Por que judeus têm mais prêmios Nobel que muçulmanos?
Autor: Rafael de Mesquita Diehl 10/06/2024Quando olhamos a lista dos homens e mulheres que foram agraciados com algum Prêmio Nobel, notamos uma presença maior de indivíduos judeus em comparação ao número de muçulmanos. Muitos antagonistas do Islã usam esse fato como argumento que provaria a superioridade do povo judeu ou de sua cultura sobre a cultura gerada pela religião islâmica.
Esse tipo de comparação sequer é algo novo. Em outros momentos, pelo menos desde o século XIX, vários tipos de critérios pretensamente científicos foram levantados como forma de apontar uma suposta superioridade de uma população sobre outra, o que frequentemente serviu como justificativa para projetos de dominação. O caso mais evidente foi o do “racismo científico” e do “darwinismo social” defendido por acadêmicos, cientistas e intelectuais ocidentais nos séculos XIX-XX. Essa tese sustentava que europeus e norte-americanos eram superiores aos povos africanos, asiáticos e indígenas.
Tal pensamento serviu de arcabouço ideológico para a exploração colonial e imperialista ocidental sobre os continentes da África, Ásia e Oceania, bem como para a manutenção de estruturas discriminatórias contra indígenas, mestiços ou negros em países do continente americano. Essa ideia, já desacreditada pela comunidade científica, continua viva em certos nichos ideológicos racistas ou etnocêntricos. Um exemplo disso foi a recente declaração infeliz de um deputado bolsonarista que argumentou que africanos não teriam produzido sociedades democráticas por terem - segundo a sua visão - QI “inferior ao de macacos”. [Nota 1]
Alguns autores buscaram explicar a maior presença de judeus entre ganhadores do Prêmio Nobel a partir de ideias semelhantes, como um índice de QI mais elevado ou um background cultural que valorizava a leitura e o interesse por conhecimento. Nessa breve análise, vamos expor o problema por trás desse argumento a partir da tese de que ele gera uma comparação assimétrica e simplista, ignorando uma série de variáveis históricas, culturais, políticas e sociológicas.
O QUE É O PRÊMIO NOBEL?
Conhecido hoje como um momento de destaque na carreira de cientistas, intelectuais ou lideranças sociais e políticas, o prêmio Nobel foi criação do empresário e cientista sueco Alfred Nobel (1836-1896). Alfred usou sua fortuna para criar em 1895 um prêmio que reconhecesse pessoas com méritos científicos e acadêmicos pela sua contribuição para a humanidade. Como Nobel queria desassociar sua imagem dos conflitos bélicos devido às suas invenções de explosivos - segundo a narrativa tradicional - também foi criado uma categoria do prêmio para a paz, dando reconhecimento a pessoas que teriam ajudado a promover a paz entre os povos.
Assim, originalmente o Prêmio Nobel constava 5 categorias:
1) Física (concedido pela Academia Sueca de Ciências);
2) Química (concedido pela Academia Sueca de Ciências);
3) Fisiologia ou Medicina (concedido pelo Instituto Karolinska de Estocolmo, Suécia);
4) Literatura (concedido pela Academia Sueca);
5) Paz (concedido por pessoas indicadas pelo Parlamento da Noruega).
Posteriormente em 1968 também o Banco Central da Suécia criou um Prêmio para as Ciências Econômicas em memória de Alfred Nobel, que é chamado informalmente de “Prêmio Nobel da Economia”.
Em tese, o desejo de Nobel em seu testamento expressava “que na atribuição dos prémios não seja dada qualquer consideração à nacionalidade dos candidatos, mas que os mais dignos receberão o prêmio”.[Nota 2] Esse desejo do empresário sueco reflete a crença ocidental do século XIX na Ciência como algo neutro e objetivo. A própria comunidade científica europeia e americana do século XIX e primeira metade do século XX, entretanto, mostra o quanto o conhecimento científico - apesar de sua objetividade intrínseca enquanto informação - está rodeado de fatores subjetivos na sua produção, divulgação, interpretação e utilização.
Mesmo o criador do Prêmio Nobel não avaliava os povos apenas por seus méritos. Conforme uma matéria publicada no jornal israelense Haaretz, as correspondências de Alfred revelam um pensamento racista e misógino. De particular imprtância para o nosso tema é a visão antissemita que foi expressada por Nobel:
“Na minha experiência, os israelitas [judeus] nunca fazem nada por boa vontade. Eles agem meramente por egoísmo ou pelo desejo de se exibir – e como podem compreender uma característica de outra pessoa que lhes falta absolutamente? Os israelitas têm algumas características muito boas, que sempre reconheço, mas entre as pessoas egoístas e imprudentes eles são os mais egoístas e imprudentes. Para eles é “eu e a família” – todos os outros existem apenas para serem espoliados. Talvez eles estejam certos em agir assim, mas não deveriam se surpreender se forem tratados como tratam ou querem tratar os outros.” [Nota 3]
As declarações antissemitas de Nobel já devem servir como um indicativo de que o Prêmio criado por ele também não é isento de vieses, ideias preconcebidas e interesses subjetivos.
NOBEL: CIÊNCIA E GEOPOLÍTICA
Como as elites intelectuais e acadêmicas ocidentais oitocentistas acreditavam estar na vanguarda da ciência e do progresso, as primeiras premiações do Nobel (iniciadas em 1901) foram conferidas em sua grande maioria a indivíduos europeus e norte-americanos. Salvo algumas poucas exceções, asiáticos, latino-americanos e africanos aparecem com maior frequência na lista de premiados somente no período posterior a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
É claro que a maior globalização no período Pós-Guerra ajudou a intensificar a interação entre indivíduos,instituições científicas e filantrópicas e também, governos, de diferentes partes do mundo. Assim, a produção científica-cultural e as iniciativas filantrópicas do mundo não-ocidental puderam ser mais conhecidas dentro e fora do Ocidente.
Não há, contudo, como não percebemos a influência da grande projeção que as potências ocidentais e suas instituições exercem na geopolítica e o impacto que isso gera no cenário científico e cultural internacional. Nesse sentido, é muito difícil pensarmos que as instituições que conferem o Prêmio Nobel - todas ocidentais - não estejam “contaminadas” por fatores subjetivos e determinados vieses, de forma deliberada ou de forma inconsciente.
Ainda hoje as instituições científicas e projetos culturais dos países desenvolvidos do Ocidente - o “Norte Global” - (que poderia englobar além da Europa e América do Norte a Austrália que, apesar de sua localização geográfica meridional, está ligada culturalmente e economicamente à esfera europeia) se beneficiam de maiores financiamentos de governos e entes privados, resultante da maior riqueza produzida pelos países ocidentais e da maior estabilidade política presente nos mesmos, em especial a partir da segunda metade do século XX.
Por outro lado, estudantes e o público geral de países menos desenvolvidos possuem maior dificuldade de ingresso no meio acadêmico ou acesso ao conhecimento científico por conta da maior pobreza e instabilidade política de suas nações (resultado, em parte das intervenções políticas militares e exploração socioeconômica conduzida pelas potências ocidentais e outras nações nestes países em especial desde o século XIX).
Admitir a presença desses fatores políticos, econômicos, sociais e culturais na produção e divulgação da Ciência não significa adotar uma postura negacionista ou revisionista contrária aos avanços do conhecimento científico, mas sim compreender a dificuldade na difusão desse saber para públicos mais amplos. Somente a partir dessa compreensão é que é possível criar iniciativas que tornam a Ciência mais conhecida e que permitam que seus avanços possam ser aplicados para a melhoria do desenvolvimento humano, cultural e material de diferentes sociedades.
O fato de o Prêmio Nobel ser dirigido por instituições ocidentais e que o meio acadêmico europeu e norte-americano possuam maior atenção midiática e financeira faz com que cientistas, acadêmicos, intelectuais e outras personalidades públicas do Ocidente sejam mais conhecidas globalmente do que indivíduos de outros países.
OS NOBEL JUDEUS: ETNIA OU RELIGIÃO?
Quando alguns meios buscam comparar a disparidade entre nomes judeus (mais de 100) e muçulmanos (9) entre os laureados com o Prêmio Nobel, seus argumentos se ancoram em estatísticas que comparam ao grande número de personalidades judaicas entre os premiados em comparação com indivíduos e instituições de outras nacionalidades e religiões. Como existem judeus presentes em vários países do mundo (e, em particular, em diferentes instituições acadêmicas, culturais, políticas e filantrópicas), é natural que seu número somado seja superior ao número de laureados de outros países ou até mesmo de outras religiões. Mas afinal, de que judeus estamos falando?
Definir quem é judeu não é algo tão simples quanto possa parecer em um primeiro momento. Em geral, a definição que se dá de judeu é a de uma pessoa nascida de mãe judia. Entretanto, ao olharmos para a história e os estudos genéticos, veremos que - apesar de um alto grau de preservação da identidade construída em torno de uma herança cultural comum - veremos que os judeus se misturaram com os antigos povos habitantes da região de Canaã (atual Israel e Palestina) [Nota 4], que fizeram adeptos entre outras civilizações, que impuseram sua religião e costumes sobre determinadas populações, que suas crenças e práticas religiosas foram adotadas por outros reinos e que os grupos judeus na Diáspora se mesclaram com outras etnias das localidades onde se estabeleceram [Nota 5].
Vemos, então, que a “judaicidade” admite, em alguns contextos, a existência de conversão de um gentio (não-judeu) e o casamento entre judeus de nascença e judeus conversos. Tal fato demonstra uma certa natureza ambígua da identidade judaica: simultaneamente um grupo étnico e uma comunidade religiosa. Existesm também discussões na literatura religiosa judaica se o judeu converso pode ser considerado também um membro da comunidade judaica além de um simples adepto das crenças do Judaísmo. [Nota 6] Mas, se os judeus se disseminaram pelo mundo e se misturaram com outras populações, então o “povo judeu” na verdade comporta uma dinensão plural, heterogênea.
A diversidade do que chamamos de “povo judeu” pode se manifestar na divisão de duas grandes etnias judaicas do continente europeu, como os Ashkenazi originários do Cáucaso e os Sefarditas decentes dos judeus da Península Ibérica. Esses dois grupos, de pele mais clara, são as etnias judaicas presentes em maior número em outros países do Ocidente, como os EUA. Essa variedade se torna, contudo, mais visível quando voltamos nosso olhar para o Oriente: os judeus Mizrahim do mundo árabe, os judeus iemenitas, os judeus etíopes e até mesmo comunidades judaicas chinesas ou indianas.
Na Diáspora, a identidade dos grupos judeus era primordialmente uma comunidade religiosa, e que se distinguia mais por suas numerosas regras e costumes do que por práticas religiosas. De fato, muitos textos da tradição religiosa judaica (inclusive alguns livros da Bíblia Hebraica que os cristãos chamam de “Antigo Testamento”) tratam em maior quantidade de normas sobre os mais variados aspectos do cotidiano do que sobre questões teológicas (o que não significa, entretanto, que não haja uma rica produção teológica e mística na tradição judaica).[Nota 7] Nos potentados islâmicos os judeus viviam como súditos de seus governantes muçulmanos: embora mantivessem estatutos jurídicos próprios no tocante às suas observâncias religiosas, eles serviram aos seus califas e sultões em seus exércitos e aparatos administrativos.
No Ocidente e Oriente cristãos, a situação era diversa: embora tenham participado em alguns contextos na estrutura militar ou administrativa de seus monarcas, na maioria dos casos os judeus sofreram muitas restrições em sua participação política, social, administrativa e até econômica. O Direito Romano desenvolvido por imperadores cristãos e reis bárbaros e os cânones estabelecidos pelos Concílios Lateranenses do Papado no medievo proibiam as populações judaicas de assumirem cargos públicos e exercerem uma série de ofícios, o que acabou levando muitos judeus nessas regiões a se dedicarem ao comércio e aos bancos. Essa cultura de segregação favorecia o antagonismo cristão-judeu e a manutenção de uma identidade prórpia pautada no elemento religioso.
Observando o panorama histórico anteriormente sintetizado, podemos dizer que até o século XIX os judeus se identificavam como uma comunidade religiosa, o que se refletia na manutenção de normas e hábitos próprios, distintos da população cristã ou muçulmana com a qual conviviam. No século XIX, houve o surgimento do ideal nacionalista e a formação dos Estados-Nação. O modelo político do Estado-Nação entendia que uma população que compartilhasse uma herança cultural comum ou estava sob um mesmo ordenamento jurídico era uma Nação e que, por esse motivo, deveria constituir um único Estado, ou seja, uma unidade política (o que, na nossa linguagem cotidiana nos referimos mais comumente como “países”).
As Nações são “comunidades imaginadas”, e, como tal, são fruto do pensamento e ação humana. Isso significa que a Nação não é um elemento “natural” impresso em um determinado conjunto de pessoas, mas uma construção arbitrária humana, que está permeada de escolhas - muitas vezes impostas por uma parcela sobre outra - baseadas em critérios selecionados. Por esse motivo, o fato de um conjunto de pessoas compartilharem as mesmas características físicas (como a cor de pele ou a fisionomia do rosto) não significa necessariamente que constituam uma nação. A formação de uma identidade nacional específica depende de seu contexto histórico particular: racial, étnico, religioso, cultural, jurídico, etc. Mas, independente do critério, ter uma nacionalidade significa pertencer a uma determinada comunidade e participar - em algum grau - da vida social dessa comunidade, conferindo à pessoa uma identidade coletiva. O ideal do Estado-Nação é uma criação ocidental - mais especificamente de alguns povos europeus e das colônias inglesas da América do Norte. Foi só com o processo de descolonização da África e Ásia após a Segunda Guerra Mundial que o ideal nacionalista passou a ter força relevante no imaginário cultural e político daqueles povos, que construíram Estados-Nação sobre as colônias que adquiriam sua independência. Mas, durante o século XIX, os ocidentais pensavam em Estado-Nação como uma entidade soberana para si próprios, e não para outros povos, o que se reflete no processo colonialista da época, no qual as divisões étnicas, religiosas e culturais foram explorados pelas nações coloniais para facilitar seu domínio sobre as populações submetidas. Ironicamente, contudo, foi essa mesma presença colonial ocidental que colocou os povos colonizados em contato com as ideias políticas sobre o Estado-Nação e a reivindicação de autonomia política para si próprios. [Nota 8]
Mas voltemos ao caso dos judeus. Quando os antigos reinos, potentados, senhorios e cidades autônomas da Europa e as antigas colônias das Américas começaram a se transformar em Estados-Nação modernos a partir do século XIX, as populações judaicas também foram afetadas. Como em muitos países a ideologia política dominante via a raça e a religião como elementos formadores da identidade nacional, muitos grupos cultivavam ideias antissemitas, considerando os judeus como um elemento estranho e não como seus concidadãos e compatriotas. O isolamento social e espacial das comunidades judaicas em guetos e bairros separados presente desde vários séculos contribuiu ainda mais para esse sentimento.
O antissemitismo, contudo, não era algo presente de forma homogênea naquelas sociedades ocidentais, e por isso em muitas nações as leis e constiuições concederam igualdade de direitos e o reconhecimento da nacionalidade e cidadania para seus habitantes judeus. Outrora relegados ao ostracismo social, os judeus passaram a atuar na administração pública, na política e nas forças militares, e muitos chegaram a assumir altos cargos nessas esferas. Surgiu então dentro do contexto judaico uma mentalidade assimilacionista: esses judeus se viam como cidadãos de seus países, se identificavam com a nacionalidade das sociedades em que estavam inseridos e lutavam por manterem seu espaço em pé de igualdade com os demais membros de suas nações. Tal como no meio cristão, os judeus ocidentais também foram influenciados pelos ideais iluministas, liberais, secularistas e mesmo pelas ainda marginais correntes socialistas. Surgiu então uma divisão entre os judeus ocidentais: uns mais religiosos, outros mais seculares (havendo inclusive agnósticos e ateus). Haviam ainda indivíduos de origem judaica que, por convicção ou conveniências sociais, se converteram ao cristianismo.
Com o surgimento do Sionismo a partir do século XIX, uma parcela dos judeus (em sua maioria de países do Ocidente) criaram a ideia do povo judeu como uma Nação a parte que, tal como pregava o ideal nacionalista, deveria ser constituída de um Estado próprio. Os sionistas entendiam que pelo fato de muitos antissemitas não considerarem os judeus como parte integrante de suas nações, era necessário a existência de um Estado especificamente judaico para que os judeus pudessem garantir sua cidadania. Inicialmente uma ideologia secularista, o sionismo com o tempo dividiu-se em diferentes segmentos, contando também com segmentos religiosos. [Nota 9]
A divisão entre sionistas seculares e religiosos refletiu-se na própria criação do Estado de Israel em 1948. Embora juridicamente constituído como uma nação secular nos moldes das democracias liberais do Ocidente, o Estado israelense reservou às autoridades religiosas judaicas o reconhecimento oficial da nacionalidade judia e a chancela dos casamentos judeus. Como a maioria dos fundadores e precursores políticos do Estado judeu eram constituídos de judeus Askenazi e em menor medida de Sefarditas, os tribunais rabínicos askenazi e sefarditas possuíam maior poder na concessão do reconhecimento do caráter judeu de um indivíduo para que pudesse ser contemplado com a cidadania israelense. Isso fez com que outras etnias judaicas, principalmente os judeus negros da Etiópia, tivessem maior dificuldade em ter sua “judaicidade” reconhecida em Israel.[Nota 10]
Esse longo parênteses pode parecer um desvio do tema de nosso texto, mas ele é crucial para entender a relação entre os judeus e o Prêmio Nobel. Conforme demonstrado, os rumos históricos e políticos das diferentes etnias judaicas foram muito diversos, e essas diferenças se refletiram na constituição de Israel enquanto um Estado Judeu. Mas essa disparidade também se reflete no campo científico quando olhamos para a lista de judeus contemplados com o Prêmio Nobel. A maioria esmagadora destes laureados são oriundos de países da Europa, América do Norte e de Israel, ou seja, de origem ocidental.
Como os demais cidadãos dos países ocidentais, os judeus destas nações possuem chances muito maiores de acesso à obtenção de financiamentos e ao acesso às instituições acadêmicas e à produção científica do que indivíduos de países menos desenvolvidos - inclusive judeus etíopes, iemenitas e mizrahi, por exemplo. Portanto, quando falamos de uma grande presença de judeus entre os agraciados com algumas das premiações do Nobel estamos falando de judeus ocidentais e não de judeus como um todo.
Resta ainda uma outra observação: os critérios das listas apresentados de laureados judeus do Nobel apresenta imprecisões: indivíduos de origem judaica que se definiam como agnósticos ou ateus são colocados ao lado de gentios que se converteram ao judaísmo. Isso revela uma falta de critério objetivo: o que está sendo avaliado de fato? a etnia ou a religião? E quanto aos que se consideram de religião judaica: quais foram ou são realmente praticantes? O que há objetivamente em comum entre todos esses indivíduos que os permite ser avaliado com um grupo em particular? Sem uma escolha clara de qual dos diversos critérios de definição de judeu está utilizado, não há como fazer uma análise precisa.
MUÇULMANOS NO NOBEL
Como vimos, definir quem é judeu é um critério bastante complexo, o que mostra a enorme variedade de contextos históricos e culturais em que o povo judeu - ou melhor, os povos judeus, no plural - estão inseridos. Definir quem é muçulmano, por outro lado, parece ser uma tarefa muito mais fácil. Afinal, chama-se de muslim ou “muçulmano” (lit. “aquele que se submete [à vontade de Deus]”) o seguidor da religião do Islã (Islam, lit. “submissão [à vontade de Deus]”) pregada pelo Profeta Muhammad (c. 570-632) - conhecido no Ocidente como “Maomé” - na Arábia no século VII.
Desde a morte de Muhammad, o Islã se espalhou por diversas regiões do mundo, em especial o Oriente Médio, o Norte da África, a costa Mediterrânica, o centro, sul e sudeste da Ásia. A partir do século XIX, principalmente, os muçulmanos também se tornaram cada vez mais presentes no Ocidente, em grande parte devido a processos migratórios de regiões onde a religião islâmica é majoritária. Atualmente, o Islã é a religião que mais cresce no mundo, tanto por aumento populacional quanto por conversões.
A definição do que é um muçulmano, portanto, é bastante objetivo e é norteado por um critério bem delimitado: o religioso. Por outro lado, do ponto de vista dos outros fatores, falar em “muçulmanos” é tratar de um número de pessoas ainda mais heterogêneo que os judeus (tanto do ponto de vista étnico, quanto cultural, político, social ou econômico). Tal como em outras religiões, também aqui cabe se perguntar se dentre os muçulmanos laureados pelo Prêmio Nobel todos eram realmente praticantes do Islã.
Vamos considerar, contudo, os países de origem dos muçulmanos que até hoje receberam o Prêmio Nobel: Dentre estes laureados encontramos 4 egípcios, 2 paquistaneses, 2 turcos, 2 iranianos, 1 de Bangladesh, 1 do Iêmen, 1 da Palestina, 1 da Tanzânia e 1 da Tunísia. Mesmo nessa lista de 9 países já é possível observar disparidades: países emergentes (como a Turquia), países sob ocupação militar (como a Palestina), países com elevados índices de pobreza (como Bangladesh), países com relações conturbadas com o Ocidente (como o Irã). O que podemos certamente colocar como elemento comum entre esses países é que possuem mais dificuldade de acesso às instituições acadêmicas e à comunidade científica ocidental do que os países ocidentais. Mas seria correto atribuir essas dificuldades ao fator religioso, isto é, ao fato de serem todos esses premiados muçulmanos?
Precisamos lembrar que as culturas influenciadas pela religião islâmica já conheceram um elevado período de desenvolvimento científico, intelectual e cultural, principalmente entre os séculos VIII e XIII. Dentro do mundo árabe o ápice cultural ocorreu principalmente sob a dinastia Abássida no Oriente Médio e Pérsia, mas houveram também contribuições científicas no Norte da África e Al-Andalus. Esse desenvolvimento científico não se restringiu ao mundo árabe. Na África subsaariana, no subcontinente indiano e no sudeste asiático também se formaram grandes centros islâmicos de aprendizado e produção de saberes. A própria teologia e jurisprudência islâmica dialogou com a antiga filosofia grega.
Durante o auge do desenvolvimento científico e cultural do mundo islâmico o campo dos saberes era onde menos se sentiam as diferenças étnicas e religiosas: também sábios e polímatas judeus e cristãos produziram sob a égide de potentados muçulmanos. Através das rotas comerciais, as civilizações islâmicas levaram para diversos lugares invenções hindus e chinesas, como a escrita dos algarismos indo-arábicos e o uso do papel e da pólvora. [Nota 11]
O surgimento das universidades no Ocidente medieval bem como a expansão marítima e a revolução científica da Europa moderna foram possíveis devido ao intercâmbio com as descobertas e invenções científicas desenvolvidas ou difundidas por povos islâmicos. Assim, podemos ver que o apreço às Ciências e aos mais variados tipos de saberes não é algo alheio à história dos povos muçulmanos. Usar o baixo número de muçulmanos laureados com o Nobel para provar uma suposta inferioridade ou incompatibilidade da religião islâmica com a produção científica é projetar um fenômeno específico, historicamente localizado, para uma ampla variedade de contextos históricos, o que seria um tremendo anacronismo.
RAZÕES DA DIFERENÇA DE NÚMEROS
Qual seriam, então, as razões por trás do elevado número de Prêmios Nobel judeus comparados a um menor número de muçulmanos? Muitas explicações focam unicamente no caso judeu. Vejamos primeiramente, então, essas hipóteses.
O químico e professor norte-americano George Bernard Kauffman tentou explicar o grande número de judeus entre os premiados do Nobel por uma razão cultural: “A razão para esta disparidade é principalmente cultural e não genética. Os jovens judeus são incentivados a aprender a ler para estudar a Torá”[Nota 12]. Essa explicação é muito simplista. Existem diversas escolas em países muçulmanos dedicadas à leitura e estudo do Alcorão desde a infância. Além disso, o hábito de estudar a Torá não significa por si só o interesse no estudo científico. Em muitos segmentos “ultraortodoxos” do Judaísmo o estudo é quase que exclusivamente religioso, o que restringe bastante as oportunidades de emprego e acesso ao ensino formal e superior por parte de seus adeptos. Novamente há aqui o problema da generalização: Kauffman não precisa de quais judeus está falando.
Uma hipótese semelhante ao do químico norte-americano foi emitida pelo judeu israelense Robert Aumann, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2005. Aumann atribuiu a quantidade de muitos cientistas judeus ao interesse destes pelos livros.[Nota 13] A explicação de Aumann também é bastante vaga e genérica ao atribuir o gosto da leitura aos judeus como um todo (que, como já foi dito, é um grupo bastante heterogêneo).
Indo mais longe, o cientista político norte-americano Charles Murray propôs uma explicação genética: “algo nos genes explica o elevado QI judaico”[Nota 14]. Essa hipótese genética é bastante superficial, pois ela ignora as variedades genéticas de grupos judeus. Além disso, é uma tese potencialmente perigosa, pois pode induzir a uma ideia de superioridade racial de um grupo humano sobre o outro. Quanto aos testes de QI [Quociente de Inteligência], é sabido que são indicadores de habilidades lógicas e intelectuais relativas a algumas áreas de conhecimento, mas um teste de QI por si só não é capaz de responder a razão por trás da pontuação apresentada.
Por outro lado, outros autores buscaram explicar o fenômeno judeu nos Prêmios Nobel por fatores históricos. Segundo o jornalista israelense Noah Efron:
“A excelência judaica na ciência é uma coisa nova. Quando o grande folclorista judeu Joseph Jacobs começou, em 1886, a comparar os talentos dos judeus com os talentos de outros ocidentais, considerou o desempenho deles medíocre em todas as ciências, exceto na medicina. Nas primeiras décadas do século XX, o psicólogo de Princeton, Carl Brigham, testou a inteligência dos judeus na América e concluiu que eles “tinham uma inteligência média inferior à de todos os outros países, exceto a Polónia e a Itália”. A excelência judaica na ciência é um fenómeno que floresceu nas décadas anteriores e, especialmente, depois da Segunda Guerra Mundial; é um fenómeno demasiado recente para ser explicado pela seleção natural, ou mesmo por supostas tradições culturais antigas.
A verdadeira explicação do sucesso judaico na ciência está em outro lugar. O século XX começou com migrações massivas de judeus para os Estados Unidos, para as cidades da Rússia (e depois para a União Soviética) e para a Palestina. Em cada uma destas novas terras, os judeus recorreram em grande número à ciência porque esta prometia uma forma de transcender as antigas ordens mundiais que durante tanto tempo excluíram a maioria dos judeus do poder, da riqueza e da sociedade. A ciência, baseada em valores de universalidade, imparcialidade e meritocracia, atraiu poderosamente os judeus que procuravam ter sucesso nos seus novos lares. Não é tanto o que os Judeus eram (inteligentes, estudiosos) que explica o seu sucesso na ciência, mas sim o que queríamos ser (iguais, aceites, estimados) e em que tipos de lugares queríamos viver (sociedades liberais e meritocráticas).” [Nota 15]
Para Efron, como notamos, a razão por trás da excelência intelectual dos judeus está relacionada a uma busca por obter melhores posições sociais através do reconhecimento científico. Embora o jornalista israelense não deixe claro de quais grupos de judeus está tratando, podemos intuir que se refere aos judeus ocidentais (Askenazi e Sefarditas), que foram os que migraram em maior quantidade para EUA, Rússia e Palestina. Dessa forma, a inserção dos judeus no meio acadêmico fora motivada por fatores externos, notadamente o desejo de se integrar com maior prestígio e oportunidades dentro das sociedades europeias e americana, bem como no nascente Estado de Israel.
Uma outra tese focada nos aspectos sociais externos foi desenvolvida pelo acadêmico sueco Jan Biro, ligado ao Instituto Karolinska (uma das instituições que concede o Prêmio Nobel. Para ele, a grande capacidade dos judeus de organizarem networking, redes de contato, em diferentes âmbitos sociais os permite se projetarem no cenário científico, cultural e político internacional, colocando-os em maior evidência nos meios de comunicação:
“[Na fase final do processo de seleção para o Prêmio Nobel], o fator mais importante é o número e o status dos cientistas que apoiam um determinado candidato. Um candidato com muitos apoiadores de peso provavelmente será o finalista selecionado. E é aqui que os cientistas judeus podem e usam o seu talento para criar redes (com outros judeus) e sua excepcional inteligência verbal. Podemos não ser capazes de ver uma explicação completa para a propensão judaica [para obterem premiações no Nobel] no QI judeu mais elevado ou na escolha preferencial de carreiras intelectuais por parte dos judeus. A provável explicação restante é a defesa mais forte dos cientistas judeus do que dos cientistas gentios.” [Nota 16]
Em contraposição à alegada capacidade superior em criar redes de contatos sociais por parte dos judeus Biro atribui aos demais ocidentais uma capacidade menor de organização devido à mentalidade competitiva [Nota 17]. Quanto à tese de superioridade do QI judaico, o acadêmico sueco é bem preciso em apontar que esse dado é restrito aos judeus de etnia Askenazi [Nota 18] . Apesar de algumas falhas na sua análise, como a generalização da mentalidade ocidental ou a conceituação do povo como uma “Nação” em sentido singular, a tese de Biro mostra uma explicação interessante para a propensão judaica por um viés sociológico (a importância das relações sociais para conquistar visibilidade, status e reconhecimento na sociedade) e político (a avaliação do Prêmio Nobel como uma instância de Poder). O fato de Biro estar vinculada a uma das instituições promotoras da premiação, o Instituto Karolinska, também confere uma certa autoridade à sua análise, já que ele demonstra conhecer os aspectos subjetivos por trás do Nobel.
Mas quais explicações os estudiosos apontam como causa do pouco número de muçulmanos entre os ganhadores do Nobel? Kauffman não é direto, mas ao apontar a causa da maior propensão judaica às atividades científicas por conta do hábito da leitura da Torah ele implicitamente sugere que os muçulmanos teriam menos interesse pelo estudo. O escritor turco Mustafa Akyol se aproxima da tese de Kauffman, ao atribuir aos muçulmanos da atualidade uma dificuldade em se abrir para pensamentos não-islâmicos no campo das ciências e ideias:
“Em suma, vale realmente a pena perguntar porque é que os muçulmanos estavam tão bem há mil anos atrás, enquanto estão tão mal hoje. Esta, é claro, uma pergunta famosa e complicada, sem resposta simples. Se houvesse uma resposta simples, eu a enraizaria no declínio da economia do Médio Oriente devido às mudanças estruturais no comércio mundial. Mas também há algo relacionado à mente muçulmana comum. Os muçulmanos tiveram bastante sucesso há um milénio, porque formaram uma civilização cosmopolita que não se deixava de estar aberta a culturas estrangeiras, como a Grécia Antiga, o Cristianismo Oriental, o Judaísmo, a Pérsia, a Índia ou a China. Os intelectuais muçulmanos estavam confiantes na sua fé e, portanto, não viam problemas em aprender com fontes de conhecimento não-muçulmanas e em sintetizá-las com o Islã.
No entanto, a mente muçulmana comum de hoje, incluindo a mente intelectual muçulmana, é bastante insular e está focada em proteger uma esfera mental “islâmica” (e bastante fechada) das influências do mundo exterior. O resultado é uma cultura defensiva que se recusa a aceitar as ideias dos “incrédulos” e, portanto, apenas repete o que aprendeu com os seus próprios antepassados. Se nós, muçulmanos, quisermos mais Prémios Nobel – e todo o conhecimento, sofisticação e sucesso que eles implicam – devemos começar por desafiar esta mentalidade fechada e esforçar-nos por ter mentes mais abertas.” [Nota 19]
Como um muçulmano liberal, Akyol acredita que é necessário uma maior adaptação do Islã à mentalidade moderna para que os muçulmanos possam avançar no conhecimento e produção científica. Mas aqui persiste o problema da generalização: podemos dizer, por exemplo, que Egito e Afeganistão possuem a mesma postura com relação à produção intelectual do Ocidente? Ou que a relação entre a religião e as instituições científicas e acadêmicas são iguais no Paquistão e na Turquia? Por outro lado, Akyol acerta quando reconhece a influência dos fatores externos econômicos como facilitador do ápice cultural-científico do Islã medieval bem como pelo decréscimo na produção científica no mundo muçulmano atual.
Partindo de premissas diferentes, outros autores focam-se em aspectos econômicos e geopolíticos para explicar a menor presença de países do “Sul Global” entre os vencedores do Nobel (onde podemos incluir os países de relevante população muçulmana). O escritor e acadêmico nigeriano Kéchi Nne Nomu enfatiza a dificuldade maior que africanos possuem no acesso às carreiras científicas, além do fascínio que o sonho de uma carreira na indústria pop, cinema ou mídia exerce sobre as gerações mais jovens pela possibilidade de conseguir uma vida materialmente mais farta e confortável:
“É possível tratar esta exclusão [de africanos no meio científico] como um resultado infeliz do paradoxo pós-colonial. Dentro deste paradoxo, o estudante médio de ciências no continente tem de percorrer demasiadas distâncias imaginativas, e o caminho desde o interesse pessoal até à investigação científica real pode ser demasiado longo, difícil e cheio de obstáculos. Faz sentido, então, que a saída seja rotineiramente criativa. O desejo de quebrar um Deus é claro nas novas aspirações nigerianas que surgiram em algum momento nas últimas duas décadas. Entre eles, o sonho de se tornar uma estrela pop adquiriu forma definitiva, porque cada vez mais estrelas pop nigerianas vivem como monarcas com os seus fãs obstinados e feudos. Dentro da nova ordem social, as estrelas literárias têm uma influência significativa. A indústria cinematográfica há muito é considerada um cadinho para o que existe do sonho nigeriano. Também encontramos um novo espaço para estrelas de reality shows e pessoas que quebram recordes globais insanos, projetados para quebrar o espírito humano. Mas neste jogo de ascensão, apesar dos prodígios da tecnologia, aspirar a ser cientista pode revelar-se uma aspiração mais tola do que o sonho de se tornar uma estrela pop.
Um argumento claro para explicar por que razão os prémios Nobel nas ciências exatas não foram tão inclusivos tem a ver com a baixa probabilidade de os estudantes negros acabarem em programas e instituições centrados em pesquisa.” [Nota 20]
Nomu nos recorda um fato óbvio, mas muitas vezes esquecido: ciência exige recursos. A pesquisa e a produção científica dependem em maior escala de fatores materiais: financiamentos de governos e instituições privadas. Esses recursos materiais são muito mais fáceis de obter em países com grande produção de riquezas e estabilidade política do que em países pobres ou em situação de instabilidade política. É claro que existem dificuldades nesse sentido para classes sociais mais baixas também em países desenvolvidos, mas essa dificuldade é muito mais intensa em países com altos índices de pobreza ou flagelado por constantes conflitos (quer sejam guerras civis ou intervenções militares estrangeiras). Quantos países do mundo muçulmano não de encontram em situação assim? A Líbia e o Iraque foram praticamente destruídos pela intervenção militar dos países ocidentais. A Síria e Somália foram devastadas por guerras civis.
Por fim, devemos considerar os interesses econômicos e políticos. Conforme apontou Jan Biro, o Prêmio Nobel é uma oportunidade de obter poder e riqueza:
“O prêmio em dinheiro (cerca de 300 mil coroas suecas - 1 milhão de dólares) é apenas uma fração da recompensa econômica que aguarda o vencedor [do Nobel], sua instituição e associados. Um laureado vale o seu peso em ouro para universidades associadas, editores de livros e empresas. Há também muitos benefícios sociais, como cargos honorários, participação em conselhos e palestras bem remuneradas, apenas para citar alguns. O Prêmio Nobel não é apenas reconhecimento, é poder. Portanto, é necessário que a comunidade científica, além de conceder o merecido respeito, fique de olho nos laureados e na forma como eles e aqueles que os rodeiam utilizam o seu poder científico e monetário.” [Nota 21]
A influência de critérios políticos na atribuição do Prêmio Nobel pode também ser vista na explicação que o empresário judeu norte-americano Stan Polovets (um dos fundadores do Prêmio Gênesis, informalmente chamado de “Prêmio Nobel Judaico”) usa para justificar poque seu prêmio nunca foi conferido ao estadista judeu norte-americano Henry Kissinger, apesar do mesmo ter recebido o Prêmio Nobel da Paz em 1973 (pela sua atuação na obtenção de um cessar-fogo entre EUA e Vientã) e ter sido uma das personalidades mais influentes da geopolítica do século XX:
“[...] o Prêmio Gênesis é sobre [algo] mais do que uma realização judaica. Trata-se também de orgulho pela identidade judaica e valorização do ideal judaico do tikkun olam – tornar o mundo um lugar melhor e do apoio inabalável ao Estado Judeu. E foi aqui que o Dr. Kissinger ficou aquém.
[...]
Henry Kissinger não era um judeu orgulhoso [de sua origem judaica]. [...]
Outro argumento contra a atribuição do Prémio Gênesis ao Dr. Kissinger foram as suas políticas ambivalentes em relação a Israel e a sua falta de uma postura moral clara quando o bem-estar e a segurança do povo israelita estavam em perigo.
[...]
E embora a comunidade judaica tenha saudado a “détente” [atuação política/diplomática] pessoal de Kissinger com a sua própria identidade judaica, a nossa fundação sentiu que Kissinger poderia ter feito muito mais pelo povo judeu e pelo Estado de Israel quando estava no auge do seu poder – como o secretário [de Estado dos EUA] Blinken está fazendo hoje. Não o fez, e é por isso que este grande estadista e uma das mentes judaicas mais brilhantes da era pós-Segunda Guerra Mundial nunca recebeu o Prémio Gênesis.” [Nota 22]
O comentário de Polovets mostra como o apoio político ao Estado de Israel é um fator importante para considerar a concessão do Prêmio Gênesis para um determinado indivíduo. Com o Prêmio Nobel não poderia ser diferente: os interesses políticos das grandes potências e dos países emergentes bem como de suas instituições também se fazem presentes na seleção de candidatos e estabelecimento dos critérios por parte das instituições ocidentais que conferem a premiação - e, com ela, o cobiçado prêmio em dinheiro, as oportunidades de cargos e publicações e o prestígio social e interacional que a laureação representa.
Portanto, a explicação da maior propenção de um judeu - e, em especial, um judeu ocidental - ser escolhido para o Prêmio Nobel do que um muçulmano não está em fatores instrínsecos dos dois grupos (quer sejam fatores religiosos ou por superioridade genética), mas por elementos extrínsecos: a forte inserção dos judeus nas sociedades ocidentais (especialmente com a derrota do Nazismo na Segunda Guerra Mundial, o enfraquecimento do Antissemitismo e a criação do Estado de Israel) e a disparidade de recursos materiais entre os países ocidentais e as nações da África e Ásia de maioria muçulmana (fruto da pobreza ou de gueras). Outra forma de entender esse argumento é o fato de que antes da Segunda Guerra Mundial - quando o antissemitismo era bastante forte nas sociedacdes ocidentais - os judeus também eram menos contemplados com o Prêmio Nobel.
A influência dos fatores externos apontados por Biro, Nomu e Polovets também mostra que a suposta maior atuação de judeus no universo científico cultural em detrimento dos muçulmanos é um fenômeno historicamente localizado, diferente de outras épocas (como o mundo islâmico no medievo anteriormente exposto) e, por ser algo de um contexto muito particular, não pode ser generalizado sob um argumento simplista que considera os muçulmanos essencialmente menos propensos ou capazes de produzir e difundir conhecimento.
QUAL O SIGNIFICADO DO PRÊMIO NOBEL COMO COMPROVAÇÃO DE RELEVÂNCIA CIENTÍFICA?
Admitir que a escolha e atribuição do Prêmio Nobel não é uma escolha puramente neutra e objetiva não significa que o mérito de um cientista ou outra personalidade pública que tenha sido premiado não deva ser reconhecido. Mas admitir a existência desses fatores externos e subjetivos ajuda a não usarmos o Prêmio Nobel como critério principal para valorar uma ou outra produção científica ou intelectual.
Conforme aponta o jornalista israelense Noah Efron: “Os Prémios Nobel são um indicador atrasado. Concedidos anos depois das conquistas que celebram, muitas vezes para cientistas há muito aposentados, refletem uma situação que existia há 30, 40 e, por vezes, 50 anos atrás” [Nota 23]. Para uma avaliação mais precisa da relevância da produção científica de um ou outro grupo humano, seria necessário levantar uma amostragem muito maior de cientistas e trabalhos do mundo todo, o que não é exatamente a metodologia empregada pelo Prêmio Nobel.
Os números de premiações por si só não indicam nada. E uma comparação só pode ser legítima se os dados comparados seguem o mesmo critério. Comparar unicamente judeus ocidentais (sem definir muito bem se são indivíduos de origem étnica ou de religião judaica) com muçulmanos em geral (analisando de forma generalista a influência da religião sobre sociedades tão diversas) é forçar as estatísticas para validar um estereotipado viés de confirmação.
As avaliações estereotipadas conduzem a conclusões perigosas. O próprio Alfred Nobel é a prova disso: o empresário sueco compartilhava da visão preconceituosa de muitos ocidentais de seu tempo sobre os judeus. A mesma lógica que hoje busca construir uma ideia de superioridade judaica foi a lógica usada por antissemitas no passado para atribuir aos judeus uma posição de inferioridade.
O grande desenvolvimento científico e tecnológico do Ocidente na Modernidade só foi possível devido às contribuições que os ocidentais receberam do conhecimento produzido e difundido pelo Oriente. Na atualidade, vários estudos têm recuperado a importância das sociedades africanas e asiáticas para o desenvolvimento científico e tecnológico, importância essa que foi por muitos anos relegada enquanto europeus se apropriavam levando o crédito por invenções e descobertas que lhes foram legadas por povos do Oriente.[Nota 24]
Dada a complexidade dos variados contextos históricos, podemos afirmar - a partir de um escopo maior de variáveis externas - que a maior propensão de judeus ao Prêmio Nobel em comparação com os muçulmanos deve-se ao domínio ainda presente dos países e instituições ocidentais sobre o meio acadêmico e científico bem como as dificuldades materiais e sociais dos países de maioria muçulmana ainda afetados pelas marcas deixadas pela exploração colonial e intervenções militares das grandes potências.
Todas essas considerações históricas devem nos levar a refletir sobre uma questão mais geral e ampla: o acesso ao conhecimento científico ainda é algo bastante restrito. Um recente meme veiculado nas redes sociais mostrava uma visível ironia: um artigo que buscava entender as causas da falta de acesso à produção científica estava publicado no site de um periódico com um paywall que exigia o pagamento de uma determinada cifra em dinheiro para que pudesse sua leitura pudesse ser acessada.
NOTAS:
[1]: MENDES, 2023.
[2]: BIRO, 2011, p. 1.
[3]: RON, 2018.
[4]: Vide LAWLER, 2020.
[5]: Vide, por exemplo, CALISE, 2020.
[6]: Para tanto, vide: BROYDE, 2014; ROTHENBERG, 2014.
[7]: LEONE, 2006.
[8]: Vide, por exemplo, ANDERSON, 2008; HOBSBAWM, 1990.
[9]: MORAES, 2009.
[10]: Vide, por exemplo, PROGREBNA, 2023.
[11]: Vide, por exemplo, SAMUEL, 2014; WALKER, 2013.
[12]: KAUFFMAN, 2016.
[13]: EFRON, 2013.
[14]: EFRON, 2013.
[15]: EFRON, 2013.
[16]: BIRO, 2011, p. 9.
[17]: BIRO, p. 10.
[18]: BIRO, p. 7.
[19]: AKYOL, 2013.
[20]: NOMU, 2023.
[21]: BIRO, 2011, p. 6-7.
[22]: POLOVETS, 2023.
[23]: EFRON, 2013.
[24]: GODOY, 2008.
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