É bem conhecida a inimizade do povo albanês com seus vizinhos cristãos-ortodoxos: gregos e sérvios, mas em especial contra os sérvios, do mesmo modo que existe entre os sérvios um ódio profundo contra os albaneses, ódio esse que se materializou nos trágicos eventos da virada do século XX para o XXI na região de Kosovo, região habitada por uma imensa maioria de albaneses muçulmanos, quando milhares (quase 1 milhão, cerca de 890 mil para ser exato) foram expulsos de suas casas, tornando-se refugiados dentro ou fora de seu próprio país. Com a ajuda da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), os soldados servo-iugoslavos do ditador Slobodan Milosevich foram expulsos do Kosovo, impedindo que o genocídio de albaneses tivesse continuidade e abrindo caminho para que os combatentes da resistência alabanesa, o Exército de Libertação do Kosovo – UÇK avançassem, conquistando a independência do Kosovo e virando a mesa contra os terroristas sérvios.

Acontece que esta não foi a primeira vez que cristãos-ortodoxos eslavos expulsaram de suas casas albaneses muçulmanos para fazer uma limpeza étnica nas áreas que dominavam. Houveram outras ocasiões onde não apenas albaneses, mas eslavos muçulmanos, foram expulsos de suas casas e tornaram-se refugiados dentro do seu único protetor, o Império Otomano.

Os sérvios e outros povos eslavos, que em sua maioria eram cristãos de confessionalidade ortodoxa, estavam espalhados pelos Bálcãs, vizinhos aos albaneses, um povo de origem indo-europeia similar, mas cuja língua é específica a eles próprios e algumas comunidades conhecidas como aromanos, na Grécia. Por volta dos séculos XVI, XVII e XVIII, milhares de eslavos e albaneses acabaram convertendo-se ao Islã, em muitos casos para aliviarem-se dos altos impostos colocados sobre eles em virtude das guerras que os otomanos participavam (uma vez que cristãos e judeus estavam isentos do serviço militar obrigatório), além de também buscarem ascender na sociedade da época, cuja forma mais rápida, fácil e eficiente era converter-se ao Islã.

Esses convertidos, no entanto, e isto especialmente em territórios eslavos, acabaram sendo encarados como traidores da “nação” ou da “tradição” à qual pertenciam, uma vez que o sentido de ‘pertencimento’ e ‘nacionalidade’ estava essencialmente ligado à religião: para ser sérvio, você deveria ser ortodoxo, para ser croata, você deveria ser católico, e se você fosse muçulmano, ou você se tornava um turco (e, portanto, um opressor e inimigo da cristandade) ou se tornava um ‘capacho’ deles. Desse modo, existia, especialmente na sociedade sérvia, que era a mais hostil e revoltosa para com a autoridade Otomana e para com os muçulmanos, um crescente ressentimento entre estes eslavos cristãos e seus vizinhos muçulmanos, sejam eles bósnios ou albaneses.

Em 1875, uma rebelião na região da Bósnia-Herzegovina, protagonizada por sérvios, acabou por levar, no ano seguinte, à eclosão de duas guerras movidas por dois povos cristãos-ortodoxos – sérvios e montenegrinos – contra o inimigo comum turco-otomano, que queria manter os sérvios-bósnios e suas terras sob sua autoridade sultanal. Em 1876, eclodiu a Primeira Guerra Serbo-Turca e, ao mesmo tempo, uma rebelião em Montenegro que deu origem à Primeira Guerra Turco-Montenegrina. Em 1877, os exércitos serbo-montenegrinos, com ajuda financeira, material e de voluntários vindos diretamente do Império Russo, um grande inimigo de Istambul, estavam conseguindo puxar para fora dos territórios reclamados de Niš, Vranje, Toplica and Pirot (habitados por muitos muçulmanos tanto eslavos quanto albaneses) as tropas otomanas e suas milícias de muçulmanos locais, deparando-se, no entanto, com bolsões de resistência de muçulmanos que não estavam dispostos a dar um centímetro de guerra aos invasores.

Neste mesmo ano, entretanto, tomou lugar o maior temor dos muçulmanos da região, que, com a ocasião da ocupação de suas terras pelos exércitos sérvios e montenegrinos, acabaram sofrendo abusos e ataques dos mesmos. Os sérvios, ansiosos para se vingarem de séculos de domínio otomano e desejosos de ‘retribuírem’ o que percebiam como sendo abusos perpetrados pelos muçulmanos contra os cristãos do Oriente Médio, receberam ordens expressas do General Kosta Protic, com o aval e apoio do primeiro-ministro sérvio Jovan Ristic, de, juntamente do exército montenegrino, “limparem” a região dos muçulmanos, expulsando-os para trás das linhas otomanas e matando quem ofeceresse resistência.

Em Janeiro de 1878, as forçoas otomanas que defendiam Niš capitularam, e quase todos os muçulmanos da localidade e seus entornos partiram, com o bairro albanês da cidade sendo queimado até o chão. No Sudoeste em Montenegro, o avanço encontrou resistência de milicianos albaneses que, para defender suas vilas, utilizavam-se de táticas de guerrilha na montanhosa região. Essa resistência, porém, não foi suficiente, e logo todas as vilas perto das montanhas de Radan e Majdan foram esvaziadas, assim continuando até hoje. Vrane foi tomada após Grdelica, com o mesmo cenário se repetindo: os bairros muçulmanos – sejam eles albaneses ou eslavos – sendo destruídos, inclusive suas mesquitas, e com colunas de refugiados, chamados de muhaxhirë em albanês e muhacirs no dialeto sérvio falado pelos eslavos-muçulmanos (ambas as palavras vindas do árabe muhadjir, que significa algo como “refugiado religioso”), avançando em direção a território ainda controlado pelos otomanos. Esses refugiados, na retirada, acabavam muitas vezes se armando e montando resistência contra as forças serbo-croatas, como foi o caso da defesa do cânion de Veternica, onde as forças invasoras foram detidas, antes dos guerrilheiros recuarem para as montanhas.

Não foram apenas os militares serbo-montenegrinos que tomaram parte mna limpeza étnica, entretanto: os eslavos-cristãos-ortodoxos das zonas rurais experienciavam tensões cada vez mais à flor da pele para com seus vizinhos muçulmanos quando decidiram expulsá-los eles mesmos, não deixando nenhum para os militares. Mesmo diante de ordens expressas de seu governo e alto comando para aplicar a expulsão dos muçulmanos da região perto de Masurica, que não ofereceram nenhuma resistência ao exército invasor, um general, Jovan Belimarkovic, se recusou a cumpri-las, oferecendo sua resignação ao Comando-geral do exército sérvio em virtude disso.

Pouco tempo depois, ainda em 1878, o Congresso de Berlim – o infame episódio do neocolonialismo onde as potências europeias se reuniram para “dividir o mundo” – reconheceu os territórios tomados pelos serbo-montenegrinos como sendo legalmente parte da Sérvia e do Principado de Montenegro. À altura dos anos seguintes, centenas de vilas estavam vazias ou ocupadas por novos colonos sérvios trazidos pelo governo; aqueles albaneses que tentaram ficar, viam sua vida tornar-se um inferno e estavam sob constante perigo de vida, fazendo com que sua permanência lá fosse insustentável. Desse modo, apenas algumas poucas vilas em localidades isoladas – ou localidades a ordem de expulsão não foi executada com tanto êxito – permaneceram populadas por muçulmanos, e até hoje seguem.

Fontes ocidentais nos dão o número de refugiados muçulmanos em em cerca de 60 mil famílias que encontraram abrigo na Macedônia e mais 60 a 70 mil que, fugindo dos novos territórios sérvios, abrigaram-se no Kosovo, com o governador otomano do vilayet kosovar dando números oficiais de 65 mil refugiados. O Império Otomano, por sua vez, teve dificuldades em lidar com um fluxo tão grande de muhacirs, instalando muitos em Üsküp e Janipazar e mandando muitos outros para regiões tão distantes quanto Samsun, na costa oriental do Mar Negro. Mais de 100 anos depois, novamente eclodiriam conflitos entre albaneses muçulmanos e sérvios cristãos, dessa vez, como já vimos, no Kosovo, onde podemos dizer com toda certeza, que muitos dos kosovares que sofreram nas mãos dos sérvios de Milosevic são descendentes diretos de albaneses ou eslavos que sofreram nas mãos de Ristic e tantos outros.

Bibliografia

  • ČUBRILOVIĆ, Vaso (1937). The Expulsion of Albanians.
  • JUDAH, Tim (2008). Kosovo: What everyone needs to know. Oxford University Press.
  • LIEBERMAN, Benjamin (2013). Terrible Fate: Ethnic Cleansing in the Making of Modern Europe.