A lenda do bumba meu boi do Maranhão é uma das mais conhecidas e celebradas manifestações culturais do Brasil, principalmente no Nordeste. E não é para menos: a tradição existe desde o século 18. Por isso, até quem não gosta muito da folia junina conhece ou já ouviu falar do drama de Catirina e Pai Francisco.

A história do casal de escravos que trabalhava em uma fazenda possui algumas variações. A mais conhecida afirma que Catirina, grávida, teve o desejo de comer língua de boi. Mas não de qualquer boi. A escrava queria comer a língua do novilho mais querido do patrão – ou amo, como também é conhecido o dono da fazenda.

No credo popular, quando desejo de grávida não é atendido, o bebê corre risco de morrer ou nascer deformado. Por isso, Pai Francisco, mesmo sabendo o enorme risco que corre, atende ao pedido da esposa e mata o boi. Mas, para a desgraça de Nego Chico, o patrão descobre e manda seus vaqueiros atrás dele. Pai Francisco é capturado e ameaçado.

O patrão, em desespero pela morte do animal, convoca médicos para salvá-lo, mas nenhum consegue reverter a situação. Toda a fazenda é mobilizada. Finalmente, chegam os pajés e feiticeiros da floresta e conseguem ressuscitar o boi. O patrão fica tão feliz que resolve poupar a vida de Nego Chico. Homem e boi estão salvos, então, uma grande festa é realizada com todos da fazenda.

Dentro de algumas variações da história e lendas incluídas dentro da lenda principal, há também a crença de que o Boi Mimoso, personagem principal da história, era tão talentoso que saberia até dançar. Outro “fato” que gera controvérsias é o destino de Pai Francisco enquanto o boi está morto. Alguns dizem que ele fugiu e se escondeu com Catirina e outros, que ele foi pego pelos vaqueiros.

De acordo com o dramaturgo e pesquisador Tácito Borralho, a narrativa faz parte de uma história popular europeia que chegou há séculos no Brasil pelas caravelas portuguesas: trata-se de um conto vindo da Península Ibérica, intitulado “O vaqueiro que não mentia”, que narra uma história semelhante à trajetória de Pai Francisco e Catirina, hoje popularmente conhecida. “O popular foi se apropriando dessas coisas por meios orais, que foram sendo transmitidas de tempo em tempo”, aponta Tácito.

A estória narra um Vaqueiro honrado que não mentia. Sua personalidade verdadeira é, no entanto, testada quando um desafeto obriga a filha a seduzi-lo e convencê-lo a matar o boi preferido do fazendeiro, o obrigando a mentir (coisa que não fazia). No final o vaqueiro conta a verdade, não mente, e é perdoado.

A essência da lenda enlaça a sátira, a comédia, a tragédia e o drama, e demonstra sempre o contraste entre a fragilidade do homem e a força bruta de um boi. Esta essência se originou da lenda de Catirina e Pai Francisco, de origem nordestina.

As evidências da história desta indubitavelmente antiga e oriental lenda são escassas e tardias, exigindo uma investigação mais aprofundada.  A história apareceu no Ocidente em duas versões turcas estreitamente relacionadas (na verdade são a mesma história), sugerindo que nasceu entre os otomanos e entrou na Europa num momento não especificado, para aí experimentar maior elaboração e diversificação.  A história como um conto turco, por si só, deve ser atribuída ao reinado de Amurath II (Murad II, 1421-1451), de acordo com o manuscrito 'princeps', eventualmente traduzido por François Pétis de la Croix (1625-1695),  em que o governante é nomeado.  Mas é evidente que os próprios otomanos eram detentores literários de uma tradição mais antiga, pois as histórias não só circulavam na Europa antes dessa data, mas também o “autor” otomano reconhece sua dívida para com os originais árabes de obras não especificadas e possivelmente não sobreviventes.  Entre esses contos está a esplêndida ‘História de Saddyq, Mestre do Cavalo’. Togaltimur-Can, rei da Tartária, empregou Saddyq (Verdadeiro) como seu mestre de cavalos devido à sua incapacidade de mentir.  Mas o vizir Tangribirdi o odiava sem motivo, além da inveja, e buscou a morte de Saddyq. Como uma força na corte, orgulhava-se da sua capacidade de arruinar os cortesãos à vontade e, por essa razão adicional, sentia-se ofendido pela virtude incontestável do mestre dos cavalos.  Seguindo a causa do pai, Hoschendan (Formosa) se preparou para a missão tanto em questão de maquiagem quanto de guarda-roupa.  Na porta da empregada, ela dispensa seus escravos e entra sozinha para praticar todas as suas incomparáveis artes de sedução – uma parte da história sem dúvida apreciada tanto por contadores quanto por ouvintes.  Transportado pelo desejo, Saddyq torna-se uma massa em suas mãos, mas não sem protestos e um longo período de resistência.  Ela anseia por uma refeição de fígado e coração de cavalo – uma iguaria otomana – composta pelos órgãos do animal mais valioso do estábulo.  Saddyq se oferece para comprar um cavalo em seu lugar, mas ela não aceita nenhuma substituição.

Ele deve concordar com suas condições maliciosas para satisfazer seu frenesi erótico.  Depois do jantar mútuo, ela pelo menos pagou sua dívida durante a noite antes de voltar para casa para contar ao pai sobre sua façanha - um preço caro pago para apaziguar um pai que, de outra forma, ficaria encantado com seu sucesso.  O vizir então relata tudo ao rei, ignorando o envolvimento sexual de sua filha.  O mestre dos cavalos é chamado a prestar contas.  Enquanto isso, impressionado com a consciência de sua própria loucura, o protagonista realiza uma situação simulada, falando com seu chapéu como se fosse o rei Togaltimur.  Depois de ensaiar ambas as respostas, ele percebe que tanto na mentira como na verdade ele seria cortado em pedaços, e que a verdade é, portanto, o melhor caminho a seguir.  Após o verdadeiro encontro, o rei dirige-se ao vizir e pede uma punição adequada, ao que este recomenda uma morte ele seja queimado lentamente.  Não houve nenhuma aposta nem vitória em que o rei pudesse encontrar consolo para a sua perda.  Em vez disso, como magistrado, ele simplesmente opta pela misericórdia em vez da justiça porque o seu mestre de cavalos disse a verdade, confessando que em seu lugar teria sido igualmente tentado. Quanto ao vizir, seu segredo sujo não foi revelado, mas sua decepção o leva ao leito de doença, percebendo que sua filha se prostituiu por nada.

Outra versão interveniente, publicada em 1800 no Volcks-Sagen de Johann Carl Christoph Nachtigal (Otmar), confirma a ampla (e necessária) circulação da história no século XVIII, esta vinda do norte da Europa.  Foi aprimorado de forma totalmente cômica e novelística e completamente limpo em questões de licença sexual e conduta vergonhosa.  Esta trama se resume a uma aposta entre dois bispos amigos, com um barril de vinho bastante caro em jogo entre eles.  O bispo local, Heinrich, tem um carneiro de estimação sob custódia de seu fiel pastor, Conrad.  O bispo visitante, irritado com a familiaridade de Heinrich com seu criado, de quem ele conversa sobre o casamento, e em cuja honestidade categórica ele expressa confiança, decide diminuir o crédito do pastor. De volta a casa, ele pede conselhos a seu homem de confiança, Peter, que é como um tolo da corte e conselheiro para ele.  Peter propõe que eles recrutem Lise, a mulher que Conrad corteja, para comprar o carneiro dele ou renunciar ao seu eventual casamento.  Conrad oferece-lhe muito mais em seu lugar, mas ela insiste, dizendo que já havia prometido aquele animal específico a outro e então começa a chorar, enquanto insinua em tom acusatório as mentiras explicativas que ele poderia empregar.  O pastor então crava seu cajado no chão e então pendura seu casaco para representar o bispo.  

Num diálogo consigo mesmo, ele experimenta todas as desculpas, percebendo que nunca conseguiria realizar tais mentiras.  Então ele decide pela verdade, dá o carneiro a Lise pelo dinheiro da casa dela e se prepara para enfrentar os dois bispos, que a essa altura estão esperando por ele.  O carneiro já está no estábulo de Peter e ele se regozija com sua vitória iminente.  Mas Conrad diz a verdade em todos os detalhes, deixando o bispo local irritado e ao mesmo tempo encantado, uma vez que a verdade de tudo isso seja confirmada. O bispo visitante admite sua conspiração e seu fracasso.  Então o bispo Heinrich se oferece para oficiar o casamento do pastor e dar aos recém-casados metade de seu rebanho.  O bispo visitante devolve o carneiro e manda construir o grande barril que ainda hoje é visto em Halberstadt.  Este é um tratamento literário de acordo com as sensibilidades alemãs do final do século XVIII, mas no centro está a ação característica da tentação fracassada, tudo falando da sabedoria do título: 'Erlich währt am längsten!'  ). Esta adaptação literária tem dupla função como exemplum de um texto e como conhecimento explicativo sobre as origens do barril de Halberstadt.

Outros  dois exemplos da distribuição pan-europeia da história podem ser citados aqui, o primeiro deles contando sobre “Faithful Svend” dos contos de fadas dinamarqueses, em que dois homens apostam o seu dinheiro sobre a lealdade e veracidade perfeitas de Svend, o vaqueiro. O caluniador de Svend no assunto aceita a aposta e o envia com uma mensagem para sua esposa.  Ela o deixa bêbado, faz com que ele jogue fora suas roupas finas emprestadas para a ocasião e o expulsa.  No caminho de volta, ele se envolve em situações simuladas, colocando o chapéu esfarrapado na bengala, ensaiando mentiras que não pode confiar em si mesmo para contar.  Ao dizer a verdade, ele ganha a aposta e ganha para si o patrimônio perdido.  É uma versão bastante banalizada e limpa, desprovida de todo jogo erótico, mas mostra a atualidade da história no Norte.  O segundo vem de Portugal.  ‘O boi Cardil’ é a história do criado do rei que nunca conseguia mentir.  Quando o rei se vangloriou dele, o ouvinte riu e começou a planejar sua queda.  Sua esposa participou do suposto escândalo sexual que envolveu o massacre do Boi Cardil.  As perguntas do rei, as respostas do ritual e então a verdade pura se encaixam.


Referências:

STRAPAROLA, Giovan Francesco. The Pleasant Nights. University of Toronto Press, 2012. v. 1.

BRAGA, Teófilo. Preliminar In : Contos tradicionais do povo português (I) [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 1987 (généré le 29 janvier 2024). Disponible sur Internet : <http://books.openedition.org/etnograficapress/5338>. ISBN : 979-10-365-4460-6. DOI : https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.5338.

O IMPARCIAL. Entenda a história da lenda de Catirina e Pai Francisco. 11 de junho de 2017. Disponível em: https://oimparcial.com.br/noticias/2017/06/entenda-historia-da-lenda-de-catirina-e-pai-francisco. Acesso em: 20/09/2024.

 

Fonte: Cultura Nordestina