A História do Islã na ilha de Taiwan
Autor: Lucas de Oliveira Ralla 04/08/2022A presença islâmica na China é quase tão antiga quanto o Islã em si: após a conquista do Império Sassânida e incursões na Índia, além da anexação do vale do Indus, ainda na época quando alguns sahabas (companheiros do Profeta sas) estavam vivos. Logo, a expansão árabe chegou à província do atual Xinjiang, defrontando-se com o exército chinês e sendo finalmente parada na Batalha do Rio Talas, em 751, entre o Califado Abássida e a Dinastia Tang. Talas deu um fim às sucessivas vitórias expansionistas árabes no Oriente. A partir daí, mercadores e pregadores, principalmente sufis, instalaram-se nas regiões ocidentais do Império Chinês, rumando cada vez mais adentro do território. Com a tolerância Imperial, muitos chineses (que ficariam conhecidos como Hui) e outros povos – como os dzungares, mongóis, e os uigures, de origem turca – acabaram convertendo-se e cada vez acumulando mais prestígio na sociedade chinesa.
A situação na ilha de Formosa, também conhecida como Taiwan, é um pouco mais tardia, mas não menos antiga: os primeiros registros de chineses muçulmanos em Taiwan data do século XVII, quando em 1661 soldados hui foram enviados para lá a fim de combater a infiltração de holandeses na ilha. Os soldados, como de costume, levaram junto suas famílias e lá se estabeleceram, construindo ao menos uma mesquita que, ainda que não exista mais, há artefatos arqueológicos advindos dela. Apesar de serem os primeiros muçulmanos da ilha, acabaram se assimilando à cultura local e, com o tempo, adotando não apenas a cultura, mas a religião local também. Há relatos de que o almirante hui Zheng He há de ter levado o Islã para esta formosa ilha, mas a presença não foi significante nem durou muito
Um exemplo hodierno dessa assimilação é de duas famílias em Jilong, no nordeste de Taiwan, que contém em seu Altar Ancestral (dedicado à adoração doméstica dos Ancestrais) nada mais nada menos que um Alcorão antiquíssimo em árabe, além de algumas escrituras que lembra os tawiz, amuletos corânicos para proteção. As famílias não praticam o Islã em mesmo sequer entendem o árabe, e não sabiam do que se tratavam tais livros até décadas mais recentes, com o maior “ressurgimento” na superfície do Islã taiwanês, bem como seu crescimento.
Essas “heranças” genealógicas são comuns no que é descrito como a “primeira onda de migração” hui para Taiwan. Outros exemplos desta memória bem-preservada – bem mais preservada que a supracitada, no caso – é o caso de uma família em Yunli que traça sua descendência nos anais familiares até a uma figura importante do Islã na província de Yunnam, na China Continental: Ajjal Shams al-Din Omar, o primeiro governador de Yunnam apontado pela Dinastia Yuan. Yunnam conta com uma grande população de chineses hui. Muitas outras famílias têm histórias parecidas, ligando-as com grandes personalidades muçulmanas do Continente. Além disso, duas ou três famílias observam funerais rituais com uma certa influência mais ligada ao Islã que com as religiões chinesas tradicionais ou o budismo, que envolvem uma lavagem ritual do corpo e seu envolvimento em uma mortalha branca.
Grande Mesquita de Taipei, também chamada de Mesquita-Mor.
Já a chamada “Segunda Onda” aconteceu em tempos recentes: em meio ao caos da Guerra Civil Chinesa, que durou desde o começo dos anos 1920 e só foi findada (pelo menos oficialmente) em 1949 com a proclamação da República Popular da China, também chamada de “A Era dos Senhores da Guerra” produziu uma situação calamitosa dentro da China: o caos social e econômico era acompanhado do caos político, com inúmeros cliques de senhores da guerra diferentes assumindo o controle de áreas delimitadas, sem responder àquele que se proclamava o Governo Central, o Partido Nacionalista (Kuomintang), sediado em Nanquim. Alguns desses cliques eram liderados por generais muçulmanos, como o clique do General nacionalista Ma Bufang que exercia poder sobre a província de Qinghai, partes de Shaanxi e Gansu.
Após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, a guerra durou mais 4 anos até os nacionalistas serem derrotados pelas forças do Partido Comunista, liderado por Mao Zedong, com os nacionalistas fugindo e se encastelando em Taiwan ou se retirando para as selvas de Yunnam e Myanmar (país vizinho) para conduzir de lá guerrilhas que só foram subjugadas nos anos 50. Muitos muçulmanos fugiram do iminente jugo comunista junto aos soldados hui liderados pelo general Bai Chongxi, também um muçulmano hui. Em 1947, 2 anos antes da proclamação da República Popular da China, foi estabelecida a Mesquita-Mor de Taipei, o que além de fornecer um lugar de adoração aos chineses de fé islâmica, facilitou o estabelecimento de relações diplomáticas da República da China (guiada pelo Kuomintang, em oposição à República Popular da China, guiada pelo Gongchandang, o Partido Comunista).
Além da Mesquita de Taipei, outras foram edificadas, como as de Kaohsiung e Taichung. Quando as Nações Unidas condenaram o apoio da República da China às guerrilhas de Yunnam e Myanmar, lideradas pelo General Li Mi, em 1953, os soldados-guerrilheiros nacionalistas, que eram em sua maioria muçulmanos, foram evacuados com o aval do recém-independente Myanmar para Taiwan. Cerca de 5.500 soldados e mais de 1000 dependentes destes foram transportados até a ilha nacionalista (ficando alguns para trás, no Myanmar e na Tailândia), para o centro urbano de Zhongli e arredores. Lá, construíram a Mesquita de Longgang, completada em 1967. Apesar de relativamente numerosos, os Hui ainda se encontravam socioculturalmente segregados dos Han, maioria da população (e seguidora de Religiões Tradicionais e do Budismo) pelo fato de seus costumes serem diferentes, o que ocasionava, entretanto, numa comunidade muçulmana muito unida e solidária entre si. Durante a década de 1960, ficava cada vez mais claro que jamais poderiam retornar para a China Continental (não sem experimentarem os horrores do Socialismo, que à época produziu uma gigantesca fome em 1962, responsável pela morte de milhões e a Revolução Cultural em 1967, responsável pela execução e desaparecimento de milhares de pessoas), o que propiciou uma maior abertura e contato com os Han e uma gradual maior inserção na sociedade como um todo.
General Bai Chongxi, muçulmano Hui e membro do Kuomintang.
Durante as décadas de 80 e 90, muitas das famílias que ficaram no Sudeste Asiático no Myanmar e Tailândia fizeram sua ida para Taiwan, onde se estabeleceram; essa ficou conhecida como a “Terceira Onda”. Ela foi seguida pela “Quarta Onda”, a partir de 1989, que se diferencia das três primeiras pelo fato de ser composta de estrangeiros, a sua maioria, indonésios, mas contando também dentre ele, malásios, filipinos, paquistaneses e indianos. Esses imigrantes vieram dada a demanda por trabalhadores em áreas de “baixo status”, como na construção civil e operários de fábricas.
Hoje em dia, esses operários vindos nessa quarta onda imigratória consistem na maioria dos muçulmanos de Taiwan: 250 mil muçulmanos com origem no Leste Asiático ou no Subcontinente Indiano em comparação a apenas 60 mil muçulmanos taiwaneses nativos ou com origem na China Continental. Devido a esse fator, é comum que haja de certa forma uma segregação natural e não-oficial: há mesquitas tradicionalmente huis e aquelas que foram fundadas e são frequentada por imigrantes; isto, no entanto, não é uma regra, uma vez que muitos estrangeiros frequentam grandes mesquitas originalmente huis, como a de Taipei.
Mesquita At-Taqwa, frequentada principalmente por imigrantes indonésios. Nota-se a bandeira da Indonésia à esquerda.
Houve casos, também, que deram o que falar na mídia taiwanesa, como um que aconteceu numa fábrica têxtil em Taipei em Maio de 2010: a esposa do dono fez com que três empregados indonésios, muçulmanos, se alimentassem com porco durante meses; os indonésios escreveram pedindo a ajuda do Ministério do Trabalho, ao que foram prontamente atendidos. O caso, no entanto, causou alvoroço dentro e fora da ilha: protestos de trabalhadores muçulmanos foram feitos e a Indonésia condenou publicamente o ocorrido. O governo taiwanês, então, além de passar a colocar comerciais durante um tempo para alertar as pessoas dos cuidados com as pessoas não apenas de religião islâmica, mas também de outras religiões, passou uma legislação específica para assegurar os direitos religiosos dos trabalhadores muçulmanos no país.
Atualmente, o Islã se encontra bem difundido na sociedade taiwanesa, com muçulmanos (em sua maioria huis) servindo nas Forças Armadas, exercendo profissões como engenheiros civis, médicos, advogados e estão também presentes no poder legislativo do país. Ao mesmo tempo, há várias associações e ligas muçulmanas no país, Associação Muçulmana Chinesa e a Liga da Juventude Islâmica Chinesa. Há também aquelas que operam em nome de alunos muçulmanos em diferentes universidades do país. É possível também encontrar muitos restaurantes que servem comida halal, além de 4 açougues que vendem carne abatida segundo o modo islâmico, sendo um desses açougues em Taipei e outros três em Yunlin.
As relações de Taiwan com os países árabes sempre foram boas; um exemplo são as relações diplomáticas e econômicas que o país mantém com o Reino da Arábia Saudita: durante a Crise do Petróleo de 1973, os sauditas continuaram fornecendo o suprimento necessário de petróleo para Taiwan, além de agirem com financiamento e investimento no crescente tigre asiático durante todas as décadas de 70, 80 e 90, contribuindo para os grandes projetos de infraestrutura e modernização do país nessas décadas. No ano 2000, Taiwan mandou 22 muçulmanos para fazerem o Hajj em Meca, ao que se juntaram a eles outros 32, convidados pelo Rei Fahd bin Abdulaziz al-Saud. Em 2017, a presidente Tsai Ing-Wen recebeu com honra os peregrinos do Hajj do mesmo ano.
A presidente da República da China (Taiwan) com os membros de associações muçulmanas e peregrinos do Hajj em 2017.
A demografia dos muçulmanos taiwaneses é crescente, mas isso se deve mais ao crescimento populacional da comunidade em si que a conversões. A conversão de taiwaneses ao Islã são poucas e tímidas, mas existentes. Geralmente acontecem por dois motivos: ou por casamento com um(a) muçulmano(a), ou por interesse próprio após leituras, estudos ou mesmo curiosidade.
Taiwan tem vários cemitérios muçulmanos, além de centros culturais como o de Taipei onde são comumente comemorados os bayrams, isto é, as datas festivas da religião islâmica. Por sua vez, as datas comemorativas do Islã como Eid al-Fitr, Eid al-Adha e outras como o Mawlid são ativamente comemoradas no país, com huis e estrangeiros muitas vezes comemorando-as juntos, num espírito de fraternidade, ordem e união que permeia desde sempre não apenas a comunidade muçulmana taiwanesa, mas a sociedade da República da China como um todo.
Celebração do Eid al-Fitr na Mesquita de Taipei.
Cemitério Islâmico de Kaohsiung.
Referências bibliográficas:
• Muslims in Taiwan: A Small Thriving Community, Abu Zafar (2016).
• Islam in Taiwan, Peter G. Gowing (1970), Aramco World.
• Muslim Community finds Taiwan a comfortable home. Seth Corbett (2015), Focus Taiwan.
• Descendants of Chinese muslims in Taiwan (2008), Daiyu Wang, WordPress.