Mas essa prestigiosa academia foi de fato uma grande potência intelectual em Bagdá durante a Idade de Ouro islâmica. Foi também o berço de conceitos matemáticos transformadores, como o zero e nossos modernos algarismos "árabes".

Fundada como uma coleção particular do califa Harun Al-Rashid no final do século 8, e então convertida em uma academia pública cerca de 30 anos depois, a Casa da Sabedoria parece ter trazido cientistas de todo o mundo para Bagdá, atraídos pela vibrante curiosidade intelectual e a liberdade de expressão da cidade (estudiosos muçulmanos, judeus e cristãos puderam estudar lá).

Com um arquivo de tamanho formidável como a atual Biblioteca Britânica em Londres ou a Bibliothèque Nationale em Paris, a Casa da Sabedoria acabou se tornando um centro incomparável para o estudo das humanidades e das ciências, incluindo matemática, astronomia, medicina, química, geografia, filosofia, literatura e artes, além de alguns assuntos mais duvidosos, como alquimia e astrologia.

Invocar este grande monumento, portanto, requer um salto de imaginação (pense na Cidadela em Westeros ou na biblioteca de Hogwarts), mas uma coisa é certa: a academia inaugurou um renascimento cultural que alteraria completamente o curso de matemática.

A Casa da Sabedoria foi destruída no cerco mongol de Bagdá em 1258 (de acordo com a lenda, tantos manuscritos foram jogados no rio Tigre que suas águas ficaram pretas de tinta), mas as descobertas feitas lá introduziram uma poderosa linguagem matemática abstrata que, mais tarde, seria adotada pelo império islâmico, pela Europa e, em última instância, por todo o mundo.

"O que deveria importar para nós não são os detalhes precisos de onde ou quando a Casa da Sabedoria foi criada", diz Jim Al-Khalili, professor de física da Universidade de Surrey. "Muito mais interessante é a história das próprias ideias científicas e como elas se desenvolveram como resultado disso."

Traçar o legado matemático da Casa da Sabedoria envolve um pouco de viagem no tempo de volta ao futuro. Por centenas de anos, até o declínio do Renascimento italiano, um nome foi sinônimo de matemática na Europa: Leonardo da Pisa, conhecido postumamente como Fibonacci. Nascido em Pisa em 1170, o matemático italiano recebeu sua instrução primária em Bugia, um enclave comercial localizado na costa da Barbária na África (litoral norte do continente). Com 20 e poucos anos, Fibonacci viajou para o Oriente Médio, cativado por ideias que vieram da Índia para o oeste através da Pérsia. Quando voltou à Itália, Fibonacci publicou Liber Abbaci, uma das primeiras obras ocidentais a descrever o sistema numérico hindu-arábico.

Quando Liber Abbaci apareceu pela primeira vez em 1202, os numerais hindu-arábicos eram conhecidos apenas por alguns intelectuais. Os comerciantes e acadêmicos europeus ainda se apegavam aos algarismos romanos, o que tornava a multiplicação e a divisão extremamente complicadas (experimente multiplicar MXCI por LVII!). O livro de Fibonacci demonstrou o uso de numerais em operações aritméticas — técnicas que poderiam ser aplicadas a problemas práticos como margem de lucro, câmbio de moeda, conversão de peso e juros.

"Quem deseja conhecer a arte do cálculo, suas sutilezas e ingenuidades, deve saber computar com figuras manejáveis", escreveu Fibonacci no primeiro capítulo de sua obra enciclopédica, referindo-se aos dígitos que as crianças agora aprendem na escola. "Com esses nove algarismos e o sinal 0, chamado zéfiro, qualquer número está escrito." De repente, a matemática estava disponível para todos em uma forma utilizável.

A grande sacada de Fibonacci não foi apenas sua criatividade como matemático, no entanto, mas sua compreensão aguçada das vantagens conhecidas pelos cientistas muçulmanos por séculos: suas fórmulas de cálculo, seu sistema de casas decimais, sua álgebra. Na verdade, Liber Abbaci confiou quase exclusivamente nos algoritmos do matemático do século 9 Al-Khwarizmi. Seu revolucionário tratado apresentou, pela primeira vez, uma forma sistemática de resolver equações quadráticas. Devido às suas descobertas nessa área, Al-Khwarizmi é frequentemente referido como o pai da álgebra (uma palavra que devemos a ele: do árabe al-jabr, "a restauração de peças quebradas") e em 821 foi nomeado astrônomo e bibliotecário-chefe da Casa da Sabedoria.

"O tratado de Al-Khwarizmi introduziu o mundo muçulmano ao sistema numérico decimal", explica Al-Khalili. "Outros, como Leonardo da Pisa, ajudaram a transmiti-lo pela Europa."

A influência transformadora de Fibonacci na matemática moderna foi, portanto, um legado devido em grande parte a Al-Khwarizmi. E assim, dois homens separados por quase quatro séculos estavam conectados por uma biblioteca antiga: o matemático mais famoso da Idade Média estava nos ombros de outro pensador pioneiro, cujas descobertas foram feitas em uma instituição icônica da Idade de Ouro islâmica.

Talvez porque tão pouco se saiba sobre a Casa da Sabedoria, os historiadores são ocasionalmente tentados a exagerar seu escopo e propósito, dando-lhe um status mítico um tanto em desacordo com os escassos registros históricos que nos restam. "Alguns argumentam que a Casa da Sabedoria não era tão grande quanto se tornou aos olhos de muitos", diz Al-Khalili. "Mas sua associação com homens como Al-Khwarizmi, com seu trabalho em matemática, astronomia e geografia, é para mim uma forte evidência de que a Casa da Sabedoria estava mais perto de uma verdadeira academia, não apenas um repositório de livros traduzidos."

Os acadêmicos e tradutores da biblioteca também se esforçaram para garantir que seu trabalho fosse acessível ao público leitor. "A Casa da Sabedoria é fundamentalmente importante, pois foi por meio de traduções lá — estudiosos árabes que traduziram ideias gregas para o vernáculo — que formamos a base de nossa compreensão matemática", diz June Barrow-Green, professora de história da matemática na Open University no Reino Unido. A biblioteca do palácio era tanto uma janela para ideias numéricas do passado quanto um local de inovação científica.

Muito antes do nosso sistema decimal atual, antes do sistema de número binário que programa nossos computadores, antes dos algarismos romanos, antes do sistema usado pelos antigos mesopotâmicos, os humanos usavam os primeiros sistemas de contagem para registrar cálculos. Embora possamos achar cada um deles antiquados, as diferentes representações numéricas podem, na verdade, nos ensinar algo valioso sobre a estrutura, as relações e os contextos históricos e culturais dos quais surgiram.

Elas reforçam a ideia de valor relativo e abstração, ajudando-nos a entender melhor como funcionam os números. Mostram que "o jeito ocidental não era o único", diz Barrow-Green. "Há um valor real em compreender diferentes sistemas numéricos."

Quando um antigo comerciante queria escrever "duas ovelhas", por exemplo, podia inscrever em argila a gravura de duas ovelhas. Mas isso seria complicado se ela quisesse escrever "20 ovelhas". A notação sinal de valor é um sistema no qual os símbolos numéricos somados significam um valor — neste caso, desenhar duas ovelhas para representar a quantidade real.

Um vestígio de notação sinal de valor, os algarismos romanos de alguma forma persistiram, apesar da introdução do sistema de Al-Khwarizmi, que dependia da posição dos dígitos para representar as quantidades. Como os monumentos imponentes nos quais foram inscritos, os algarismos romanos sobreviveram ao império que os deu origem — por acidente, sentimento ou propósito, ninguém pode dizer com certeza.

O ano de 2020 marcou o 850º aniversário do nascimento de Fibonacci. Também pode ser o momento que ameaça desfazer a jornada dos algarismos romanos. No Reino Unido, por exemplo, os relógios tradicionais foram substituídos por relógios digitais, mais fáceis de ler nas salas de aula das escolas, por medo de que os alunos não consigam mais dizer a hora analógica corretamente. Em algumas regiões do mundo, os governos eliminaram esses algarismos dos sinais de trânsito e de documentos oficiais. E Hollywood deixou de usar algarismos romanos em títulos de sequências. O Superbowl eliminou esses algarismos para seu 50º jogo, temendo que pudesse confundir os fãs.

Mas uma mudança global para longe dos algarismos romanos ressalta uma arrasadora inumerabilidade em outros aspectos da vida. Talvez mais importante, o desaparecimento dos algarismos romanos revela a política que rege qualquer discussão mais ampla sobre a matemática.

"A questão de quais histórias contamos, qual cultura privilegiamos e quais formas de conhecimento imortalizamos na aprendizagem formal são inevitavelmente influenciadas por nossa herança colonial ocidental", diz Lucy Rycroft-Smith, editora e desenvolvedora da Cambridge Mathematics.

Ex-professora de matemática, Rycroft-Smith é agora uma voz de liderança na educação matemática e estuda as diferenças nos currículos globais. Embora País de Gales, Escócia e Irlanda não incluam algarismos romanos em seus objetivos de aprendizagem e os EUA não tenham requisitos padrão, a Inglaterra declara explicitamente que os alunos devem ser capazes de ler algarismos romanos até 100.

Muitos de nós não encontraremos nada de especial sobre a figura MMXX (isso é 2020, se você não sabe). Mas podemos reconhecer vagamente Fibonacci pelo famoso padrão que leva seu nome: uma sequência recursiva que começa com 1 e é, a partir daí, a soma dos dois números anteriores.

A sequência de Fibonacci é certamente notável, aparecendo com frequência surpreendente no mundo natural: em conchas e gavinhas de plantas, nas espirais de cabeças de girassol, em pinhas, chifres de animais e no arranjo de botões de folhas em um caule, bem como no mundo digital (em ciência da computação e sequenciamento). Seus padrões frequentemente fazem parte da cultura popular também: na literatura, no cinema e nas artes visuais; como um refrão nas letras das músicas ou partituras orquestrais; ou mesmo na arquitetura.

Mas a contribuição matemática mais duradoura de Leonardo de Pisa é algo raramente ensinado nas escolas. Essa história começa na biblioteca de um palácio há quase mil anos, numa época em que a maior parte do Cristianismo ocidental jazia na escuridão intelectual. É uma história que deve desmantelar nossa visão eurocêntrica da matemática, iluminar as realizações científicas do mundo islâmico e defender a importância contínua dos tesouros numéricos de muito tempo atrás.

Fonte: www.bbc.com