Contabilizar grandes fortunas de indivíduos de tempos antigos não é lá uma tarefa muito fácil: apesar de coisas como câmbio, flutuação da moeda e paridade de poder de compra serem inexistentes à época, também o era um sistema eficiente de contabilização. Um desejo de medir milimetricamente sua riqueza também não era algo prevalente entre os abastados, exceto em personalidades excêntricas como Guilherme I da Normandia (c.1028 – 1087), conhecido como “O Conquistador” por tomar a Inglaterra em uma única batalha (Hastings, 1066) que, num ataque de narcisismo decidiu contabilizar tudo aquilo que conquistara, ordenando assim a confecção do Doomsday Book (“O Livro do Dia do Juízo”) – um catalógo de todas as propriedades, pequenas ou grandes, de todo o Reino da Inglaterra –, que ficou pronto apenas em 1086 – apenas um ano antes da morte daquele que o encomendou.

Apesar disso, tal medição não é necessária: esses governantes ou homens de grande fortuna muitas vezes (na maioria delas) deixavam óbvias sua riqueza através das mais variadas dispendiosas ostentações: desde a contrução de palácios enormes e requintados, até obras públicas faraônicas e confecção de exércitos e armadas. É um desses casos que abordaremos aqui, falando do conhecido Mansa Musa, o “Mansa”, isto é, imperador do Mali, um governante tido como um dos homens mais ricos da história.

Para falarmos dele, no entanto, precisamos primeiro falar do contexto em que se encaixa: o efervescer sócio-político-econômico da África Ocidental, eferverscência essa ocasionada pela expansão cada vez maior do Islã na região.

O Império do Mali (1240-1645) foi um dos maiores e mais ricos impérios da região, rivalizando com o também e riquíssimo Império Songai à Leste. Fundado por Sundiata Keita, sua gênese foi um pequeno reino da etnia mandinko (aportuguesado “mandingo”) e tinha em suas terras o mais importante centro comercial, religioso e educacional, o de Timbuktu. Devido ao contato com mercadores árabes e a atividade missionária de pregadores sufis, os líderes da região – e suas elites nobres – começaram a se converter ao Islã, ampliando de maneira astronômica seu trato comercial com a África do Norte e além; era comum que seus líderes fizessem o Hajj, a peregrinação até Meca, como foi o caso de Mansa Musa.

A atuação das tariqas sufis e a “importação” de juristas, a criação de escolas de fiqh (o estudo da jurisprudência e leis islâmicas) expandiam cada vez mais o Islã para as outras camadas da sociedade, das cidades até o campo adentro, onde as antigas práticas politeístas teimavam em ceder. Tudo isso patrocinado pelo comércio: enquanto o Mali importava artigos manufaturados, de luxo, livros e outras coisas, o Mali era uma fonte abundante de três coisas muito apreciadas e importantes: o sal, elemento aplicado na conservação de comida e suprimentos, indispensável ás caravanas que passavam pelo vizinho Deserto do Saara e sua sucursal árida que se estendia na direção da África Negra, o Sahel; o marfim, utilizado para fazer finos artigos tanto de mobília quanto de uso pessoal; e, é claro, o ouro. Além disso, a cobrança de tarifas no comércio, os impostos e as minas de cobre também contribuíam para uma extensa fatia do tesouro imperial.

Musa, o sobrinho-neto do fundador do império, Sundiata Keita, assumiu o trono em 1312, sucedendo o Mansa Abu Bakr II. Abu Bakr havia partido com uma frota de tamanho razoável no Oceano Atlântico, decidido a explorar o Mar do Poente. Musa herdou um império já perto de seu apogeu; o que não significou, no entanto, que ele não pudesse melhorá-lo.

O seu Império ia das bordas áridas do Saara, com suas tribos tuaregs, que muitas vezes pagavam tributo ás autoridades malinesas, até a Gâmbia e o baixo Senegal a Oeste; no Leste, o controle se estendeu até Gao, outro importante centro urbano da época, próximo ao Níger; e indo em direção ao Sul, a região de de florestas tropicais, marcando o fim das extensas savanas, do que ficou conhecido como ‘Costa do Ouro’ , que ficaram sob o controle indireto do Mali. Indireto pois essa região foi agraciada com uma generosa autonomia, uma vez que a produção de ouro sobressaía-se quando se concedeu mais autonomia à ela. O Império do Mali nunca controlaria territórios ou recursos naturais tão grandes sob nenhum sucessor após Musa.

Para governar essa enorme extensão de terra, composta em sua maior parte por uma savana salpicada de tribos e feudos, ele apontou diferentes governadores responsáveis por diferentes províncias, devendo estes governadores – ou farbas, como eram chamados – se reportarem diretamente a ele, num sistema semelhante ao das satrápias no Império Persa Aquêmenida.

Seu exército, também, era de dar inveja em outros estados medievais da época: no seu auge, é dito que seu exército contava com cerca 100 mil homens de infantaria e mais 10 mil de cavalaria, números verdadeiramente impressionantes numa época em que as guerras – ao menos na Europa, que estamos acostumados a lidar e estudar com muito mais frequência – contituiam-se com números bem menores.

O fato mais famoso de sua vida, no entanto, é sua suntuosa viajem de Hajj (peregrinação à Meca) feita através do Norte da África, que a fizeram conhecido dentro e além do mundo muçulmano. Nela, Musa leva consigo um digno arauto de seu rico Império: toneladas e toneladas de ouro; é dito que, cada um dos 100 camelos, ao chegar ao Cairo, carregava cerca de 135 quilos de ouro nas costas, enquanto cada escravo individual, de um total de 500, carregava quase 3 quilos. Ao longo do caminho, que contou com um acampamento de 3 dias no sopé das Pirâmides de Gizé, Musa ia não apenas comprando suprimentos e “deixando o troco de presente”, mas também distribuía o ouro como forma de sadaqa (caridade), fato esse que iria acabar sendo ruim para a economia do mundo árabe após sua passagem. Sua primeira grande parada foi no Cairo, onde causou furor entre os locais, e sua dispendiosidade nos bazares da Joia do Nilo causou uma queda estupenda no valor do dinar (moeda da época) que demoraria anos para se recuperar. De presente para o Sultão do Egito, Al-Nasir Muhammad, uma soma de 50 mil dinares de ouro como presente de boas-vindas; adquiriu, também, como cortesia do Sultão, um palácio para residir durante sua estadia.

A fama de Musa passou pelos portos de Alexandria e chegou até a Europa: na Espanha, um Atlas datado de 1375 (que pode ser visto no topo deste artigo) enquadra Mansa Musa entronizado na África Norte-Ocidental. Após chegar na Arábia, impressionou-se tanto com as construções quanto com a piedade do povo, e decidiu trazer consigo de volta ao Mali representantes destas duas côrtes: voltou de volta a casa munido de juristas e pregadores para reformar e expandir ainda mais o sistema de ensino religioso islâmico de seu império, e com desejo de construir novas edificações para a Glória do Islam. Sua passagem causou inflação generalizada nas regiões onde passou e à desvalorização das moedas e do ouro locais.

Sua chegada a Medina e depois a Meca foi uma sensação: distribuiu presentes aos peregrinos e aos populares de ambas as cidades. Em Meca, onde ficaram até depois do Hajj, aconteceu um fato um tanto incômodo: uma briga entre peregrinos malineses e peregrinos turcos irrompeu na Masjid al-Haram, ao que não tardou para espadas serem desembainhadas de ambos os lados; o pior só foi evitado com a intervenção do Mansa junto a seus súditos.

Durante sua volta, a caravana de Musa passou por dificuldades: o dinheiro já não era mais tanto, e muitos malineses de seu séquito morreram de frio e fome durante sua jornada de volta para o Cairo. Mais uma vez no Egito, o esbanjamento de Musa teve um fim: a fonte finalmente secou e Musa acabou ficando sem dinheiro. À beira da falência, Musa acabou se endividando com vários mercadores do Cairo, além de ter de revender muito do que compraram lá na sua primeira estadia de 3 meses. Al-Nasir Muhammad, no entanto, deu-lhe presents para “aliviar” sua situação e em retribuição à generosidade à sua primeira estadia no Cairo.

Já em casa, ele construiu novas e grandes mesquitas em Gao e Timbuktu (que se tornou o coração de seu império e da África Ocidental), com muitas de suas construções ficando a encargo do famoso arquiteto e poeta andaluso Ishak al-Tuedjin (falecido em 1346), natural de Granada; Tuedjin viveria o resto de sua vida no Mali. Musa também construiu universidades, cada qual com um arsenal de livros trazidos da Arábia e Egito, além de escolas corânicas e khanqas (congregações) sufis, além de mandar pupilos malineses para Fez a fim de formarem-se como professores e atuarem nas escolas e madraças recém-criadas. Entre uma de suas notáveis construções está a Mesquita de Djingareyber, em Timbuktu.

Musa morreu e foi sucedido por seu filho, Mansa Maghan I, que havia sido regente enquanto seu pai estava na sua peregrinação dourada. O Mali ainda demoraria um bocado para declinar de fato, mas a dinastia dos Keitas, infelizmente, não conseguiu manter o “padrão de qualidade” de Musa, com seus sucessores efetuando governos não tão bons. Logo, o Mali deixou de monopolizar o comércio na região, com concorrências surgindo; a situação era agravada por constantes ataques dos nômades tuaregs, que agora começavam a fazer um estrago significativo, que se aproveitavam das disputas internas dos malineses para atacar. Com a ascensão de Sonni Ali ao Império Songai, o Mali acabou perdendo grande parte de seus territórios na década de 1460 e, nas décadas seguintes, viria a desaparecer, deixando os veios de ouro de Mansa Musa à mercê dos songaítas.

Referências Bibliográficas:

World History Encyclopedia: Mansa Musa I, Mark Cartwright, 2019.

http://www.history.com/classroom/unesco/timbuktu/mansamoussa.html

Gomez, Michael A. (2018). African Dominion: A New History of Empire in Early and Medieval West Africa. Princeton University Press.

Collet, Hadrien (2019). "Échos d'Arabie. Le Pèlerinage à La Mecque de Mansa Musa (724–725/1324–1325) d'après des Nouvelles Sources"History in Africa46: 105–135.