A Europa católica rejeitava a Inglaterra protestante – a rainha, por sua vez, fazia comércio com os inimigos da Europa, e acabou por mudar a cultura de seu país para sempre.

Em 1570, Elisabete I estava de mãos atadas. Ela havia sido excomungada pelo Papa e o restante da Europa rejeitava a Inglaterra. Para não cair em ruínas, o país precisava de aliados. A rainha buscou ajuda num lugar inusitado: no mundo islâmico.

O período da Dinastia Tudor inspirou muito do entretenimento popular – dos filmes de Cate Blanchett sobre a rainha Elizabeth à série The Tudors – mas a história da qual tratamos aqui quase nunca foi contada. Jerry Broton explora a história esquecida das alianças entre os ingleses e os muçulmanos em seu novo livro The Sultan and the Queen (O Sultão e a Rainha). De sua casa em Oxford na Inglaterra, Brotton explica porque Elizabeth acreditava que o protestantismo tinha mais a ver com o Islam do que com o catolicismo, e como essa interação cultural pode ter inspirado peças de Shakespeare e deixado os dentes da rainha pretos.

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Capa de The Sultan and the Queen the Jerry Brotton

De Donald Trump aos apoiadores do Brexit, muitos ocidentais veem os muçulmanos como uma ameaça e querem que as fronteiras sejam fechadas. Mas, 500 anos atrás, a rainha Elizabeth I se aliou com o xá do Irã e com o sultão otomano. O que as relações de Elizabeth I com o mundo islâmico podem nos ensinar?

Muito. Podem nos ensinar que há uma forma de intercâmbio, tolerância e acomodação pragmáticos, que ultrapassam ideologias. Um dos principais assuntos do livro é a questão do comércio e a maneira com que o comércio se dá com as religiões. A princípio, o motivo da Rainha Elizabeth ter desenvolvido esse relacionamento com o mundo islâmico era teológico. Ela estava estabelecendo um estado protestante e a Inglaterra havia se tornado uma nação pária na Europa católica. Por isso, ela foi em busca de alianças no mundo islâmico.

O resultado foi um intercâmbio comercial e de bens, indiferente às divergências teológicas e sectárias. Neste ponto, Elizabeth não contata o Sultão Murad III, pois ela é uma boa pessoa e busca a harmonia religiosa. Ela age obstinadamente por motivos políticos e comerciais.

A aliança de Elizabeth com Murad III foi essencial para a autopreservação dela. Ainda assim, esse caso foi deixado de fora na história da dinastia Tudor. Por que será?

Nos últimos anos, foi formada uma ideia tacanha sobre a identidade dos Tudors, o que se reflete na maneira com que eles foram representados em programas de TV recentes, como a série The Tudors. Esse conceito acerca deles se tornou um padrão de identidade britânica, ligado à cultura branca e ao cristianismo. Mas essas coisas nunca contam a história maior do que ocorreu em nível internacional. Comecei a estudar mapas do século XVI, e o que eles me diziam é que havia um intercâmbio entre o mundo islâmico e o cristão que não foi registrado na história oficial.

Repare nos retratos dos Tudors. Eles só usam pérolas orientais, seda iraniana e algodão dos territórios otomanos. A língua inglesa também mudou – palavras foram introduzidas de uma hora para outra, como sugar, candy, crimson, turban e tulip. Todas elas têm raízes no árabe ou no idioma persa, e todas elas chegaram na Inglaterra por meio do comércio com o mundo islâmico.

Elizabeth fez de tudo para convencer o Sultão Murad de que o protestantismo e o Islam eram dois lados da mesma moeda e que a verdadeira heresia era o catolicismo. Estou confuso…

O que ela fez muito astutamente, quando começou a escrever para o sultão em 1579, foi dizer o seguinte: “Olha só, eu e você compartilhamos de muitas semelhanças no tocante à nossa teologia. Não acreditamos em idolatria ou em intercessão, ou seja, que santos ou padres possam nos aproximar de Deus. O protestantismo diz que devemos ler a Bíblia para que tenhamos contato direto com Deus. O Islam sunita diz a mesma coisa: você tem o Alcorão e as palavras do Profeta, não precisa de santos ou de ícones.”

Elizabeth fez isso por interesses políticos. O que ela quer dizer é, vocês estão combatendo o catolicismo espanhol – eu também. Mas é claro que ninguém menciona o Cristo. [Risos] O Islam prega que Jesus é um profeta, mas não o filho de Deus. Então, em toda essa correspondência, eles desviam do assunto. Eles sempre mencionam o fato de que acreditam em Jesus, mas nunca como acreditam nele.

A primeira muçulmana a entrar na Inglaterra, segundo os registros, era chamada de Aura Soltana. A história dela é impressionante, não?

Sim. Uma outra personalidade extraordinária, Anthony Jenkins, um dos primeiros ingleses a estabelecer vínculos diplomáticos e comerciais com a Pérsia, estava na jornada de volta à Inglaterra, percorrendo o Rio Volga, na região que hoje chamamos de Grande Rússia. Em Astrakhan, ele compra essa mulher, Aura Soltana. Não está claro se esse é o nome de escrava ou o nome do local de onde ela viera, mas Anthony a leva consigo de volta à Inglaterra.

Por volta dessa época, uma pessoa parecida se estabelece como ajudante pessoal na corte de Elizabeth. Se for a mesma pessoa – e acredito que seja – ela se torna uma espécie de conselheira de moda para a rainha, que sugeria à Elizabeth como usar certos tipos de sapatos e tecidos. Os antepassados exóticos dela a enquadram no tipo exato de pessoa a quem Elizabeth diria: “Ah! Você acabou de voltar de Moscou. Quais são as últimas modas da passarela?”

Há uma pintura encantadora de Marcus Gheeraerts de uma mulher anônima, chamada A Donzela Persa. Alguns especulam que seja dessa mulher. Ela está vestida em trajes orientais muito luxuosos. Poderia ser a dona Aura Soltana, uma escrava que acabou por vestir Elizabeth em seu quarto. É uma história impressionante.

Entre outros produtos, os mercadores ingleses importavam mais de 250 toneladas de açúcar marroquino para Londres a cada ano. É verdade que a paixão de Elizabeth pelo açúcar a deixou com os dentes pretos?

Sim! [Risos] Temos relatos de viajantes europeus que descrevem Elizabeth como uma mulher pequena, com dentes pretos de tanto comer doces e carnes adoçadas. A maior parte do açúcar importado naquela época vinha da região que hoje chamamos de Marrocos, resultado da aliança anglo-islâmica de Elizabeth com as Dinastias Saadianas. É um tanto irônico. Os marroquinos combatiam os espanhóis enquanto o açúcar deles destruía os dentes de Elizabeth, e os armamentos ingleses os ajudavam a matar outros cristãos. [Risos]. Elizabeth gostava de qualquer coisa doce. Frutas caramelizadas eram importantíssimas. Tudo era simplesmente mergulhado no açúcar!

Hoje em dia, o ISIS converte não muçulmanos à força. Samson Rowlie, mercador a serviço de Elizabeth, teve um destino parecido, não?

Ele teve. A assunto da conversão com alguém como ele é fascinante. Ele era um comerciante de Great Yarmouth, em Norfolk, que saiu numa jornada comercial em 1577 rumo ao Mediterrâneo oriental. Piratas turcos o capturaram. Ele foi castrado, transformado em eunuco e levado para Argel. Ele se converte, assume o nome de Hasan Agar e se torna o eunuco chefe e tesoureiro do governo da cidade de Argel, controlada pelos otomanos! Os ingleses escrevem para ele cerca de dez anos mais tarde, falando de comércio. Eles dizem: “Acreditamos que você provavelmente ainda é protestante. Gostaria de voltar?” Rowlie responde: “De jeito nenhum! Tenho um palácio na Argélia. O clima aqui é agradável. Por que eu voltaria para Great Yarmouth?” [Risos].

Temos muitos casos semelhantes de pessoas se convertendo para o Islam ou, no vocabulário da época, “virando turcos”. É algo relevante em relação à situação atual no Oriente Médio porque, no fim das contas, são cristãos e protestantes que estão aceitando o Islam, e não o inverso. Há relatos de pessoas aceitando o Islam voluntariamente porque, diferente da maneira que vemos essa cultura hoje, o mundo islâmico era visto como tolerante e aberto às diferenças.

Você escreve que “Os teatros de Londres estavam obcecados por preparar cenas e personagens teatrais da história islâmica.” Como isso se refletiu nas peças de Shakespeare?

Shakespeare tinha um fascínio particular pelos mouros. Ele também usava a linguagem dos turcos e dos persas em suas peças. Uma das primeiras peças que ele escreveu, que as pessoas costumam datar em cerca de 1592, é Tito Andrônico. Nessa peça, o principal vilão, o malvado, é chamado Aarão. Ele é descrito como blackamore (mouro), o que significa que ele é do noroeste da África, dos estados berberes. Ele causa todo o caos: estupros sangrentos, pilhagens, mutilações – completamente abominável! As pessoas dizem: “Ah, é a ideia predominante sobre os muçulmanos desse período.”

Quatro ou cinco anos depois, Shakespeare escreveu O Mercador de Veneza. Aparece um outro mouro, chamado de Príncipe do Marrocos. É um personagem bastante benigno e elegante, pretendente de Pórcia, a heroína da peça. Shakespeare brincava com versões diferentes desses personagens muçulmanos e mouros. Dá para entender o malvado Aarão e o nobre Príncipe do Marrocos.

Por volta de 1601, Shakespeare escreve Otelo, que puxa as duas personalidades. Ele é a figura racista, irracional e violenta do homem negro. Ele também é um comandante militar muito poderoso e elegante. O Mouro de Veneza. Shakespeare não busca dar lições de moral. Ele se inspira nessa história de relações anglo-islâmicas para dizer quem é este homem? Confiamos nele? Ele pode nos salvar, mas também pode nos matar enquanto dormimos.

Depois do 11 de setembro, é uma das tragédias mais representadas por causa da complexidade da sua relação com a religiões e as etnias, que vemos hoje na África do Norte e no Oriente Médio. Virou muito mais do que simplesmente um homem negro destruído por um homem branco.

Você cresceu numa das cidades com mais diversidade cultural da Inglaterra – Bradford, Yorkshire. Nos conte sobre a sua juventude e sobre como ela inspirou o seu interesse por esse assunto.

Para mim é algo profundamente pessoal, pois não tenho antepassados na elite. Meu pai pescava em alto-mar e minha mãe era barista. Estudei numa escola pública nos arredores de Bradford, onde nasci. Havia uma diversidade cultural que nós assumíamos, e que era a minha versão da identidade inglesa. Eu jogava cricket com sikhs, hinduístas e muçulmanos; participávamos das mesmas aulas de estudos religiosos. Depois do 11 de setembro de 2001 e do 7 de julho de 2005, quando Londres foi atacada, fiquei muito chocado. O que foi que deu errado? Até aquele ponto durante meu crescimento, aqueles problemas de conflitos sectários nunca estiveram em jogo.

Qual foi a maior surpresa para você ao pesquisar essa história, Jerry?

Estudar personagens que viajaram por um mundo que, hoje, se encontra em colapso. Eles percorriam os locais que atualmente estão controlados pelo dito “estado islâmico”. Naquela época, eles estavam descobrindo um mundo islâmico que era poderoso, sofisticado e superior à cultura de onde eles vinham: a cultura inglesa protestante. Fizeram uma tentativa de compreender, acomodar e de se darem bem uns com os outros.

Isso que foi mesmo o choque, a verdadeira surpresa para mim, de um jeito bom. Havia ingleses a serviço de Elizabeth falando sobre as distinções entre os sunitas e os xiitas na década de 1560, ao passo em que muitos hoje não entendem a distinção. Espero que o pequeno esforço do livro ofereça um outro tipo de história, uma história de tolerância e acomodamento.

Fonte: https://www.nationalgeographic.com/news/2016/10/sultan-queen-elizabeth-england-islam-jerry-brotton/