Quando se fala de música na tradição islâmica, muitos são remetidos à sinfonia de diversos instrumentos frequentemente vistos em filmes, séries ou novelas de cunho mais orientalista. Contudo, quando falamos de músicos muçulmanos, dificilmente o homem ocidental consegue lembrar de algum musicista ou artista, salvo raríssimas exceções, que em geral surge sob a figura de algum cantor moderno, normalmente egípcio.

Entretanto, embora existam discussões sobre a ilicitude ou não da música dentro do Islã, a mesma esteve presente em diversos momentos e locais do mundo islâmico, por vezes com influências quase que inigualáveis até mesmo para a Europa cristã, como no caso do musicista muçulmano Ziryab, uma verdadeira estrela de seu tempo, uma espécie de Elvis Presley medieval situado em al-Andalus.

Outro músico muçulmano famoso do período medieval foi Amir Khusrau, um sufi indo-persa que viveu no sultanato de Deli nos séculos XIII e XIV, tão icônico no subcontinente indiano quanto Ziryab havia sido na Península Ibérica.

Abul Hasan Yamin ud-Din Khusrau, mais conhecido como Amir Khusrau, nasceu em 1253 em Patiyali, no distrito de Kasganj, onde hoje é o estado de Uttar Pradesh ao norte da Índia [1].  Ele cresceu em Kesh, uma pequena cidade perto de Samarqanda, onde hoje é o Uzbequistão. Quando ele era jovem, a região foi saqueada e devastada pela invasão da Ásia Central por Genghis Khan, e grande parte da população fugiu para outras terras, sendo a Índia um destino comum para esses refugiados das invasões mongóis.

De Kelsh, Amir Khusrau e sua família foram para Balkh, onde hoje é o norte do Afeganistão. Já em Balkh, enviaram representações ao sultão de Deli em busca de refúgio e ajuda. Nessa época, o sultão que governava era Shams ud-Din Iltutmish (m. 1236), que assim como Amir Khusrau e alguns membros de sua família possuía origem turca e havia crescido na mesma região da Ásia Central, concedendo o pedido de ajuda. Esta foi a razão pela qual pediram sua ajuda em primeiro lugar. Iltutmish não apenas acolheu os refugiados em sua corte, mas também concedeu altos cargos e propriedades rurais a alguns deles. Em 1230, Amir Saif ud-Din, pai de Amir Khusrau, recebeu um feudo no distrito de Patiyali.

Desde pequeno, Amir Khusrau sempre demonstrou grande interesse pela poesia, se tornando versado logo cedo nos idiomas turco, persa e árabe. Aos 9 anos de idade ele já escrevia seus poemas, sendo conhecido durante sua vida como Tuti-i-Hind, “o papagaio da Índia”, referência a sua famosa eloquência. Seu primeiro divã, Tuhfat us-Sighr (O Presente da Infância), contendo poemas compostos entre as idades de 16 e 18 anos, foi compilado em 1271. Em 1273, quando Khusrau tinha 20 anos, seu avô, que supostamente teria 113 anos, faleceu.

Com o falecimento de seu avô, Khusrau ingressaria no exército de Malik Chajju, sobrinho do sultão da época, Ghiyas ud-Din Balban. Com o seu ingresso nas forças militares, sua poesia agora alcançaria uma nova audiência: a assembleia real.

Amir Khusrau seria notado principalmente após um dos filhos de Ghiyas Balban, Nasir ud-Din Bughra Khan ter sido convidado a ouvir o poeta em 1276. Impressionado com a eloquência de Khusrau, Nasir decidiu patrociná-lo.

Em 1277 Nasir Bughra Khan foi então nomeado governante de Bengala, e Khusrau o visitou em 1279 enquanto escrevia seu segundo divã, Wast ul-Hayat (O Meio da Vida). Khusrau então retornou a Deli. O filho mais velho de Balban, Khan Muhammad foi para Deli e, quando ouviu falar de Khusrau, o convidou para sua corte. Khusrau então o acompanhou a Multan em 1281. Multan na época era a porta de entrada para a Índia e era um centro de conhecimento e aprendizado. Caravanas de estudiosos, comerciantes e emissários passavam por Multan de Bagdá, Arábia e Pérsia a caminho de Deli.

Alguns anos depois, mais especificamente em 9 de março de 1285, Khan Muhammad seria morto em batalha enquanto lutava contra os mongóis que invadiam o sultanato. Diante disso, Khusrau escreveu duas elegias, enlutado pela morte de seu soberano. Em 1287, Khusrau viajou para Awadh com outro de seus patronos, Amir Ali Hatim.

Nesse mesmo ano de 1287 também ocorreria a morte do sultão Balban, aos 80 anos. Seu neto Muiz ud-Din Qaiqabad, filho de Bughra Khan, tornou-se sultão de Deli aos 17 anos. Khusrau permaneceu a serviço de Qaiqabad por dois anos, de 1287 a 1288. Em 1288 Khusrau terminou seu primeiro masnavi [2], Qiran us-Sadain (Encontro das Duas Estrelas Auspiciosas), que era sobre Bughra Khan encontrando seu filho Muiz ud-Din Qaiqabad após uma longa inimizade. Depois que Qaiqabad sofreu um derrame em 1290, os nobres nomearam seu filho de três anos, Shams ud-Din Kayumars, como sultão. Um turco-afegão chamado Jalal ud-Din Firuz Khalji marchou sobre Deli, matou Qaiqabad e tornou-se sultão, encerrando assim a dinastia mameluca do sultanato de Deli e iniciando a dinastia Khalji, que duraria até 1320.

O novo governante também era afeito às poesias, motivo pelo qual chamou Khusrau para sua corte, onde foi muito respeitado e admirado, sendo nessa época que receberia o título de Amir, um título honorífico que pode ser traduzido como “senhor” ou “comandante”.

Algumas das composições de Amir Khusrau foram adaptadas para o formato musical, sendo cantadas todas as noites por algumas mulheres no palácio para o novo sultão.

Em 1290 Khusrau completou seu segundo masnavi, Miftah ul-Futuh (Chave para as Vitórias), em louvor às vitórias de Jalal ud-Din Firuz. Em 1294 Khusrau completou seu terceiro divã, Ghurrat ul-Kamaal (O Apogeu da Perfeição), que consistia nos poemas que compôs entre as idades de 34 e 41.

Jalal ud-Din seria sucedido por Ala ud-Din Khalji, seu sobrinho em 1296. Assim como fizera com os governantes anteriores, Amir Khusrau escreveria poemas em homenagem à Ala ud-Din, exaltando suas vitórias militares, projetos arquitetônicos e sua administração do sultanato. Dentre as obras que escreveu nesse período podemos listar o Khamsa-e-Khusrau de 1298, um quinteto contendo diversos masnavis, dentre eles Matla-ul-Anwar com mais de 3300 versos e com temática sufi. Outro masnavi seria Khusrau-Shirin, com 4000 versos. Já o terceiro, Laila-Majnun seria um masnavi romântico. O quarto masnavi foi Aina-e-Sikandari, que narrou os feitos heroicos de Alexandre, o Grande, em 4.500 versos. O quinto masnavi foi Hasht-Bihisht, baseado em lendas sobre Bahram V, o 15º rei do Império Sassânida. Todas essas obras fizeram de Khusrau um dos principais nomes do mundo da poesia. Ala ud-Din Khalji ficou muito satisfeito com seu trabalho e o recompensou generosamente.

Em 1300, quando Khusrau tinha 47 anos, sua mãe e seu irmão morreram. Ele escreveu estas linhas em sua homenagem:

Um duplo esplendor deixou minha estrela este ano

Meu irmão e minha mãe se foram

Minhas duas luas cheias se puseram e deixaram de brilhar

Em uma curta semana, pelo meu azar.

Outros escritos também foram produzidos em homenagem a sua mãe.

Já em 1310, Khusrau se tornaria discípulo de um santo sufi, Nizamuddin Auliya da ordem Chishti. Novos masnavis continuariam a ser compostos, alguns com temas românticos, outros em homenagem aos novos governantes que sucederam, como Qutb ud-Din Mubarak Shah Khalji, filho de Ala ud-Din Khalji, que faleceu em 1316 [3].

 

Contribuições musicais

Muito embora tenha sido um grande poeta de seu tempo e com amplo reconhecimento e prestígio por todas as dinastias pela qual passou, Amir Khusrau também realizou diversas contribuições para a música hindustani.

Dentre essas contribuições, podemos listar a criação de um estilo musical sufi, assim como a invenção de alguns instrumentos musicais (imagens ao final do texto, no Anexo 1).

Khusrau é creditado por ter criado o qawwali, uma forma de música devocional sufi desenvolvida através da fusão das tradições de canto persa, árabe, turca e indiana. A língua de Khusrau era uma mistura de brij e persa, seu estilo folclórico e direto de escrever e cantar moldou a ideia da Índia enquanto uma nação pacífica: hindus e muçulmanos poderiam coexistir pacificamente e celebrar as culturas uns dos outros. Assim, Khusrau é por vezes chamado de “voz da Índia”, além do apelido de sua infância, “o papagaio da Índia”.

Além do qawwali, Amir Khusrau é também creditado por ter criado as formas musicais Khayal, Tarana e Trivat. Segundo o musicólogo indiano Jaideva Singh:

[Tarana] foi inteiramente uma invenção de Khusrau. Tarana é uma palavra persa que significa uma canção. Tillana é uma corruptela desta palavra. É verdade que Khusrau tinha diante de si o exemplo de canções Nirgit usando śuṣk-akṣaras (palavras sem significados) e pāṭ-akṣaras (sílabas mnemônicas do mridang). Tais canções estavam em voga pelo menos desde o tempo de Bharat. Mas de um modo geral, o Nirgit usava consoantes duras. Khusrau introduziu duas inovações nesta forma de música vocal. Em primeiro lugar, ele introduziu principalmente palavras persas com consoantes suaves. Em segundo, ele organizou essas palavras de modo que elas tivessem algum significado. Ele também introduziu algumas palavras em hindi para completar o sentido...Foi apenas o gênio de Khusrau que conseguiu organizar essas palavras de forma a produzir algum significado. Compositores depois dele não conseguiram fazê-lo, e o tarana tornou-se tão sem sentido quanto o antigo Nirgit.

Já dentre os instrumentos inventados por Amir Khusrau, podemos citar a tabla e o sitar. Na época, havia muitas versões da vina na Índia, um instrumento de corda muito característico. Assim, ele rebatizou o Tritantri Veena de 3 cordas como Sehtar, que significa três cordas em persa, tornando-se o que conhecemos hoje como sitar.

O sitar, um instrumento de cordas dedilhadas, amplamente utilizado em todo o subcontinente indiano desde a sua criação no século XIV, tornou-se popularmente conhecido no mundo inteiro através das obras de Ravi Shankar, começando no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Não somente, mas bandas ocidentais famosas como os Rolling Stones, The Beatles, The Doors e algumas outras chegaram a usar o sitar em algumas de suas composições.

O próprio George Harrison possuía um sitar, e podemos ver a aparição do instrumento nas seguintes músicas dos Beatles:

O instrumento chegou a ganhar uma versão elétrica, potencializando assim o seu já característico som.

Já a tabla é um instrumento de batuque duplo, onde se usa as duas mãos para tocá-lo. Desde o século XVIII, a tabla tem sido o principal instrumento de percussão na música clássica hindustani, onde pode ser tocada solo, como acompanhamento de outros instrumentos e vocais e também como parte de conjuntos maiores, sendo muito popular em performances na Índia, Bangladesh, Paquistão, Nepal, Afeganistão e Sri Lanka.

Como dito acima, o apelido “voz da Índia” para Amir Khusrau não é à toa: a tabla, por exemplo, tornou-se um instrumento amplamente utilizado em certas tradições hindus e sikhs, assim como nas canções sufis qawwali, também de sua criação.

 

Anexo 1

Instrumento 01: a tabla, um tambor duplo criado por Amir Khusrau.

Instrumento 02: sitar, o instrumento de corda criado por Amir Khusrau e usado por algumas bandas famosas ocidentais do século passado.

Instrumento 03: sitar elétrico, muito parecido esteticamente com a moderna guitarra elétrica.

 

NOTAS

[1] Curiosidade: o estado indiano de Uttar Pradesh possui mais de 200 milhões de habitantes, quase a população do Brasil inteiro (lembrando que o Brasil é maior que a Índia em extensão territorial).

[2] Masnavi, ou mathnawi, é uma forma de poema escrito em pares de versos. Grande exemplo de poeta com escritos nessa forma característica foi Rumi.

[3] Em 1320, Mubarak Shah Khalji foi morto por Khusro Khan, que acabou com a dinastia Khalji e se tornou brevemente o sultão de Deli. No mesmo ano, Khusro Khan foi capturado e decapitado por Ghiyath al-Din Tughlaq, que se tornou o mais novo sultão, dando início à dinastia Tughlaq. Em 1321 Khusrau começou a escrever um masnavi histórico chamado Tughlaq Nama (Livro dos Tughlaqs) sobre o reinado de Ghiyath al-Din Tughlaq e de outros governantes da dinastia Tughlaq.

 

REFERÊNCIAS

BANERJEE, Snigdha. Amir Khusrau’s contribution to Indian music. City Spidey, 2021.

MISRA, Susheela. Great Masters of Hindustani Music. Hem Publishers, 1981.

SHARMA, Sunil. Amir Khusraw: The Poet of Sultans and Sufis. One World Publications, 2005.

SINGH, Thakur Jaideva. "Khusrau's Musical Compositions". In Ansari, Zoe (ed.). Life, Times & Works of Amir Khusrau Dehlavi. New Delhi: National Amir Khusrau Society, 1975.