António de Paiva, Manuel das Neves, João de Mendonça, Francisco de Souza, Pedro da Costa, Manuel Lopes, Diogo Francisco, Antonio da Fonseca, João Baptista, Sebastião Correa Peixoto, Inês Lourenço, a lista é bem longa. Todos estes indivíduos estão com seus processos nos arquivos da Inquisição da Torre do Tombo em Lisboa, acusados do crime de “islamismo” em terras portuguesas - coloniais ou no próprio reino. Mas islamismo nem sempre foi crime para Portugal.

Mouros: Expulsar ou assimilar?

O processo de expansão do Condado Portucalense na Idade Média é muitas vezes chamado de “Reconquista” ou descrito como ''expulsão dos mouros'`(dois eventos históricos diferentes), porém de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, aos seus próximos descendentes medievais ninguém “expulsava mouros”, e sim tomava cidades islâmicas, bem mais ricas do que as suas, permitindo a manutenção da liberdade religiosa e jurídica dos muçulmanos tal qual estes haviam feito com os cristãos quando conquistaram a Península em 711. De acordo com o historiador Brian Catlos:

“Isma’il ibn Dhil-Nun, o rei do reino taifa de Toledo, ficou em choque. Em 1038, ele estava reunindo forças para marchar sobre a Saragoça muçulmana, onde um golpe dentro da família governante levou ao assassinato de seu parente, o rei Mundhir II al-Tujibi, e à tomada do trono pelo primo da vítima, Abdullah. Ismail estava decidido a se vingar e, como os chefes da fronteira haviam feito tantas vezes no passado, ele pediu apoio aos cristãos do norte. Mas, em vez de tropas, Fernando I, o jovem conde de Castela, enviou uma mensagem que refletia a mudança no equilíbrio de poder na península:

‘Nós ... exigimos nossa terra, que há muito tempo vocês conquistaram e que habitaram por tanto tempo quanto foi ordenada [por Deus]. Agora, Ele nos deu vitória sobre vocês por causa de sua maldade. Parta para sua própria costa [do Norte da África] e dê nossas terras para nós. Pois não há mais bem em viver conosco, nem vamos nos afastar de vocês até que Deus tenha arbitrado entre nós.’

Foi uma declaração de guerra e uma expressão inicial do que viria a ser conhecido como La Reconquista, ou “a Reconquista’ - um programa ideológico apoiado pela monarquia de Castela e Leão e pelo papado, que idealizou a história política da península como uma luta entre o Cristianismo e o Islã, dotou-a de uma legitimidade moral e senso de inevitabilidade histórica, e apoiou as reivindicações dos monarcas leoneses de serem os herdeiros dos reis visigodos e governantes de toda a Hispânia, bem como dos territórios além.

Contudo, o que isso não foi, e nunca seria, foi uma conclamação para expulsar a população muçulmana da Espanha. Quando Fernando lançou seu desafio ao rei de Toledo, ele estava ciente de que os Dhil-Nun eram um clã originário do Magrebe e da reputação decadente dos reis taifa. Sua advertência para que partissem para suas próprias praias foi um gesto anti-estrangeiro, não anti-muçulmano. Na verdade, os governantes cristãos nos séculos seguintes frequentemente iam a extremos consideráveis ​​para tentar as populações muçulmanas que conquistavam a permanecerem súditas do governo cristão. Seu objetivo, como o dos árabes de 711, era conquistar e dominar, em vez de expulsar os povos nativos. Menos de meio século após a repreensão de Fernando, Toledo, sob o governo de Afonso VI, filho de Fernando, seria a primeira grande cidade de al-Andalus a cair nas mãos de um governante cristão desde Barcelona em 801. O rei retornaria à antiga capital visigótica, mas ele não tomaria a cidade de assalto. Em vez disso, ele teve sucesso por meio da conivência voluntária de seu governante e da aquiescência relutante de seus habitantes. De sua parte, Alfonso se autodenominaria não como um rei dos cristãos, mas como al-Imbratur dhul-Millatayn, o “imperador das duas comunidades religiosas”: o cristianismo e o islamismo.

Toledo foi tomada sem derramamento de sangue quando os líderes da população muçulmana abriram os portões para Afonso. Sua aquiescência foi alcançada por meio da combinação da ameaça de fome e guerra e da promessa de segurança e prosperidade. Algumas fontes afirmam que, para aliviar o sofrimento que os habitantes sofreram, Afonso lhes concedeu um grande presente em dinheiro; quer isso acontecesse ou não, seu enviado à cidade, Sisnando, fez um grande esforço para assegurar-lhes que suas vidas continuariam tanto quanto possível como antes. Enquadrando o acordo em termos que entenderiam, os muçulmanos de Toledo se tornariam dhimmis dos cristãos e, em troca de sua subordinação e tributo, teriam a garantia de segurança pessoal e de propriedade e a liberdade de manter sua religião e viver de acordo com suas próprias leis. A grande mesquita da cidade, foi prometido, permaneceria seu local de culto. Crucialmente para eles, e necessariamente para Afonso, os líderes da comunidade mantiveram sua posição e seu poder sobre seus correligionários. Da mesma forma, as comunidades moçárabe e judaica de Toledo e os colonos latinos recém-chegados receberiam alvarás semelhantes e cada um estaria sujeito a seus próprios códigos legais e administrado por seus líderes comunitários. A mensagem era continuidade, não catástrofe; foi uma estratégia que seria seguida quase sem exceção nos séculos de conquista cristã.”

– A. Catlos, Brian (2018). Kingdoms of Faith: A New History of Islamic Spain. p. 222-223, 231)

Retrato de Jaime I de Aragão, “o Conquistador”, negociando com os mouros na cidade de Múrcia em 1266, Cantigas de Santa María, Codice Rico, Cantiga núm. CVXIX, Biblioteca Real del Monasterio de San Lorenzo del Escorial.

Afonso Henriques, o fundador de Portugal, neto do mencionado Afonso VI de Leão e Castela, passados os atos de invasão sangrenta dos principados islâmicos que tomou de assalto, protegeu em bons termos seus súditos islamizados. Aos muçulmanos que ficaram na região de Lisboa e outras freguesias, chegou mesmo a dar uma carta de segurança no ano de 1170, na qual dizia o pai daquele proto-Brasil multiétnico do condado portucalense:

“Em nome de Deus. Eu, rei Afonso de Portugal, com o meu filho rei Sancho I, faço uma carta de lealdade e afirmação a vós mouros que sois súditos de direito em Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer para que não recebais injustiças em todas as minhas terras. E para que nenhum cristão ou judeu tenha o poder de lhes prejudicar, que sejam vossos juízes aqueles que tu elegeres como alcaides dentre os de vosso povo e da vossa religião. E assim o faço para que me paguem anualmente um morabitno per capita a partir do momento em que puderem ganhar o necessário para sua subsistência e para que também me paguem a alfitra, o zakat e 1/10 de todo o seu trabalho. E que vocês cultivem todas as minhas vinhas e vendam os meus figos e o meu azeite (...)”

– A. Herculano et al., Portugaliae monumenta historica. Leges et consuetudines, vol. 1, fascic. 3 (Olisipone, 1863), p. 396-97.

Ainda em 1484, tempo em que reinava D. João II, eram muçulmanos portugueses quase todos os proprietários de vinha no Zambujeiro, perto de Camarate. E no Algarve três quartos das propriedades pertenciam aos luso-muçulmanos e suas comunas também se faziam presentes em Alcácer do Sal, Beja, Coimbra, Elvas, Évora, Faro, Lisboa, Loulé, Moura, Santarém, Setúbal, Sines e Tavira. Exerciam a medicina, pela qual eram famosos, e muitos eram comerciantes, artistas e alarifes.


O castelo do Alandroal é um bom exemplo da arquitetura militar islâmica mudejar no Alentejo português, e também um bom exemplo das grandes contradições que permeavam a sociedade medieval da Reconquista: encomendado pelas elites cristãs cruzadistas, foi construído e arquitetado por um engenheiro muçulmano. A fortificação foi mandada edificar, em finais do século XIII (1298), pela Ordem militar de Avis, durante o reinado de D. Dinis (1279-1325). Seu idealizador foi o alvenel “Mouro Calvo” a quem, curiosamente, os senhores da vila e do castelo permitiram a colocação, numa esquina da torre da direita de uma das portas da fortificação, de uma lápide onde, além de o construtor se identificar, utiliza, no final dessa lápide, a expressão símbolo do Emirado de Granada, porém caracteres latinos. A inscrição é curiosa, na medida em que depois de algumas frases em português medieval, termina com a seguinte afirmação: "LEGALI : BI : IL : ILLALLA". tratando-se da expressão "Wa la Ghalib illa Allah", ''E não há vencedor além de Allah'', que decora a arte nacérida granadina do período, principalmente o emblemático palácio de Alhambra.

Assimilar, e então, expulsar…

Saímos do medievo e entramos na modernidade, e a tradição da sociedade plurirreligiosa portuguesa morreria com o rei D. Manuel I. Para satisfazer uma exigência feita pelos Reis Católicos de Espanha Fernando e Isabel, seus futuros sogros, como condição para a realização de seu casamento com a Infanta Isabel (filha dos monarcas espanhóis) o rei de Portugal promulgou em 5 de dezembro de 1496 o édito de expulsão de judeus e muçulmanos do território português. Era o dote de limpeza religiosa para a princesa castelhana. O rei D. Manuel I ainda tentou fazer com que a princesa reconsiderasse pela manutenção destas comunidades importantíssimas para um Portugal em expansão marítima, mas foi tudo em vão, e a única resposta que obteve da futura esposa foi: “só entrarei em Portugal quando estiver limpo de infiéis”. O rei, no entanto, conseguiu “atenuar” a tragédia concedendo a “graça” do batismo forçado ao catolicismo para aqueles que quisessem ficar. Mas aí, estavam futuramente (a partir do reinado de seu sucessor, D. João III) sujeitos a Inquisição e a serem possivelmente presos, torturados e condenados como falsos católicos heréticos se praticassem o Islã em segredo.


Batismo dos mouriscos granadinos retratado num retábulo da Capela Real de Granada.

Interessante parte deste expurgo de nativos de outra religião, é que a identidade portuguesa destes muçulmanos era fortíssima, como indica o caso daqueles de Loulé. Expulsos pelo édito, refugiaram-se no norte de África, mas não se adaptaram às terras que não eram suas. “Não podendo lá viver”, lê-se, optaram por converter-se e voltar para Portugal. Em outro caso, Brafame Gordo e o seu irmão Galebo partiram do Alentejo tão contrariados que chegaram mesmo a pedir autorização ao rei para os deixar regressar. Numa petição dirigida à coroa portuguesa (hoje guardada na Torre do Tombo) dão o nome de três cristãos seus vizinhos em Elvas, que poderiam fornecer recomendações, e pedem para voltar para Portugal para lá viverem com as suas famílias “assim mouros como sempre foram.”

Como os irmãos Gordo, outros muçulmanos tentaram regressar para as suas terras de origem de onde foram expulsos. Porém, não conseguindo, passaram a viver no Norte da África, e alguns chegaram até mesmo ao Nordeste do Brasil, mantendo suas práticas e tradições que podem ser fortemente vistas na cultura nordestina. Sua presença é denunciada já no final do século XVI, com a chegada da Inquisição. Processos e relatos do Santo Ofício referem-se à presença destes muçulmanos, descrevendo suas práticas e costumes.

Das Mourarias portuguesas ao Novo Mundo

O famoso visitador da inquisição portuguesa na Capitania de Pernambuco Heitor Furtado de Mendonça lá chegou em 21 de setembro de 1593, onde ao longo de dois anos escrutinou a vida da população local já bastante sincrética e, sob ameaças, fez com que a gente se denunciasse mutuamente, sobre quem tinha após batismo forçado voltado depois a ser muçulmano, judeu ou o que mais fosse crime. Furtado assinalou os costumes dos “maometanos” (muçulmanos), tais como a oração de Salatul Juma, se lavar, o não-consumo de carne ou gordura de porco e de bebidas alcoólicas dentre outras que poderiam ser identificados nos proto-nordestinos suspeitos de seguirem o Islã:

“(...) seguirão ou seguem a seita de Mafoma (Muhammad), fazendo ou realizando ritos, preceitos e cerimônias muçulmanas, jejuando o jejum de Rabadam, ou Ramadam (Ramadã), não comendo durante todo o dia, até à noite, quando as estrelas aparecerem, lavando o rosto, ouvidos, pés, mãos e outras partes íntimas, e fazendo orações estando descalços, rezando preces de mouros, guardando as sextas-feiras, das quintas-feiras à tarde em diante, vestindo-se e adornando-se nestas sextas-feiras com roupas limpas, e joias de festa, não comendo carne de porco, nem bebendo vinho, como é costume muçulmano, por respeito e observância dessa festa; se fizerem ou fazem outros ritos e cerimônias, como os dos judeus ou da seita de Mafoma.”


Pintura “Auto de Fe de la Inquisición”, do pintor espanhol Francisco Goya. 

No município de São Lourenço da Mata, por exemplo, em 18 de junho de 1595 um muçulmano de nome Paulo de Brito foi preso pelo Santo Ofício. De acordo com o processo, Paulo era casado com Vitória, uma mulher indígena, “escrava de António Fernandes de Barros”, demonstrando a formação altamente multicultural do Brasil em seu primeiro século. No processo do mouro, lê-se na denúncia:

“Esse homem, que estava na capitania, era alto, magro, com o rosto barbudo e preto, e ele (o denunciante) não sabe mais sobre ele, apenas que diz ser da nação dos mouros. E um dos dias que lá estiveram (na fazenda onde Paulo trabalhava), antes de almoçar, vieram a praticar sobre coisas do sertão, e o mourisco disse que, estando ele no sertão com os gentios (indígenas), dos quais ele conhece bem a língua, diria que os cristãos adoram muitos vultos e imagens como deuses, enquanto os mouros adoram somente um único deus (Allah). Na mesma manhã, continuando a prática e perguntando-lhe sobre a seita dos mouros, o mourisco lhe disse que os mouros não se confessam a confessores, apenas a Deus no coração, e que consideravam uma zombaria confessar-se aos confessores cristãos (padres).”


Vila de Olinda. Em: Commelin, Izaak. Frederick Hendrik van Nassaw prince van Orangien zyn leven em bedryf. Amsterdam: Paulus Mathysz, in’t Muzyk-bock, Gedruckt, 1651. OR 2026.

Paulo de Brito, como podemos ver, apesar da condição servil não era somente um muçulmano num aspecto privado da sua vida, mas ia aos nativos indígenas lhes falar do Islã, aprendeu seu idioma, tendo se casado com uma índia que havia sido escrava de um português. Podemos notar aqui que o dito mourisco seguia o padrão de outro caso de islamismo na América do Sul colonial espanhola de algumas décadas antes. Em 1560, um certo Lope de la Pena, descrito como “mouro de Guadalajara”, foi condenado à prisão perpétua pelo crime de “ter praticado e espalhado o Islã” em Cuzco no Peru e também foi obrigado a usar a veste vexatória imposta pela Inquisição conhecida como Sanbenito pelo resto da vida. Outro colega seu, o mulato Luis Solano, “filho de um espanhol e de uma mulher negra”, que além de ferir a lei de proibição do Islã também ia contra a limpeza de sangue, teve um destino quiçá pior que o de Lope, e foi executado num Auto de Fé, nos quais também arderam queimados outros mouriscos de nome Alvaro González e Hernando Díez, grelhados até a morte na fogueira em Lima por serem membros da “seita de Maomé”.

Curiosamente, de um tempo posterior também nos arquivos inquisitoriais da Torre do Tombo em Lisboa, encontra-se arquivado o caso de um certo herege islamizante de nome “Diogo”, natural da Bahia, afro-brasileiro e escravizado de Francisco Paiva, pego praticando o Islã e preso em 1615, mostrando assim que havia dentre os muitos presos por islamismo no Reino - cujos documentos sobreviveram até nós - até mesmo os primeiros mouros genuinamente brasileiros, naturais da colônia mas já muçulmanos.

A história mostra: muçulmanos são um dos elementos formadores do Brasil. Nas palavras de Debbané:

“Ao todo, do ano 1500 ao ano 1600, os primeiros colonizadores da América do Sul pertenciam à Espanha e ao sul de Portugal, ou seja, uma parte fortemente orientalizada e arabizada de Espanha e de Portugal [...] A estas raças arabizadas assim transportadas para a América foi acrescentado ainda outro elemento oriental, desta vez um elemento puramente oriental. [...] Os prisioneiros de guerra [das campanhas portuguesas no Marrocos], bem como os árabes, descendentes de árabes ou mestiços residentes em território português e espanhol, eram muitas vezes exilados e deportados ao menor pretexto para as novas colônias do outro lado do Atlântico.”

– DEBBANÉ, Nicolas J. L’influence arabe dans la formation historique, la litterature et la civilisation du peuple brésilien. Le Caire, 1911, p. 14

O Capitão Mouro em Palmares

Descendo a costa mexicana do Pacífico num dia de verão em 1573, o comerciante chamado Pero Ximénez viu algo notável: “navios”, disse ele aos oficiais coloniais espanhóis, “de turcos ou mouros”. Aquilo só podia ser um engano. Mas, apenas algumas semanas depois, chegou o relatório de “sete vassalos do Grande Turco, todos homens do mar, os espiões dos príncipes”, caminhando ousadamente ao redor da praça da cidade de Purificación. Enviado para investigar, o agente da coroa espanhola concluiu afirmativamente: “turcos ou mouros” estavam de fato conspirando com os nativos americanos para derrubar o governo cristão.

Que em 1573 o vitorioso sultão Selim II do Império Otomano - que acabara de tomar o Chipre dos venezianos - estivesse também despachando navios turcos para América espanhola para levantar os indígenas numa rebelião parece pouco provável (o plano, no entanto, seria arquitetado mais tarde, por Ahmad al-Mansur, sultão do Marrocos, com a rainha Elizabeth I da Inglaterra). Mas isso pouco importa, pois no imaginário dos colonizadores europeus, os mouros e turcos estavam aqui conspirando, prontos para se aliar aos pretos e indígenas, ensinando suas táticas de séculos para os pôr para correr.

Mas também pudera: a história do estrago que os indígenas tainos organizados pelos muçulmanos wolof escravizados fizeram na Ilha de São Domingos contra o filho de Cristóvão Colombo em 1521 ainda devia ser contada naquela altura. Mas se o clima nas colônias espanholas era de suspeita, no Brasil, na Capitania de Pernambuco, o pesadelo do colonizador se tornaria realidade. Pois lá os mouros realmente estavam dando apoio tático.

O Quilombo dos Palmares foi sem sombra de dúvidas o mais famoso ajuntamento político negro rebelde do Brasil Colônia. Localizava-se na Serra da Barriga, na então Capitania de Pernambuco, com suas primeiras referências remontando a 1580, formado por escravizados fugitivos dos engenhos de açúcar ao longo das décadas. Em 1670 alcançou cerca de vinte mil habitantes. O que para o Brasil de hoje é uma população de cidade pequena, na época era três vezes a população do Rio de Janeiro. Um dos grandes povoados do Brasil de então era um quilombo.

Palmares era uma reencenação brasileira de um típico reino africano nos sertões de Pernambuco. Além de negros africanos, incluía também muitos indígenas, brancos foragidos da lei e até mesmo, adivinhem, “um mouro [muçulmano árabe ou berbere], que para eles fugiu”, segundo registrou, em 1694, o governador Caetano Melo e Castro em carta ao próprio rei de Portugal. Mais uma vez, ali estava o mouro, e Caetano, em documento oficial, provavelmente não estaria fantasiando.

Nos arquivos da Inquisição na Torre do Tombo encontramos nos processos dos crimes de islamismo não só portugueses mouriscos do Reino, mas também os vindos de Angola, o que mostra que os muçulmanos atlânticos no século XVII teriam certa familiaridade com a realeza preta dos jagas, representados em Palmares por Zumbi e Dandara.


Mapa da Capitania de Pernambuco com representação do Quilombo dos Palmares, confeccionado pelo pintor e gravurista holandês Frans Post em 1647.

De acordo com Caetano, o mouro havia assessorado Zumbi na construção das fortificações do quilombo, “muito fortes” segundo ele, o que sugere um artífice, engenheiro militar experiente. A história nos faz lembrar os primórdios do Islã, com Salman, o Persa ajudando o Profeta Muhammad ﷺ, dando-lhe conselhos sobre como construir as defesas de Medina contra o ataque coraixita na Batalha da Trincheira, em 627.

Mas como um mouro, fosse árabe, turco ou berbere, teria chegado ali? Há outras referências coetâneas dessa natureza?

Sabe-se que o que possibilitou a grande fuga de escravizados em Pernambuco para Palmares foram as Invasões Holandesas (1630-1654). Além dos judeus que construíram a sinagoga Kahal Zur Israel no Recife, os batavos também trouxeram muçulmanos militarmente experientes consigo. Maurisstad possuía até mesmo uma via batizada de “Moriaensteech” (“Rua dos Mouros”).


Mercado de Escravos na Rua dos Judeus de Recife, Pernambuco holandês, quadro de Zacharias Wagener, 1641.

Na multicultural Cidade Maurícia, como a capital pernambucana do Recife era conhecida durante o governo holandês, temos o caso de escravizados magrebinos do Marrocos servindo o próprio conde Maurício de Nassau, denominados como ''turcos'' nas fontes primárias. Segundo Monteiro:

“(...) havia naquela época também dez "turcos" (turcken) mencionados, provavelmente também escravizados. A história deste grupo é bastante interessante, pois mostra as diferentes maneiras pelas quais os indivíduos podiam acabar na escravidão no Brasil. Os arquivos notariais de Rotterdam fornecem uma pista de como esses "turcos", na verdade marroquinos, foram parar no Brasil. Em uma declaração de 22 de março de 1638, Jacob Janzs van der Beets e Harman Matthijsz, respectivamente primeiro imediato e trompetista, atestaram em nome dos proprietários do navio 't Vliegend Hardt que o filibote Swarten Raven van Hoorn a caminho da Noruega via Hoorn para o Brasil tinha sido capturado em pleno mar em dezembro de 1637 por uma ''polacca turca'', provavelmente de um pirata ou corsário operando fora do Marrocos. O navio capturado era operado por uma tripulação de doze "turcos" e dois escravos, mas foi capturado por sua vez pelo t’ Vliegend Hardt sob o comando do capitão Jan Jacob van der Beets. O navio voltou para Rotterdam, mas a tripulação do mesmo foi levada em cativeiro para o Brasil, onde acabaria indo parar na corte de João Mauricio (de Nassau).” (P. 15-16)

– MONTEIRO, Carolina. "Slavery at the Court of the 'Humanist Prince' Reexamining Johan Maurits van Nassau-Siegen and his Role in Slavery, Slave Trade and Slave-smuggling in Dutch Brazil." Leiden: Journal of Early American History, 2020, pp. 3-32.


Estandarte do Almirante Espanhol Antonio de Oquendo, usado pela Armada Luso-Espanhola na Batalha Naval de Abrolhos contra o Almirante Holandês Adriaan Pater na Costa de Pernambuco em 1631. Entre seus ícones vemos a figura de "Santiago Matamoros'' ou "São Tiago matador de Muçulmanos'', que era figura parte da religiosidade hispânica medieval, diante de um mouro com a espada quebrada e uma cabeça de um muçulmano decepada. Acreditava-se que o apóstolo de Jesus, Tiago (que de acordo com uma lenda foi enterrado na Galiza) ajudava todos os militares espanhóis em suas lutas contra muçulmanos, os decapitando (ironicamente, Tiago foi morto decapitado a mando do rei Herodes Agripa I). Nota-se a figura do santo sobre um esteriótipo islâmico que mistura elementos mouriscos como a adarga e o fez com turbante turco. Com a colonização das Américas, a figura de Santiago recebeu uma nova alcunha: "Santiago Mata índios''.

Como demonstra a fonte neerlandesa, nos idos de 1600 a voz de Melo e Castro não era solitária sobre a presença de muçulmanos em Pernambuco, ou sequer era estranho que holandeses estivessem cooperando com turcos contra seus rivais ibéricos pouco antes. As medalhas geuzen holandesas de prata em forma de crescente islâmico utilizadas pelos insurgentes dos Países Baixos ajudados pela Sublime Porta continham os dizeres: "Liver Turcx dan Paus", "Antes o Turco que o Papa.''


Obras: Detalhe de “O sultão do Marrocos com sua guarda negra” de Eugène Delacroix (1862) e “Mauricio de Nassau” de Willem Jacobsz (1637).

Palmares teve seu fim em 6 de fevereiro de 1694, quando as forças de Domingues Jorge Velho arrasaram o quilombo com armas superiores às fortificações preparadas pelo Capitão Mouro, e Zumbi, seu líder, seria morto no ano seguinte, esquartejado a mando do próprio Caetano.

Na ficção a história do muçulmano que ajudou Zumbi a fortificar Palmares foi eternizada pelo escritor libanês-brasileiro Georges Latif Bourdoukan, que em 1997 publica “A Incrível e Fascinante História do Capitão Mouro”, onde o mouro ganha nome, Saifudin, e também um amigo judeu, Ben Suleiman. Uma mistura e amizade não historicamente impossível no Brasil daquela época.


Capa de “A Incrível e Fascinante História do Capitão Mouro” e foto de seu autor, Georges Latif Bourdokan.

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