O século XX foi, sem sombra de dúvida, um período de mudanças tão profundas quanto conturbadas, que destruíram um velho mundo com violência e revolta para criar um novo. Durante esse período, os outrora prósperos impérios coloniais da velha Europa tiveram seu eclipse, sofrendo com sucessivas humilhações e derrotas nas mãos de súditos rebeldes, especialmente em batalhas ímpares que marcaram a história. Esses subordinados das metrópoles, oprimidos por décadas - às vezes séculos - de colonialismo, agora despertavam para o mundo moderno.

Um desses impérios era o Reino da Espanha - que, embora pudesse ser um “império” de nome, não era tecnicamente um fazia tempo -, outrora uma potência colonial, hoje um reino moribundo, atrasado e coadjuvante. Após o começo de seu declínio no século XVII, a Espanha viu a perda de suas mais valiosas colônias no começo do século XIX, quando a América Hispânica se tornou independente; no final do mesmo século, ela perdeu suas últimas possessões fora da África.

O Marrocos Espanhol, também conhecido como “O Rife”, ou “El Rif”.

A principal dessas possessões era o Marrocos Espanhol, um protetorado estabelecido em 1912, num tratado entre França e Espanha, que delimitou a zona de influência espanhola como um protetorado diretamente administrado pela Coroa, que ia da região de Tânger até adentrar em parte da atual Argélia Ocidental, instituindo uma administração colonial nesse território que até então era marroquino a séculos.

Como reação a políticas e tratamentos abusivos das autoridades espanholas, iniciaram-se no “Rife”, como era conhecido o protetorado, vários movimentos rebeldes de nativos “rifenhos” (ou rifeños) contra a presença espanhola na região por volta do ano de 1909. Inicialmente limitando-se a pequenos ataques de guerrilha, os rebeldes não alcançaram êxito e foram sufocados, mas conseguiram atrair a atenção militar de Madrid para o local.

Em setembro, o exército espanhol tinha 40.000 soldados no norte do Marrocos e havia ocupado as regiões tribais ao sul e sudeste de Melilla. As operações militares em Jebala, no oeste marroquino, começaram em 1911 com o desembarque de Larache. A Espanha trabalhou para pacificar grande parte das áreas mais violentas até 1914, um lento processo de consolidação de fronteiras que durou até 1919, devido à Primeira Guerra Mundial. A dura resistência rifenha, aliada ao despreparo dos espanhóis, acabou por levar a um conflito prolongado que duraria vários anos.

Em 1921, um foco de rebelião liderado pelo engenhoso e educado líder rifiano Abd el-Krim tomou forma. Como resultado, os espanhóis recuaram para algumas posições fortificadas enquanto Abd el-Krim acabou criando um estado totalmente independente: a República do Rif. Na tentativa de consolidar o controle da região, as tropas espanholas sofreram uma das maiores humilhações de suas forças armadas: o catastrófico Desastre de Annual, ou “Batalha de Annual”, que entraria para os anais da história espanhola e do colonialismo, inspirando inúmeros movimentos anticoloniais e anti-imperialistas mundo afora.

O líder dos revolucionários rifenhos, Abd el-Krim: estudado e tenaz, inspiraria figuras como Che Guevara e Mao Zedong através de sua luta.

A derrota de um exército europeu de uma nação orgulhosa, porém decadente em sua glória, nas mãos de um punhado de guerrilheiros de um rincão norte-africano, levou a grandes crises políticas, a queda de vários governos, uma ditadura militar, a abdicação do rei Alfonso XIII e uma redefinição completa da política colonial espanhola em relação ao Rif, já que todo o empreendimento colonial espanhol - junto da honra da Espanha - estava ameaçado.

No âmbito das operações destinadas a subjugar as tribos insurgentes rifenhos, lideradas por Abd el-Krim, em 15 de janeiro de 1921, o comandante geral de Melilla, o general Manuel Fernández Silvestre, depois de ocupar um extenso território a oeste de Melilla, entrou com o grosso de o de sua coluna (uma brigada que contava com cerca de 3.000 soldados) no vale de Annual, onde montou seu centro de operações, uma propriamente em Annual e outra num local mais afastado, chamado Igueriben.

O vale de Annual: perto das inóspitas montanhas do Rife, o local era uma arapuca mortal; e os espanhóis caíram.

A decisão tática de estabelecer seu novo centro de operações tão longe de Melilla, que era sua base logística, da qual fica a 106 km. por um caminho ruim, é controversa (para não dizer ingênua e arrogante) e só se justifica em seus esforços para alcançar a posição chave litorânea de al-Hoceima. O enclave de Annual apresentava outros inconvenientes, como a sua localização numa depressão geográfica rodeada de alturas propícias a emboscadas, inserido num território controlado por tribos hostis ao avanço espanhol.

Em 14 de julho, a posição Igueriben, comandada pelo comandante Julio Benítez Benítez, foi atacada pelos rebeldes. A partir desse momento, o posto avançado sofreu ataques contínuos que o impediram de se abastecer de água, resultando em condições precárias após várias tentativas infrutíferas de envio de um comboio com comida e água, o que motivou muitas tropas auxiliares de nativos à deserção para o lado rifenho. À altura de 21 de julho, com todos os recursos de defesa esgotados e a evacuação ordenada pelo General Felipe Navarro, assistente de Silvestre (depois de destruir tudo que o inimigo pudesse aproveitar), a guarnição de Igueriben iniciou a sua retirada para o Annual no dia 21. A evacuação foi feita em grupos comandados por oficiais que sofreram pesadas baixas, de modo que dos quase 300 homens de Igueriben, apenas 33 sobreviveram.

A situação em Annual logo também se provaria insustentável. Esgotadas física e moralmente, com linhas de abastecimento cortadas, munições escassas e dificuldades em obter água - além de uma obtusa liderança, as tropas aguardavam reforços, enquanto viam os adversários aumentarem em número e agressividade, frequentemente fazendo ataques do tipo hit-and-run (escaramuças-relâmpago) contra as linhas do vale.

Depois de receber a notícia da queda de Igueriben em uma única manhã, o desânimo e a decepção permearam as tropas de Annual, o que levou ao general Silvestre a propor um plano de evacuação ao longo da costa que levaria pelo menos cinco dias para ser feito. Numa última manobra, o plano foi aprovado e foi acordado que "tudo ficaria como estava no acampamento" e todos os oficiais estavam proibidos de "transportar bagagem de mão": era necessário “correr por suas vidas”, evidenciando o pânico da situação onde os espanhóis se colocaram.

Carga del río Igan del Regimiento Cazadores de Alcántara, pintura de Augusto Ferrer-Dalmau.

Por volta das 10 horas do dia 22 de julho, a guarnição começou a marchar em coluna do acampamento em direção a Melilla, até então confiáveis ​​regulares marroquinos, policiais nativos e aliados tribais desertaram para as forças rifenhas, privando a coluna espanhola de flanqueadores e retaguarda. Os soldados espanhóis, sob fogo pesado e exaustos pelo calor intenso, degeneraram em uma multidão confusa e foram abatidos por uma formidável saraivada de balas ou então esfaqueados e passados ao fio de cimitarras pelos rifenhos. Apenas uma unidade de cavalaria, os Cazadores de Alcántara, mantiveram a formação e conseguiram realizar uma retirada combativa, embora sofrendo pesadas baixas. O general Silvestre desapareceu em meio à caótica luta e seus restos mortais nunca foram encontrados, ou, no mínimo, identificados com certeza.

Ao mesmo tempo, para piorar a situação, uma força que estava sendo enviada para quebrar o cerco a Annual, confusa, se estabeleceu na localidade próxima do Monte Arruit, onde resistiram por alguns dias aos rifenhos.

Em 9 de agosto, depois de concordar em entregar a praça, sitiada, submetida a constante fogo de artilharia capturada pelos rifenhos e com seus suprimentos esgotados, a guarnição espanhola de Monte Arruit é massacrada pelos Riffians. Milhares de cadáveres permanecem nas ruínas do acampamento, que permaneceram insepultos por meses.

2.500 (um quinto deles mutilados, feridos ou doentes) que permaneceram vivos da coluna cercada de Navarro, entregaram suas armas e foram mortos a sangue frio. Apenas 69 homens salvaram suas vidas de um total de 3.017 quando o cerco começou.

A vitória em Annual é, até hoje, motivo de orgulho e comemoração entre os marroquinos: ela foi a primeira de muitas humilhações que os impérios europeus sofreriam.

Estima-se que as perdas em vidas humanas do lado espanhol chegaram a até 22 mil soldados no Annual e nos combates subsequentes à retirada. O historiador alemão Werner Brockdorff afirma que apenas 1.200 dos 20 mil soldados espanhóis que no vale de Annual entraram escaparam com vida, mas essa estimativa de perdas é contrariada pelo inquérito oficial espanhol das baixas.

Para se ter apenas uma ideia do porquê a palavra Desastre para esse evento não é exagero, mas elogio, em comparação às perdas espanholas, as perdas de rifenhos foram apenas algo entre 300 e 800 homens, nada mais que isso. Os números oficiais finais para o número de mortos espanhóis, tanto no Annual quanto durante a rota subsequente que levou as forças rifenhas aos arredores de Melilla, foram relatados às Cortes Generales como 13.192 mortos, incluindo entre eles forças coloniais marroquinas (isto é, nativos árabes da região empregados pelo exército espanhol).

A perda material dos espanhóis, no verão de 1921 e especialmente na Batalha de Annual, incluía 11.000 fuzis, 3.000 carabinas, 1.000 mosquetes, 60 metralhadoras, 2.000 cavalos, 1.500 mulas, 100 peças de artilharia e uma grande quantidade de munição. Abdelkrim, o líder rebelde responsável por humilhar a Espanha no vale, comentou mais tarde:

"Em apenas uma noite, a Espanha nos forneceu todo o equipamento de que precisávamos para travar uma grande guerra: canhões e 120 a 150 peças de artilharia Schneider.”

A Espanha, então, havia perdido em questão de poucos dias o que havia ganhado no Marrocos desde 1909, quando sua presença pela região tomou sustância, e o inquérito aberto para avaliar “o que foi que deu errado” para um exército profissional ser abatido como gado concluiu que, em suma, a culpa repousava sobre o desaparecido (e presumia-se que morto) General Silvestre, o favorito do Rei Alfonso XIII em virtude de seu “ímpeto” e “energia”. Podemos ver, todavia, onde esse ímpeto e energia levaram: confiantes na sua superioridade, tanto Silvestre quanto o general Felipe Navarro, seu subordinado na operação, deixaram-se acometer por decisões táticas absolutamente pueris e imprudentes; decisões essas que foram aproveitadas por Abd el-Krim, seu formidável adversário que se provou não apenas mais humilde, utilizando seus homens com táticas de guerrilha que minimiza suas baixas, mas mais inteligente também.

Considerado pela maioria como o responsável pelo Desastre de Annual, em virtude de suas pobres decisões táticas, o general Silvestre veio a desaparecer no caos da batalha, nunca mais sendo encontrado, tal qual um Dom Sebastião moderno e hispânico.

A crise política provocada por este desastre levou o político espanhol Indalecio Prieto a dizer no Congresso dos Deputados do Reino:

"Estamos no período mais agudo da decadência espanhola. A campanha na África é um fracasso total e absoluto do Exército espanhol, sem trégua."

O desastre prejudicou a moral entre o restante das forças espanholas no Marrocos, com os oficiais começando a desconfiar de seus auxiliares nativos sobre os quais começaram a circular rumores de levantes armados. Entre os espanhóis, havia desespero e raiva do governo pela derrota. Muitos espanhóis começaram a inclusive exigir que a Espanha se retirasse completamente de suas colônias africanas remanescentes.

A crise foi uma das muitas que, ao longo da década seguinte, minaram a monarquia espanhola e levaram à ascensão da Segunda República Espanhola.

Apesar de que maior parte da área ocupada pelas tribos rifianas foi retomada por uma expedição liderada pelo general Damaso Berenguer em 1922, o legado de Annual e da mente por trás dele, Abd el-Krim, ficariam para sempre marcados não apenas na Espanha, como motivo de vergonha entre os imperialistas, mas também entre os crescentes movimentos independentistas e anticoloniais que tomariam forma nas décadas seguintes. De Annual a Dien Bien Phu, é um pulo.

Bibliografia:

  • Woolman, David S. (1 June 1968). Rebels in the Rif: Abd El Krim and the Rif Rebellion (1st ed.). Stanford University Press.
  • Pando Despierto, Juan (2008). Historia secreta de Annual. Memorias de guerra (in Spanish) (2nd ed.). Barcelona, Catalonia, Spain: Ediciones Altaya.
  • Mayordomo, Joaquín (22 March 2016). "Annual: Horror, masacre y olvido". El País.