmente Sidon, Jazzar fez de Acre sua sede de poder. Parte da razão pela qual ele escolheu Acre como seu quartel-general foi que a cidadela da cidade lhe dava uma vantagem mais estratégica sobre Sidon. No seu período como governador de Sidon (ou “Sidônia”), Jazzar impôs um estilo de governo austero e bruto, porém extremamente eficiente. Com suas habilidades aprendidas a serviço de Ali Beg, ele derrotou clãs de rebeldes drusos no sul do Líbano e ajudou a estabelecer uma ordem pública estável no local, o que permitiu um um fluxo de impostos tranquilo para Istambul, recebendo então o título honorífico de Pasha adicionado a seu nome.

Jazzar Pasha entendeu bem que, para manter seu domínio político e militar na Síria, seu governo precisava de uma base econômica sólida, e o fez obtendo sua renda de vários meios, como impostos, comércio, pedágios e extorsão. Na década de 1780, ele expulsou comerciantes de algodão franceses do Acre e Jaffa. Suas melhorias no desenvolvimento agrícola e o aumento do comércio da Palestina reforçaram a prosperidade econômica de certos enclaves de território sob seu domínio, particularmente as cidades costeiras de Acre, Sidon e Beirute. Ele suprimiu com violência (e com sucesso) as tribos de beduínos saqueadores e assim aumentou a segurança e manteve a ordem em seus territórios através da disciplina e do medo.

Em uma descrição do governo de al-Jazzar no Acre, o cônsul francês Renaudot escreveu que Jazzar era "violento, levado por seu temperamento; embora não seja inacessível [ao povo] ... Ele às vezes é justo, grande e generoso, outras vezes furioso e sangrento."

Comentando sobre seu método de governo, o próprio Jazzar Pasha escreveu:

"Para governar o povo desta terra, ninguém pode ser muito severo. Mas se eu golpeio com uma mão, compenso com a outra. Foi assim que mantive por trinta anos, apesar de todos, a posse completa [da terra] entre o Orontes e o estuário do Jordão”.

Os relatos sobre o governo de Jazzar mostram que, apesar de sua fama de líder implacável e cruel, ele manteve um nível significativo de popularidade e familiaridade com os habitantes da região da Galileia e do Líbano, e frequentemente convidava os moradores mais pobres da cidade para ouvir suas queixas e até para consolá-los, sendo conhecido, também, por ser um governante justo e bondoso ao mesmo tempo. De acordo com algumas fontes, Jazzar teria distribuído "constantemente enormes potes de arroz em seu palácio para os desamparados e os velhos" e tinha "dinheiro distribuído a eles todas as semanas com a maior regularidade".

Jazzar Pasha governaria grande parte do Levante com um misto de eficiência, bondade e brutalidade.

No entanto, a justiça social e econômica não era a única preocupação de Jazzar. Sua tolerância religiosa e sua valorização à diversidade também são amplamente conhecidas pelos historiadores. No final do século XVIII, Jazzar contratou Haim Farhi, um judeu damasceno de uma família de banqueiros, para servir como seu gerente de tesouraria e consultor administrativo. A certa altura, contudo, Jazzar dispensou e prendeu Farhi e teve seu olho arrancado, orelhas e nariz cortados como punição por má conduta. Apesar disso, Farhi foi restaurado em sua posição mais tarde e seu papel no Acre tornou-se cada vez mais influente sob os sucessores de Jazzar.

Depois de se estabelecer no Acre, Jazzar designou um pequeno grupo de curdos comandados por um homem misterioso chamado Shaykh Taha, que era considerado pelos muçulmanos de Sidon como sendo um yazidi, uma religião secretiva e esotérica que se separou do Islã, sendo considerado também um “adorador do diabo”, para administrar a segurança interna. Com efeito, eles se tornaram responsáveis por administrar prisões e executar torturas e execuções de indivíduos, mostrando que até mesmo na parte não tão bonita de seu governo, Jazzar prezava a diversidade.

Além disso, Jazzar Pasha usou suas experiências e conhecimentos de sua carreira com os mamelucos do Egito para estabelecer o sistema mameluco de governo militar no Acre. Antes da dissolução de seu corpo mameluco em 1789, os mamelucos serviram como guarda-costas pessoais e conselheiros políticos de Jazzar, bem como seus administradores subordinados em outras cidades e áreas de seu reino. Jazzar tinha uma ligação emocional com seus mamelucos e quando seu primeiro mameluco, Salim Pasha al-Kabir, morreu de peste em 1786, é relatado que o bruto e cruel Jazzar "chorou como uma criança", segundo o cônsul francês no Acre.

Embora as autoridades de Istambul o temessem e acreditassem que seu objetivo final era estabelecer sua independência do império, como fez seu antigo mestre no Egito, Jazzar conseguiu assegurar o cargo de governador de Damasco em vários períodos diferentes, sua mais longa carreira em essa posição durou de 1790 a 1795.

Todavia, o ponto alto da carreira de Jazzar Pasha se daria na virada do século XVIII para o XIX: em 1798, o cônsul da República Francesa Napoleão Bonaparte liderou uma expedição-surpresa ao Egito (nem mesmo seus soldados sabiam para onde estavam indo, para preservar a operação da descoberta por espiões britânicos) para tentar lá estabelecer um protetorado e minar a influência britânica na Ásia, bem como tentar cooptar à força os Otomanos a se aliarem à República Francesa.

Em 1º de julho, a frota francesa liderada por Napoleão desembarcou no Egito, perto de Alexandria. Eles rapidamente conquistaram a importante cidade portuária e daí partiram para o Cairo, que também foi tomado pelas forças francesas, estabelecendo um governo provisório no Egito.

Na frente científica, a expedição acabou levando à descoberta da Pedra de Roseta, criando o campo da egiptologia. Apesar das primeiras vitórias e de uma expedição, como na Batalha das Pirâmides, a sorte da Armeé d’Oriént viria a mudar.

A Batalha das Pirâmides em 1798 foi o mais famoso engajamento militar de Napoleão no Egito.

Uma vez no poder, Napoleão tentou conquistar os corações e a lealdade dos egípcios posando como um muçulmano e dizendo que suas tropas francesas, que haviam atacado os Estados Papais tempos antes da campanha, também eram muçulmanas. Napoleão fez declarações abertas aos muçulmanos, rezou com eles e celebrou o Mawlid na-Nabawi, o aniversário do Profeta Muhammad (sas) na casa de importantes oficiais turcos e egípcios.

Em uma de suas declarações públicas, ele diz:

“[...] Ó qadis, sheykhs e imãs; digam à sua nação que os franceses são também muçulmanos fiéis e, em confirmação disso, invadiram Roma e destruíram a Sé Pontifícia, que sempre exortava os cristãos a guerrearem com o Islã. E então eles foram para a ilha de Malta, de onde eles expulsaram os Cavaleiros, que afirmavam que Deus, o Exaltado, exigia que eles lutassem contra os muçulmanos. Além disso, os franceses sempre se declararam os mais sinceros amigos do sultão otomano e inimigos de seus inimigos, que Deus perpetue seu império! E, ao contrário, os mamelucos negaram sua obediência ao sultão e não seguiram suas ordens. Na verdade, eles nunca obedeceram a nada além de sua própria ganância! Bênção sobre bênção aos egípcios que agirão de acordo conosco, sem qualquer atraso, pois sua condição será devidamente ajustada e sua posição elevada [...]”

Napoleão celebrando o aniversário do Profeta Muhammad, no Cairo.

Apesar de seus esforços, a propaganda napoleônica não surtiu muito efeito, com a enorme maioria dos egípcios permanecendo céticos – senão hostis – aos franceses, o que levou a uma revolta no Cairo incitada pelos mamelucos que ainda restavam, debilitando e ocupando o exército francês. Napoleão também sofreria um grande revés debilitante nas mãos da frota britânica na chamada Batalha do Nilo (1798), que praticamente destruiu sua frota, deixando os franceses aprisionados no Egito, sem uma clara e eficiente cadeia de logística.

Entretanto, o obstinado Napoleão e seus generais então trataram de prosseguir seu avanço contra os otomanos: após tomarem o Alto Egito, o exército prosseguiu para a Palestina, e coube a ninguém menos que Ahmed Jazzar Pasha se opor ao avanço francês.

Em fevereiro de 1799, Bonaparte entrou na Palestina, primeiro ocupando Gaza e depois movendo-se para o norte ao longo da planície costeira, onde finalmente sitiou o porto de Jaffa. Jaffa foi defendida pelas tropas de maneira obstinada pelas tropas de Jazzar, mas eles se renderam durante o cerco em troca de promessas francesas de que não seriam mortos. No entanto, sob custódia, as tropas do Pasha não receberam comida ou abrigo e, após vários dias, as forças francesas levaram cerca de 3 ou 4 mil deles para as dunas de areia da costa de Jaffa e os executaram com suas baionetas a sangue frio ao longo de vários dias. Simultaneamente à execução das tropas de Jazzar, uma praga afligiu as tropas de Bonaparte, resultando em inúmeras mortes e debilitando seu exército,

Em seguida ao massacre, o exército francês então capturou Haifa e a usou como base para o cerco de Acre, a joia de Jazzar. Pessoalmente comandando suas tropas no Acre, ele se envolveu em combate direto com soldados franceses durante o cerco, incitando seus soldados a resistirem com ferocidade ao assédio.

Tropas francesas durante o Cerco de Acre. Em 1799.

Jazzar, desse modo, deixou uma impressão indelével em Napoleão, que viu que não estava lidando com qualquer um, mas com um verdadeiro e casca-grossa comandante. Um membro do corpo de oficiais de Napoleão escreveu que: “Bonaparte desejava abrir negociações com o Paxá do Acre, apelidado de Açougueiro. Ele ofereceu a Djezzar sua amizade, buscou sua retribuição e deu-lhe as garantias mais consoladoras da segurança de seus domínios...[...]. Um segundo enviado foi decapitado no Acre.”

Além disso, depois de um tempo, a Marinha britânica com dois navios de guerra e algumas centenas de fuzileiros navais também veio em auxílio de Jazzar, e bombardeou as trincheiras de Bonaparte durante o cerco e despachou seus soldados no porto da cidade, resultando em pesadas baixas francesas antes da chegada de baterias de artilharia que os franceses usaram para bombardear os muros da cidade. Após 62 dias de carnificina, Bonaparte retirou seu exército com grande perda de vidas em 20 de maio, derrotado e incapaz de se reorganizar ou prosseguir com o cerco ou com seu avanço.

Em março do mesmo ano, após se retirar, Napoleão foi chamado para a França para resolver problemas domésticos de natureza política e militar, deixando o Egito para seus generais, que mal conseguiriam sustentar-se por 2 anos em meio a revoltas e bloqueio britânico. A campanha de Napoleão no Egito e a resistência de Jazzar Pasha tiveram um impacto significativo na região. Embora Napoleão tenha sido incapaz de conquistar o Egito, a campanha foi um catalisador para o interesse europeu na região e contribuiu para o despertar do nacionalismo árabe e o desejo de libertação do domínio estrangeiro.

Jazzar Pasha, por sua vez, mais uma vez salvou a pele e a honra de seus soberanos otomanos, e receberia ainda mais glória e honra tanto deles quanto dos seus súditos pela sua defesa bem-sucedida e corajosa de sua posição contra uma força imperialista estrangeira. A posição desafiadora e bem-sucedida de Ahmed Jazzar Pasha em Acre não apenas interrompeu a marcha de Napoleão para Damasco e Constantinopla, mas também pôs fim a seus sonhos de um império no Oriente.

Assim, as campanhas militares subsequentes de Napoleão, apesar de resultarem em fracassos, renderam-lhe o tão almejado lugar nos registros da posteridade. Mas muito antes da Rússia e Waterloo, Napoleão sofreu um revés inicial decisivo por um comandante otomano, muçulmano e nascido na Bósnia, que por muito tempo governou boa parte do que hoje é a Síria, Líbano e Palestina.

Bibliografia:

  • Cole, Juan (2007). Napoleon's Egypt: Invading the Middle East. Palgrave Macmillan.
  • Rickard, (2006) French Invasion of Egypt, 1798–1801.
  • Karcic, Hamza (2020) The Bosnian-born Ottoman commander who stopped Napoleon. TRT World.
  • Saikia, Robin (2021) Ahmad Pasha al-Jazzar: Britain’s colourful ally against Napoleon.
  • Ahmed Pasha Jazar – A Bosniak who defeated Napoleon in 1799. Balkantimes Press. 2020.