Perto da morte, um cavaleiro imperial tirolês do século XV chamado Jörg von Ehingen (1428-1508) decidiu contar a história de sua juventude, como cavaleiro. Suas memórias contam a história de um jovem ansioso para cumprir seu destino em uma vida de serviço cortês. Ele ascende militarmente, se distingue em uma rede de política principesca e viaja por toda a Europa em busca de monarcas interessados em serviço militar voluntário. Raramente as fontes medievais chegam tão perto do mundo interior dessa evocativa e desconcertante figura histórica: o cavaleiro medieval.

Sendo possivelmente a única autobiografia conhecida de um cavaleiro, a história de von Ehingen é preciosíssima tanto para historiadores quanto para entusiastas, ao passo que corrige e ao mesmo tempo confirma estereótipos clássicos da sua classe. Ehingen parece ser a união de todos os extremos geralmente associados positiva ou negativamente a cavaleiros: soldados implacáveis, guerreiros desejosos por fama, paladinos da fé, entusiastas de torneios e cortesãos intensamente envolvidos em festas, danças e romances.

Por conta da condição ligeiramente mais elevada de Ehingen – cavaleiros imperiais sendo quase tão poderosos quanto barões – e de suas conexões políticas, Ehingen pode se tornar um verdadeiro cavaleiro andante, viajando para lugares como a Rhodes dos Cavaleiros Hospitalários, Palestina Mameluca, Rússia, Inglaterra, Navarra, Catalunha, Castela, Leão e Portugal. Apesar de ter evitado a Granada Nasrida, a chegada de Ehingen na corte de Lisboa permitiu que ele participasse de uma experiência atípica para um cavaleiro alemão: lutar contra os muçulmanos no Marrocos, em pleno século XV.

O relato, que se situa durante o Cerco do Sultanato Marinida a Ceuta (1457), é fruto de uma das várias tentativas marinidas de recuperar o grande porto que os portugueses tomaram de mãos muçulmanas, em 1415. Segue o relato:

“Chegou aos nossos ouvidos na corte que, entre outras informações, havia notícias de que o Rei de Portugal estava engajado em uma guerra séria, tanto por mar quanto por terra, com os infiéis na África, especialmente contra o rei pagão de Fez, por conta de uma grande cidade marítima na África chamada Ceuta, que o Rei de Portugal tomou deste há alguns anos. Fomos então aconselhados a prosseguir à toda velocidade para Portugal. Tendo, então, suplicado ao Rei de Navarra para que pudéssemos nos retirar, o que ele concedeu graciosamente, nós partimos com grande honra e com a garantia de que seriamos tratados através do reino com grande respeito.

[...]

Nessa altura chegou uma mensagem urgente ao Rei da África, do capitão-mor de Ceuta, informando que o Rei infiel de Fez, auxiliado por outros reis africanos, estava a mobilizar-se e a preparar-se para a guerra e pretendia marchar contra Ceuta com um grande exército, para que pudesse conquistá-la e mantê-la novamente. O rei mandou chamar-nos e deu-nos a notícia. Diante disso, imploramos a Sua Majestade que nos capacitasse para lutar contra os infiéis, o que ele fez com muita gentileza. Ele deu a cada um de nós um [cavalo] jennet forte, e a cada um de nossos pagens uma armadura basculante chamada brigandina, e ordens foram dadas para que uma grande companhia da corte e de outros lugares partisse para Ceuta. Uma vez no mar, fomos rapidamente despachados de Portugal para a África, pois ali o mar é estreito. Na noite em que chegamos a Ceuta, na grande cidade, todo o grupo reuniu-se numa vasta praça com armaduras e armas à mão, e nessa noite muitas mensagens foram recebidas, informando que os infiéis se aproximavam em grande número.

[...]

Quando o rei português foi informado da gravidade do ataque, ele propôs vir pessoalmente [para a África] e cavalgar até Ceuta com todas as suas forças, com o intuito de atacar os infiéis da cidade e cair sobre os seus exércitos, pois não era possível enfrentá-los senão desta forma. Quando os infiéis souberam disso, eles nos assaltaram [ie. as muralhas de Ceuta] por três dias consecutivos, começando ao raiar do dia e continuando pela noite. Então, de fato, houve muito esforço de ambos os lados, e embora incontáveis números de infiéis tenham sido alvejados e derrubados por volta da cidade, nas valas e nas paredes; acontecia com tanta frequência que os cristãos foram repelidos pelos ataques quando o capitão não estava preparado no seu contra-ataque, nos colocando sob dificuldades. Todavia, como os infiéis nos atacaram por três dias, como mencionado antes, eles perderam um número extraordinário de homens, fazendo subir um fedor maligno dos cadáveres e fazendo-os cessar seus ataques e recuar.

[...]

E quando a noite caiu, alguns de nossos homens se aproximaram e relataram que um homem poderoso entre os infiéis desejava entrar em combate com um cristão na planície entre as duas colinas. Então implorei ao capitão que me enviasse, pois eu estava bem disciplinado e muito apto em armadura de combate montado. Eu também tinha um jennet forte que o rei havia me presenteado. O capitão consentiu e fez soar o sinal para cessar os combates, e as hostes se reuniram. Então fiz uma cruz com minha lança e, segurando-a à minha frente, saí cavalgando do nosso exército em direção aos infiéis através do vale e, quando os infiéis viram isso, voltaram também para seus exércitos. Nosso capitão também enviou um trompetista em direção aos infiéis, o qual soprou o ruído e deu o sinal.

Então, muito rapidamente, um dos infiéis apareceu, cavalgando pela planície em um belo corcel berbere. Não me demorei e me dirigi imediatamente para encontrá-lo. O infiel jogou seu escudo para frente, e, colocando sua lança sobre o braço [ie. à moda berbere e andaluza], correu rapidamente em minha direção, soltando um grito. Eu me aproximei com minha lança apoiada na coxa, mas ao chegar perto, deitei a lança e estoquei em seu escudo. Embora ele tenha me atingido com sua lança no flanco e antebraço, fui capaz de dar-lhe um golpe tão poderoso que tanto homem quanto cavalo caíram no chão.

Mas sua lança, pendura na minha armadura, me atrapalhou, e eu tive grande dificuldade para removê-la e descer do cavalo. A essa altura, ele também havia desmontado. Eu estava com minha espada na mão. Ele, de forma semelhante, também sacou sua espada. Nós avançamos e demos um forte golpe um no outro.

O infiel tinha uma excelente armadura, e embora eu o tivesse atingido no escudo, ele não foi ferido. Nem os seus golpes me feriram. Então nos agarramos e lutamos corpo-a-corpo por tanto tempo que caímos no chão lado a lado. Mas o infiel era um homem de força incrível. Ele se soltou de minha pega, e ambos nos levantamos até ficarmos ajoelhados lado a lado. Então o empurrei com a mão esquerda para poder golpeá-lo com a minha espada, e isso consegui fazer, pois com o golpe seu corpo estava tão longe que eu fui capaz de cortar seu rosto e, embora o golpe não tenha sido totalmente bem-sucedido, feri-o de modo que ele cambaleou e ficou meio cego. Em seguida, dei-lhe um golpe direto no rosto e joguei-o no chão, então, caindo sobre ele, enfiei minha espada em sua garganta. Depois disso me levantei, peguei sua espada e voltei para o meu cavalo. As duas bestas estavam lado a lado. Elas haviam trabalhado arduamente o dia todo e estavam bastante quietas.

Quando os infiéis viram o que eu havia conquistado, eles retiraram suas forças. Mas os portugueses e cristãos se aproximaram e cortaram fora a cabeça do infiel, pegaram sua lança e colocaram a cabeça sua ponta, depois removeram sua armadura. Era uma armadura cara, feita à moda pagã, muito forte e ricamente ornamentada. Eles também pegaram o escudo e o cavalo, e me levaram de volta ao capitão. Ele estava extremamente satisfeito e me abraçou, um sentimento de grande alegria se espalhou por todo exército. Mas naquele dia, um grande número de homens e cavalos foram feridos ou abatidos, em ambos os lados. O capitão comandou que a cabeça do infiel, seu cavalo e escudo fossem levados a mim, e que os senhores e cavaleiros mais famosos, juntamente com seus assistentes, deveriam seguir. Eu tive que cavalgar com eles precedido por um trompetista e então eles me levaram em triunfo através da grande cidade de Ceuta. Os cristãos estavam muito felizes, e deram mais honras a mim, muito mais do que eu merecia. Deus Todo Poderoso lutou por mim naquela hora, pois eu nunca estive em grande perigo, apesar de o infiel ser um homem muito forte. E eu tinha consciência que sua força era muito maior que a minha. Senhor Deus seja louvado pela eternidade.''

Eventualmente, os portugueses venceriam o cerco, permitindo que Ceuta permanecesse sob domínio católico. E embora Ehingen não descreva exatamente que tipo de armadura o campeão marroquino trajava, sabemos que ela seguia “uma moda pagã”, isto é, muçulmana; provavelmente uma forma de jazerina feita de malha de aço revestida coberta por ambos os lados com acolchoamentos (como um sanduíche) e finalmente revestida por uma camada mais externa de tecido, como seda. Apesar de armaduras serem definitivamente raras em uso berbere, especialistas em cavalaria leve e desarnesada, o relato de Ehingen pelo menos deixa estabelecido que guerreiros mais notórios, como no caso deste campeão, realmente faziam uso de armaduras, e armadura pesadas; fortes o suficiente para ganharem o reconhecimento de um cavaleiro alemão, em pleno século XV, no auge das armaduras de placas.

Fonte: Malcolm Letts, ed., The Diary of Jörg von Ehingen (Oxford: Oxford University, Press, 1929).