Ibn Sina, que ficou mais conhecido no Ocidente como Avicena, foi um grande polímata persa e um dos mais importantes pensadores da Era de Ouro Islâmica. Nascido em 980 em uma vila próxima de Bukhara, no que hoje é o atual Uzbequistão, na época capital do Império Samânida, uma dinastia persa localizada na Ásia Central e no Grande Khorassan.

Grande parte da família de Avicena seguia a vertente sunita da religião islâmica. Seu pai, Abudallah, oriundo da cidade de Balkh (Afeganistão) foi um estudioso respeitado em seu tempo, mas que provavelmente se converteu ao Ismaelismo, vertente do Islã Xiita. Balkh era uma importante cidade do Império Samânida, e o pai de Avicena trabalhava para o governo imperial na vila de Kharmasain, que era uma região predominantemente sunita, porém, especula-se que para avançar na administração estatal, tenha tornado-se xiita.

Avicena começou a estudar ainda cedo, demonstrando ser um grande prodígio nas áreas que se dedicava. Assim, estudou o Alcorão e também literatura, e segundo sua autobiografia havia memorizado o Alcorão inteiro quando tinha 10 anos de idade[N]. Aprenderia ainda aritmética indiana juntamente com um indiano chamado Mahmou Massahi, assim como aprenderia mais coisas com um sábio andarilho da época. Indo mais além, Ibn Sina estudaria jurisprudência islâmica (fiqh) com um sábio sunita do madhhab (escola de jurisprudência) Hanafi, chamado Ismail al-Zahid. Ainda viria a estudar algumas obras filosóficas, como a de Porfírio, estudando também as obras de Euclides e Ptolomeu com um filósofo não muito popular da época, Abu Abdullah Nateli.

Quando ainda era um adolescente e com grande interesse filosófico, Avicena não conseguia compreender a Metafísica de Aristóteles, o que o levava a frequentemente abandonar os livros e ir até a mesquita mais próxima realizar as abluções necessárias e rezar para clarear sua mente. Durante a noite ele continuaria seus estudos na obra do filósofo, não tendo sossego nem mesmo enquanto dormia, uma vez que mesmo em seus sonhos a obra do sábio grego ainda o acompanhava. Seu entendimento só seria possível após ler o comentário de al-Farabi sobre a Metafísica aristotélica, mas até isso ter ocorrido, Avicena já havia lido cerca de 40 vezes a obra de Aristóteles, ao ponto das palavras ficarem marcadas em sua mente, porém sem significado algum. O encontro do sábio persa com a obra de al-Farabi foi por acaso, encontrando-a em uma tenda de livros por 3 dirhams de prata, algo relativamente barato para a época. Dessa forma, tão grande foi sua felicidade após ter entendido a obra de Aristóteles que louvou a Allah e doou esmolas aos pobres como forma de agradecimento pelo esclarecimento que havia recebido de algo que há tanto tempo estudava e se dedicava a compreender.

Porém, além do grande interesse pela filosofia, Avicena também se interessou pela medicina. Aos 16 anos seu interesse pela ciência médica despertou, mas não focou somente no aprendizado das teorias médicas, indo também atender aos pobres e necessitados de maneira gratuita e voluntária, e consequentemente aprendendo novos métodos de tratamento de enfermidades no processo. Já aos 18 anos, Avicena atingiria a qualificação médica, dizendo que:

A Medicina não é uma ciência difícil nem espinhosa como a matemática e a metafísica, então tive progresso logo cedo; me tornei um excelente médico e comecei a tratar os pacientes usando os medicamentos aprovados

A fama de Avicena como médico se espalharia rapidamente, tratando diversos pacientes que chegavam até ele, e sem cobrar por isso.

Carreira de Ibn Sina

No ano de 997 quando Avicena tinha por volta de seus 17 anos foi quando conseguiu seu primeiro emprego, contratado como médico do emir samânida Nuh II, que por sua vez devia à Avicena a sua recuperação de uma grave doença. Fato curioso é que uma das recompensas pelo desempenho medicinal de Avicena foi ter acesso à biblioteca real dos Samânidas, que na época eram conhecidos como patronos da pesquisa e dos pesquisadores. Infelizmente uma tragédia viria a ocorrer com a mencionada biblioteca, que pegaria fogo não muito tempo depois, e Ibn Sina seria acusado por seus inimigos de ter queimado o acervo para que os demais não pudessem ter acesso ao conhecimento que ele havia obtido.

Apesar dessas desavenças, Avicena ajudaria seu pai em seu trabalho, encontrando também tempo para alguns de seus primeiros escritos. Porém, lamentavelmente, o pai de Avicena viria a morrer quando ele tinha 22 anos, e logo em seguida seria também o fim da Dinastia Samânida.

A dinastia samânida chegou ao fim em 999 e, depois disso, teria recusado as ofertas do sultão Mahmud de Ghazni para que atuasse em sua corte. Ao invés disso, teria prosseguido para o oeste, em direção à Urgench, onde hoje é o Turcomenistão, onde o vizir, visto como um amigo dos estudiosos, decidiu pagar para Avicena um pequeno salário. Entretanto, o pagamento era insuficiente, o que levou Avicena a vagar de um lugar para outro, percorrendo os distritos de Nishapur e Merv até as fronteiras de Khorasan, buscando uma oportunidade para seus talentos.

Assim, Ibn Sina esperava ser acolhido pelo governante do Tabaristão, Qabus ibn Wushmagir, que era também poeta e estudioso. No entanto, nesta época (1012) Ibn Wushmagir iria morrer de fome devido às revoltas realizadas por suas tropas. O próprio Ibn Sina acabou adoecendo gravemente.

Finalmente, em Gorgan, perto do Mar Cáspio, Avicena se encontrou com um amigo que havia comprado uma residência perto de sua própria casa, concedendo-a para o sábio persa, que lá viria a ensinar lógica e astronomia. Como forma de agradecimento pela ajuda prestada, Avicena dedicaria seus trabalhos ao seu patrono. Nesse período muitas de suas obras seriam escritas ou veriam seu começo ali, como por exemplo o seu famoso Cânone de Medicina

Após essa fase de sua vida, Avicena se estabeleceria em Rey, na vizinhança da Teerã moderna, a cidade natal de al-Razi, onde Majd ad-Dawla, filho do último emir buída, era o governador nominal sob a regência de sua mãe. Seyyedeh Khatun. Aproximadamente trinta dos mais curtos escritos de Avicena foram escritos em Rey. Contudo, as disputas constantes entre a regente e seu segundo filho Shams al-Daula, obrigaram o médico a deixar o lugar.

Depois de uma breve estadia em Qazvin, ele passou para o sul em Hamadan, onde Shams al-Daula, outro emir buída, reinava. Lá, a princípio, ficou a serviço de uma dama da alta sociedade. Porém o emir, ouvindo sobre sua chegada, fez questão de colocá-lo no posto de assistente médico e o enviou de volta com presentes para casa. Ele chegou até mesmo a ser elevado ao posto de vizir. Entretanto, após um desentendimento, o emir decretou que ele deveria ser banido do país. Avicena, no entanto, permaneceu escondido por 40 dias na casa do sheykh Ahmed Fadhel, até que um novo ataque de doença induzisse o emir a restaurá-lo a seu cargo.

Mesmo durante esse período conturbado, ele perseverou com seus estudos e ensinamentos. Todas as noites ele extraía escritos de suas obras e lecionava para seus estudantes. Com a morte do emir, Ibn Sina deixou de ser vizir e se escondeu na casa de um boticário, onde, com intensa assiduidade, continuou a construir o seu legado. Nesse meio tempo, ele escreveu para Abu Ya’far, o prefeito da cidade dinâmica de Isfahan, oferecendo seus serviços. O novo emir de Hamadan, ouvindo esta correspondência e descobrindo onde Avicena estava escondido, o encarcerou em uma fortaleza. Enquanto isso, a guerra continuava entre os governantes de Isfahan e Hamadan.

Em 1024, Abu Ya’far capturou Hamadan e suas cidades, expulsando os mercenários tajiques. Quando a tempestade passou, Ibn Sina voltou com o emir para Hamadan e continuou seus trabalhos literários. Mais tarde, no entanto, acompanhado por seu irmão, um aluno favorito e dois escravos, ele escapou da cidade com as vestes de um asceta sufi. Depois de uma jornada perigosa, chegaram a Isfahan, recebendo uma honrosa saudação do príncipe.

Obras de Ibn Sina

Avicena foi um escritor prolífico, sendo também um grande polímata. Seus escritos totalizam cerca de 450 obras, que além de filosofia e medicina englobaram astronomia, alquimia, geografia e geologia, psicologia, teologia islâmica, lógica, matemática, física e até mesmo poesia.

Entretanto, apesar de tantos escritos, seria conhecido principalmente pelas suas obras de medicina e filosofia. No Ocidente cristão, por exemplo, seu Cânone de Medicina seria usado durante séculos nas faculdades de medicina, sendo um verdadeiro manual para os médicos europeus, considerado como a obra mais importante de medicina escrita por um médico muçulmano.

O Cânone seria traduzido no século XII por Gerard de Cremona, se tornando o livro base desde a época de sua tradução até o século XVII, ou seja, durante 5 séculos a obra de Avicena foi utilizada como base para os estudos médicos nas mais renomadas universidades Europeias, como a de Montpellier e Leuven. O Cânone chegou inclusive a receber uma versão em hebraico, não se limitando somente ao latim.

O magnum opus de Avicena na medicina consistia em cinco livros, que incluía terapias médicas, listando ainda cerca de 760 medicamentos. Os livros eram:

Livro I:

     Parte 1: Os Institutos de Medicina: Definição de medicina, sua tarefa, sua    relação com a filosofia. Os elementos, sucos e temperamentos. Os órgãos e suas funções.

     Parte 2: Causas e sintomas de doenças.

     Parte 3: Dietética geral e profilaxia.

     Parte 4: Terapêutica geral.

Livro II: Sobre os medicamentos simples e suas ações.

Livro III: As doenças do cérebro, dos olhos, do ouvido, da garganta e da cavidade oral, dos órgãos respiratórios, do coração, da mama, do estômago, do fígado, do baço, do intestino, dos rins e dos órgãos genitais.

Livro VI:

     Parte 1: Sobre febres.

     Parte 2: Sintomas e prognóstico.

     Parte 3: Sobre sedimentos.

     Parte 4: Sobre feridas.

     Parte 5: Sobre luxações.

     Parte 6: Sobre venenos e cosméticos.

Livro V: Sobre composição de medicamentos.

Em seu livro, Ibn Sina documentou corretamente a anatomia do olho, juntamente com a descrição de condições oftalmológicas, como a catarata. Ele afirmou que a tuberculose era contagiosa. Ele descreveu os sintomas da diabetes e deu descrições dos tipos de paralisia facial. Não somente, mas trouxe outras descrições para sua obra, chegando inclusive a lidar com uma desordem obsessiva semelhante à depressão. Por conta de seus escritos sobre medicina, Avicena é considerado hoje como o pai da medicina moderna, sendo um dos maiores médicos da história devido a suas inovações, descobertas e influência.

Já na filosofia, o grande polímata persa ficaria conhecido principalmente pela originalidade de seu pensamento, seus comentários nas obras gregas clássicas e sua enorme influência no pensamento Escolástico, principalmente devido a sua metafísica, mais especificamente no que tange às obras de São Tomás de Aquino, considerado Doutor da Igreja e um dos pensadores mais influentes do Ocidente, um verdadeiro marco da filosofia cristã-católica que seria influenciado pelo filósofo muçulmano.

Uma de suas contribuições para a teologia foi sua teoria para a existência de Deus, conhecida como “Prova do Verdadeiro” (do árabe: al-burhan al-siddiqin). Avicena argumentava que deveria haver um “existente necessário” (wajib al-wujud), uma entidade pré-eterna fora da existência.

A partir de uma série de argumentos, ele identificou que esse seria o conceito de Deus para o Islã. Peter Adamson, historiador da filosofia, considerou que essa formulação seria uma das mais influentes da Idade Média para provar a existência divina, além de ser a maior contribuição de Avicena para a história da filosofia.

Não somente, mas o esquema de “emanações” de um pensamento voltado para o neoplatonismo de Avicena seria também de grande influência para a escola teológica islâmica do século XII, conhecida comoKalam, e por vezes chamada de “Escolástica Islâmica”.

Suas contribuições não se esgotam no que foi dito acima, porém certamente é possível ter uma noção da genialidade de Ibn Sina, ou Avicena como é popularmente conhecido no Ocidente desde o medievo até nossos dias.

Assim, sua influência alcançou os escritos de São Tomás de Aquino, as universidades europeias e muito além, chegando inclusive a  ter um lugar reservado no Limbo dos Virtuosos da obra Divina Comédia de Dante Alighieri, figurando ao lado de outros “não-cristãos virtuosos”, como Virgílio, Averróis, Homero, Horácio, Ovídio, Lucano, Sócrates, Platão e Saladino.

Avicena foi reconhecido pelo Oriente e Ocidente, como uma das grandes figuras da história intelectual, falecendo em 1037 aos 58 anos de idade no mês sagrado do Ramadã.

Bibliografia

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