O mundo islâmico muitas vezes foi palco de movimentos e personalidades políticas tão ímpares como incomuns: desde os movimentos kharijitas nos primórdios do Islã, com suas doutrinas legalistas e inflexíveis, passando pelos esotéricos batiniyya, que originaram o famoso Al-Hakim bi Amr’-Allah, o “Califa Louco”, indo até os movimentos sufis da Andaluzia.

Uma dessas personalidades absolutamente únicas foi o líder e fundador da Dinastia e do Califado Almóada, Abu Abd'-Allah Amghar ibn Tumart. Ibn Tumart nasceu perto de Sous, no interior do Marrocos, numa vila que era chamada Igiliz, cuja localização é incerta. Como comum dentre os berberes, era um membro de uma tribo, a de Hargha, que por sua vez fazia parte da Confederação de tribos berberes dos Masmuda. Seu sobrenome, Tumart, é um apelido berbere que pertencia a seu pai, significando “bem afortunado” ou “feliz”. Não há tantas fontes sobre seus primeiros anos, mas uma delas advém diretamente do grande filósofo e historiador Ibn Khaldun, que relata que, quando criança, Ibn Tumart já era um garoto de grande devoção religiosa, sendo apelidado de Asafu, ou “acendedor de velas” pelo seu hábito de acender as velas da mesquita para os fiéis não rezarem no escuro durante a noite.

É dito por alguns que seria um sayyid, um descendente do Profeta Muhammad através da linhagem de Muley Idris I do Marrocos, que era descendente de Hassan ibn Ali, neto do Profeta. No entanto, essa afirmação não é muito plausível e nem palpável, uma vez que era comum que tais afirmações de ascendência do Profeta fossem comumente utilizadas entre os berberes, a fim de ganharem reconhecimento religioso e político, em algo conhecido como xarifismo; por esse motivo, tais alegações são disputadas, embora Ibn Khaldun dê respaldo às mesmas.

Ibn Tumart em sua juventude estudou na brilhante Córdoba na Ibéria. Lá, além de estudar os princípios da jurisprudência islâmica, aprofundou-se nos escritos de al-Ghazali e nas doutrinas e credos dos asharitas e mutazilitas, tendo também lá estudado com o renomado jurista malikita andaluz Abu Bakr At-Turtushi de Tortosa. É possível que ele tenha viajado para Bagdá, aderindo à já extinta escola jurisprudencial dos Zahiritas, cujo grande expoente no eixo Magrebe-andaluz foi ninguém menos que Ibn Hazm, diferenciando-se, entretanto, do zahirismo tradicional por sua rejeição do taqlid. Também foi em Bagdá que Ibn Tumart desenvolveu seu próprio sistema de crença metafísica combinando as doutrinas asharitas com um toque do misticismo sufi de al-Ghazali.

“Ele compôs sua própria identidade sectária através da combinação das visões Maliki e Zahiri, o kalam dos Ash’ariyya e Mu’tazilas, o pensamento do Imamato Xiita e a ‘’crença’’ no Mahdi, além de alguns princípios kharijitas que trouxe de suas próprias experiências. Sua identidade sectária emergiu como resultado de uma atitude seletiva. Com a identidade sectária que compôs, ganhou terreno apresentando tanto sua personalidade ativa quanto seus objetivos políticos.”

Abdullah Ö. Yavuz [1]

É dito que, em pelo menos uma ou outra ocasião, Ibn Tumart teria tido aulas diretamente com o grande al-Ghazali em Bagdá. Os Almorávidas, a dinastia malikita e puritana que Ibn Tumart destronou em sua rebelião, curiosamente eram opositores e denunciantes de al-Ghazali, com seus alfaquís chegando mesmo ao ponto de publicamente denunciá-lo como kaffir (descrente) e queimar suas obras em praças públicas, como foi o destino de seu famoso magnus opus Ihya Ulum al-Din (O Reavivamento das Ciências Religiosas). Segundo um relato um tanto quanto ‘lendário’, foi após a queima dos exemplares do Ihya pelos almorávidas que o imã al-Ghazali teria dito a Ibn Tumart – por ser conterrâneo dos almorávidas, também de origem berbere – que seria a tarefa pessoal dele espalhar os ensinamentos que adquiriu consigo em Bagdá pela sua terra natal.

Ibn Tumart desenvolveu uma forte aderência à escola Zahiri, opondo-se virulentamente à escola Maliki, a escola jurisprudencial à qual os almorávidas aderiam e todo o Ocidente islâmico ibérico que seu movimento iria militarmente conquistar. Suas acusações contra o Malikismo consistiam em acusá-los de negligenciar a Sunnah (exemplo profético) e os Ahadith (ditos do Profeta) e dar ênfase demasiada à ‘ijma (o consenso dos juristas) e outras fontes, condenando tais posições como bidah (inovação) e classificando-as como possivelmente heréticas, também. Sua crença dava ênfase ao conceito de tawhid (unidade) Divina, rejeitando tanto o que percebia como sendo um “antropomorfismo” do Islã ortodoxo quanto o ato de atribuir qualquer qualidade ou adjetivo que fosse à Deus.

A sociedade almorávida, apesar do ‘puritanismo’ de seus governantes e juristas, de fato não conseguia coibir alguns traços nada ortodoxos presente nas sociedades berbere-magrebinas: em muitos mercados havia, livremente, venda de produtos haram, proibidos, como vinho e carne de porco. Além disso, indo mais acima, na sociedade peninsular ibérica do Al-Andalus, havia tradicionalmente uma cultura licenciosa, “poética” e até mesmo sincretista no que diz respeito a relações entre muçulmanos e não-muçulmanos e suas relações sociais e interpessoais. Essas características levaram Ibn Tumart a acusar os almorávidas de não serem suficientemente ‘rígidos’ com seus súditos, além de afeminados, por sua cultura matriarcal. Dessa forma, Ibn Tumart pontuava uma necessidade urgente de reformas no sistema de governança e jurisprudência do Estado Almorávida.

Após terminar seus estudos em Bagdá, Tumart fez a peregrinação até Meca, partindo logo após isso para o Egito, onde, em Alexandria, tomou um barco para sua terra natal do Magrebe. Nesta viagem, somos confrontados com mais um relato semi-lendário de sua vida: no barco, o piedoso Ibn Tumart começou a admoestar os marinheiros, jogando para fora odres de vinho que lhes pertenciam e exortando-os a fazerem as orações nos horários corretos; os marinheiros, irritados, lançaram-no para fora do navio. A ação não deu muito resultado, pois logo depois, à frente do caminho, encontraram-no boiando, trazendo-o de volta ao navio. Também na viagem, é dito que Ibn Tumart haveria acalmado uma tempestade que acometeu a embarcação.

Por volta do final de 1120, Ibn Tumart chegou à sua terra natal do Magrebe. Lá, numa caverna perto de sua vila natal de Igiliz, ele adotou um estilo de vida ascético e pétreo. Não demorou muito para que espalhasse entre os amazigues da região uma certa fama de milagreiro e santo atribuída ao “homem da caverna”. Saindo da caverna ,Ibn Tumart começou a pregar publicamente a seu povo e a seus governantes, exortando os muçulmanos à uma reforma tanto exterior quanto interior: reforma administrativa no âmbito político e reforma de caráter, no âmbito pessoal, caracterizada por uma aderência maior e mais arraigada aos princípios e compromissos de uma sociedade de indivíduos islâmicos (à qual eram empecilho os não-muçulmanos: judeus e cristãos, o que fez com que estes grupos caíssem em má visão aos olhos de Ibn Tumart).

Uma khutba (sermão) em específico foi definitivo na vida e na carreira, tanto política quanto religiosa, de Ibn Tumart: no fim do mês de Ramadã em 1121, após ‘colocar a boca no trombone’ contra os almorávidas, Ibn Tumart “revelou-se” como sendo o Mahdi, o tão esperado Messias muçulmano que viria no final dos tempos para liderar os fiéis em batalha contra as forças dos descrentes e assim governar o mundo com justiça, equidade e, no caso de Ibn Tumart, com punhos de ferro. O mahdismo enquanto fenômeno sócio-religioso não era, contudo, novidade à região, uma vez que o vale do Sous já havia sido alvo de atividade missionária xiita de uma seita conhecida como waqafiyya, o que pode ter influenciado, senão na megalomania de Ibn Tumart, a sua audiência a aplaudi-lo enquanto Mahdi. A partir desta auto-revelação, que foi recebida de braços abertos pelos berberes da região e pelos já seguidores de Ibn Tumart, teve início o movimento auto-intitulado al-muwwahidun, isto é, “os monoteístas” em árabe, que ficaria conhecido na literatura ibérica como almojades ou almóadas, declarando que aqueles que não se submetessem à sua autoridade messiânica deveriam ser considerados apóstatas fossem de qualquer religião que fossem.

Isso representava de fato uma revolta contra o Estado Almorávida. Convencido por um de seus seguidores, um chefe tribal, a refugiar-se numa fortaleza nos Montes Atlas, ao compasso que sua caverna virava alvo de peregrinação entre seus seguidores, que lá iam para renunciar às suas vidas até então levadas e serem “adotadas” pela tribo de Ibn Tumart. Enquanto isso, Tumart e seus comandantes incitavam as tribos berberes à rebelião contra os infiéis almorávidas. Seis principais tribos da Confederação Masmuda aderiram à sua causa, incluindo a própria tribo de Ibn Tumart, os Hargha. O comandante-em-chefe de Ibn Tumart, Al-Bashir, após juntar suas forças para partir em conflito aberto contra os almorávidas, realizou uma purga de “indivíduos desleais” para com a santa causa almóada, no que alguns historiadores chamam de “um breve reinado de terror” entre as fileiras rebeldes.

Após crescerem em número e em recursos, os almóadas conseguiram fazer frente eficientemente aos almorávidas, a ponto de levantarem cerco sobre sua capital, Marrakesh. O Emir Almorávida, Ali ibn Yusuf, imediatamente chamou por reforços de todas as localidades do Marrocos e além; uma vez congregados, o exército almorávida foi ao encontro dos almóadas em Maio de 1130 e, na Batalha de al-Buhayra, os almóadas sofreram uma humilhante derrota que abalou suas estruturas e matou muitos de seus comandantes, incluindo Al-Bashir.

Pouco depois da derrota, em Agosto do mesmo ano (1130), Ibn Tumart veio a falecer em circunstâncias desconhecidas. Sua morte, juntamente com a derrota em al-Buhayra, foi um duro golpe ao movimento almóada, mas não foi, entretanto, seu fim: as sementes da rebelião já estavam plantadas e se espalhando pelos quatro cantos de Ifriqiya (África) e até em Al-Andalus. O movimento almóada eventualmente subjugaria e destronaria os almorávidas, deixando o legado de Abu Abdullah Ibn Tumart – sua teologia e suas crenças – mais vivas que nunca, criando um Império que cobria partes da Europa e da África, cunhava moedas quadradas para anunciar o fim da ordem mundial, e já não tolerava mais a presença de judeus e cristãos vivendo com muçulmanos, dando a estes a opção entre exilio, conversão e morte, algo que impactaria profundamente a vida no al-Andalus.

Bibliografia:

  • Fletcher, Madelaine (1991) "The Almohad Tawhid: Theology which relies on logic", Numen, Volume 38.
  • Hopkins, J.F.P. "Ibn Tūmart". Encyclopaedia of Islam, Brill.