Uma das cenas do filme The Northman (O Homem do Norte, 2022) do diretor Robert Eggers é a de vikings pagãos atacando, pilhando e destruindo um assentamento eslavo, também pagão, onde hoje é a Rússia, tomando a maioria dos camponeses como escravos. O filme, que se passa na era da ascensão do Cristianismo e queda das Religiões Tradicionais Europeias, conhecidas coletivamente como paganismo, retrata uma realidade dramática vivida não apenas pelos povos eslavos, mas pelos povos bálticos (prussianos, lituanos, letônios e estonianos) e pelos finlandeses, bem como seus primos carélios e lapões. Tal realidade dramática era aquela da captura e venda de escravos europeus para dois principais destinos: o Império Bizantino, no grande mercado de Constantinopla e o Mundo Islamo-árabe.

Essa ideia de vikings pagãos e bárbaros, seminus e com força descomunal, capturando donzelas indefesas é, no entanto, apenas um pequeno recorte de um fenômeno muito maior. Na realidade, a maior parte dos escravizados era sim pagã, mas a dos escravizadores, era cristã, embora muitos escravizados, fossem, também, cristãos, que no final acabariam por serem vendidos, na sua grande maioria, a muçulmanos. Esse tráfico de seres humanos foi tão marcante e característico nesse período de formação dos estados europeus que ficou marcado nas palavras inglesa e castelhana para “escravo”: slave e esclavo, respectivamente, ambas vindo da palavra eslavo, utilizada para designar povos como os eslovênios, croatas, sérvios no Sul, tchecos, polacos, eslovacos no Oeste, russos, ucranianos, bielorussos no Leste.

Na realidade, a Igreja Cristã Calcedoniana (que viria a se separar em 1064 por disputas culturais e religiosas) condenava a escravidão e a venda de cristãos por seus irmãos-de-fé, condenando esta prática como abominação, embora não coibisse a escravização de pagãos. Essa condenação, todavia, não inibiu a atuação de caçadores de escravos cristãos tanto de rito latino (como os italianos e alemães) como de rito bizantino (como os novgorodianos e moscovitas). O destino da carga, cuja maior confissão era, ainda que não exclusivamente, o paganismo eslávico ou báltico, eram os bazares muçulmanos do entorno do Mediterrâneo.

Este tráfico humano, cujo período de maior efervescência foi entre os séculos IX e XII (mais ou menos o tempo da cristianização da Escandinávia e países eslavos do Sul até a Primeira Cruzada). Nesta época, os portos italianos de Amalfi, Gênova e Pisa fervilhavam de escravos capturados nos países eslavos vizinhos, que acabaram de converter-se ao cristianismo, ou mais no interior da Europa, capturados por bandos de escandinavos ou alemães e levados até as cidades mercantes italianas. Os povos eslavos não eram vítimas aleatórias: além de serem naturalmente tribais, desorganizados, populosos, em sua maioria pagãos (mesmo com a maioria das coroas eslavas tendo se convertido ao cristianismo entre 800 e 1000, grande parte da população ainda encontrava-se apegada às suas velhas crenças) e vizinhos dos europeus “civilizados” – eram altamente valiosos. Porquê? Por causa de suas características físicas: brancos de pele alva, olhos e cabelos claros, especialmente os loiros. Tal fenótipo era altamente requisitado e tido em alta estima pelos árabes muçulmanos, motivo esse pelos quais configuravam os eslavos e “circássios” (povo que habitava as montanhas do Cáucaso e mais tarde se converteu ao Islã).

De fato, o fluxo de escravos nos parece ser bem maior do que se dedicou a Academia a explorar até agora. As evidências arqueológicas de joias e moedas de origem e cunhagem árabes no Norte e Leste da Europa fornecem não apenas evidência histórica para o tráfico de eslavos, bálticos e finlandeses, mas para o tráfico em larga escala, indo até meados do século XIV, quando as últimas tribos pagãs do Norte da Europa foram convertidas – justamente aquelas que eram as preferidas pelos caçadores de escravos cristãos, uma vez que estas tribos, não sendo nem cristãs nem muçulmanas, encontravam-se num limbo onde ninguém além deles mesmos fariam oposição a seu cativeiro e escravidão –, isto é, os lituanos, letões, estonianos, finlandeses, carélios e lapões.

A preferência dos árabes – e mais tarde turcos – muçulmanos por escravos brancos e de complexão clara não é novidade. Dentre as concubinas preferidas dos Sultões Otomanos, que não raramente se tornavam suas esposas, estavam as circássias, que, como já foi citado, eram um povo montanhoso vivendo pouco acima do Cáucaso e antes das estepes ucranianas, do mesmo modo que prosperaram as sérvias entre as cortes da Sublime Porta. Desse modo, nos parece mais do que certo que, tendo em vista os estudos mais recentes, é que realmente estivessem as ruas do Cairo, de Damasco e, depois, de Sevilha e Zaragoza, lotadas de escravos loiros de olhos azuis, uma vez que segundo relatos da época e dos historiadores, era este o tipo preferido dos senhores muçulmanos.

Uma vez capturados, transportados até os portos italianos ou gregos – ou, no caso da captura pelos novgorodianos, no transporte até Astrakhan, Bolghar ou Ásia Central – , eram ou vendidos ou novamente transportados para a venda, geralmente no Cairo ou em Cairouan ou Damasco. O Egito era, no entanto, junto do Al-Andalus, o maior destino das levas de eslavos e bálticos. Lá, eram comprados por uma variedade imensa de cidadãos: desde os nobres e membros da corte até o cidadão-artesão um tanto quanto simples, sempre havia algum escravo para ser comprado. Um homem adulto que na Itália valia 7 dirhams (moeda árabe) de ouro, no Egito valia de 30 a 33. Mulheres e crianças valiam menos, mas não deixavam a desejar: 20 e 12 dirhams, respectivamente. Há registro que uma princesa do Egito Fatímida (a dinastia xiita ismailita que governou o Egito por um bom tempo até ser deposta por Saladino) detinha cerca de 8 mil escravas mulheres, a enorme maioria delas, europeias, muito provavelmente de origem eslava, báltica ou germânica. Há ainda um registro de uma escrava eslava de nome Musk que pertencia coletivamente a 3 pessoas diferentes da comunidade judaica do Cairo, que revezavam seus serviços entre si: um boticário, um fabricante de velas e uma dona-de-casa.

Era um negócio extremamente lucrativo e, apesar do banimento do comércio de escravos cristãos por cristãos, nem sempre as vítimas eram pagãos eslavos, apenas: somos confrontados com a possibilidade de escravos eslavos cristãos e prisioneiros de guerra nas contendas feudais da própria Itália, além dos ilhéus britânicos e franceses capturados pelos vikings em seus ataques-relâmpago.

Como foi explicitado mais acima, conforme a cristianização foi avançando entre os eslavos, seus Estados e nobrezas nacionais foram se fortalecendo e ganhando legitimidade. Com esse fortalecimento e legitimidade, os caçadores de escravos foram sendo empurrados cada vez mais ao Norte europeu para conseguirem fazer lucro fácil e sem dor de cabeça, de modo que ataques-relâmpago na Finlândia, Carélia e Países Bálticos tornaram-se comuns no final do período medieval e no começo da Idade Moderna, fazendo milhares de vítimas entre os últimos pagãos da Europa. Os principais feitores desses sequestros eram companhias privadas e tropas nobres, que depois mandavam sua carga – ou simplesmente as vendiam – para os povos túrquicos e tártaros que habitavam no Sul do que hoje é a Rússia e sua fronteira com o Cazaquistão. O principal destino desses mercados eram a Ásia Menor e a Ásia Central.

Apesar do relativo desconhecimento, especialmente frente aos horrores da recente escravidão colonial e neocolonial, podemos observar que a escravidão dos povos eslavos, bálticos e fino-úgricos não foi unicamente uma questão de oferta e demanda, mas de uma espécie de proto-colonialismo religioso, onde o elemento escravagista ajudava na pressão para a disseminação da religião cristã entre as autoridades pagãs da época, como o Rei Mieszko I da Polônia que, convertendo-se ao cristianismo em 966, quis através dessa ação unificar e legitimar seu povo e seu reinado, tentando barrar também a expansão de colonos alemães que acontecia, possivelmente tentando proteger sua gente de ser escravizada por cristãos tornando-se ele mesmo um deles. Tal projeto diretamente ocasionaram as Cruzadas do Báltico (1147 – 1410), onde os cristãos – representados principalmente pelos alemães e a Ordem Teutônica – levaram surras monumentais antes de conseguir qualquer ganho, quase 250 anos depois. “Cruzadas do Norte”, como também foram chamadas, vitimaram também cristãos ortodoxos eslavos, da mesma forma que, séculos antes, gregos ortodoxos e italianos católicos juntavam-se para vitimar através da escravidão não apenas pagãos, mas também cristãos.

Bibliografia

  • JANKOWIAK, Marek (2012). Dirhams for slaves: Investigating the Slavic slave trade in the tenth century. 
  • Why did medieval slave traders go to Finland? (2014). Medievalist.net
  • Human trafficking 1000 years ago (2019), Medievalists.net