Texto de: Guilherme Freitas

A historiografia mais tradicional data o Descobrimento da América em 1492, atribuindo tal façanha ao italiano Cristóvão Colombo (1451-1506), porém vários são os argumentos de que outros povos chegaram aqui antes de Colombo, como por exemplo os vikings, que deixaram vestigios arqueológicos, e as referencias literárias medievais islâmicas que também apontam para explorações pré-colombianas semelhantes. O presente texto visa, portanto, analisar os argumentos favoráveis e contra tais hipóteses a respeito de muçulmanos africanos na América pré-colombiana, demonstrando a plausibilidade das diversas alegações.

Os relatos a respeito de muçulmanos na América antes de Cristóvão Colombo não são poucos e nem isolados, sendo vários os nomes citados de navegadores e até mesmo governantes que embarcaram em expedições marítimas e eventualmente chegaram nas Américas.

Abu Bakr II e o Império do Mali

Mansa Musa1, o imperador do Mali, normalmente lembrado como o homem mais rico da história, cujo relato a respeito de como chegou ao poder é uma fonte principal para o artigo em questão.

Exemplo da riqueza dos mansas do Mali foi a peregrinação de Musa à Meca, levando consigo cerca de 60 mil pessoas, todas usando finos trajes (em seda persa), juntamente com 12 mil servos, cada um deles carregando consigo quase 2 kg de ouro e alguns arautos também vestidos em seda e portando cetros de ouro, assim como vários animais de transporte. Dentre os animais haviam 80 camelos, cada um carregando cerca de 23-136 kg de ouro em pó. Mansa Musa costumava regalar em caridade ouro aos pobres que encontrava pelo caminho, assim como para as cidades em que passava. Devido às suas enormes doações em ouro repentinamente, várias cidades viram o metal sendo desvalorizado devido à inflação gerada pelo grande influxo ocasionado pelos generosos presentes de Musa. Mais tarde o Mali seria um grande centro cultural e intelectual no continente Africano perto do fim do reinado de Mansa Musa, uma vez que o mesmo fez pesados investimentos em madraçais e outros centros do saber, inclusive em uma biblioteca comparável com a de Alexandria, também na África.2

Iluminura do Atlas Catalão representando Musa I do Mali segurando em sua mão uma grande pepita de ouro (ca. 1375)

Ao ser indagado durante a sua peregrinação em 1324 a respeito de como chegou ao poder, Musa informou que seu predecessor havia realizado algumas expedições no Oceano Atlântico, nunca mais retornando.

Acontece que o predecessor de Mansa Musa foi Mansa Abu Bakr II, que certa feita embarcou em uma expedição com duzentos barcos levando consigo homens, mantimentos, mercadoria, e claro, bastante ouro. Conforme relatado pelo erudito egípcio al-Umari, Mansa Musa teria dito ao governante do Cairo, o sultão mameluco Al-Nasir Muhammad, durante sua peregrinação:

“O governante que me precedeu não acreditava que era impossível chegar até a extremidade do oceano que circunda a terra (referindo-se ao Atlântico), e queria chegar até lá (no fim) e obstinadamente persistiu nesse projeto. Então preparou duzentos barcos repletos de homens, assim como vários outros cheios de ouro, água e comida o suficiente para vários anos. Ele ordenou ao chefe (almirante) para não retornar até que atingissem a extremidade do oceano, ou se ficassem sem as provisões levadas e a água. Eles partiram. A sua ausência se estendeu por um longo período, e por fim, apenas um barco retornou. Ao perguntarmos, o capitão disse: “Príncipe, nós navegamos por um bom tempo, até que vimos no meio do oceano como se um grande rio tivesse correndo violentamente. Meu barco era o último; os outros estavam na minha frente. Logo que eles começaram a chegar no local, afundaram em um vórtice e nunca saíram. Eu naveguei de volta para escapar dessa corrente”. Porém o Sultão não acreditou nele. Ele ordenou que dois mil barcos fossem preparados para ele e seus homens, e outros mil com água e comida. Então ele transferiu sua regência para mim durante sua ausência, e partiu com seus homens na viagem pelo oceano, nunca mais voltando nem dando sinal de vida.”3

Foi assim que Mansa Musa chegou ao poder no Império do Mali, uma vez que ninguém mais retornou das expedições.

A Mesquita Djinguereber, em Timbuktu no Mali, é um famoso centro de conhecimento islâmico construído em 1327. Sua projeção é credenciada a Abu Es Haq es Saheli que de acordo com Ibn Khaldun, uma das fontes mais conhecidas do século XIV de relatos sobre o Império Mali, diz que al-Saheli foi pago com 200 kg de ouro por Musa I do Mali ( Mansa Musa ), imperador do Império Mali.

O tal “rio” citado pelo capitão muito provavelmente foi uma corrente marítima, quem sabe a corrente Norte Equatorial ou ainda a do Golfo (cuja origem se dá no Golfo do México), que são relativamente próximas das Américas.4

Algumas análises de inscrições encontradas aqui no Brasil, no Peru e nos Estados Unidos, assim outros achados linguísticos, culturais e arqueológicos oferecem uma boa gama documental de evidências a respeito dos muçulmanos do Mali na América antes de Cristóvão Colombo.

Muito provavelmente os malineses fizeram contato no Brasil, a região mais próxima da África Ocidental. Provável que tenham utilizado a região como uma base para suas explorações na América, viajando através dos rios e matas densas da América do Sul, até que chegassem na América Central. Examinando as inscrições encontradas no Brasil, mais especificamente na Bahia e em Minas Gerais, assim como na costa do Peru em Ylo, revela-se a presença desses muçulmanos africanos. Tais inscrições foram tiradas de cidades antigas e de tabletes de pedra que foram originalmente escritos em Vai (uma língua mandê) ou na língua Mandinga.5

Não obstante, muitas desses vestígios mandingas de pedra e demais materiais foram retomados pelas selvas, porém grande parte desses sítios foram vistos pelos primeiros exploradores espanhóis ou pelos bandeirantes6. Inclusive, um dos bandeirantes, oriundo de Minas Gerais, nos forneceu muitos exemplos a respeito dos escritos mandingas e descrições das cidades no interior do Brasil. Num documento escrito em 1754, somos informados que uma cidade em Minas, próximo de um rio, era bem estruturada e tinha construções incríveis, como obeliscos e estátuas. Dentre as estátuas havia a de um jovem, sem vestimenta na parte de cima do corpo e também sem barba, e cujo escudo carregava os seguintes dizeres: “Aha-na we-fe-nge”, significando “Ele é da tia materna”, o lado puro [da família], ou trocando em miúdos: ele é herdeiro ao trono.7

Saindo do Brasil, tais aventureiros malineses foram em direção à Bolívia, chegando até o Lago Titicaca, onde provavelmente foram atacados pelos nativos, mas deixando um legado escrito em meio aos índios locais de uma das ilhas do Lago.8

Devido à enorme quantidade de ouro trazida pelos navios de Abu Bakr II, as economias locais e até mesmo foram afetadas, inclusive em suas propriedades linguísticas, uma vez que vemos palavras nas línguas nativas que aparentemente derivam da língua falada pela tribulação de Abu Bakr II, como “goanna; coana; guani; guanine” na língua antilhana e “ghana; kane; kani; kanine; ghanin” na língua Mandinga, em ambos os idiomas significando “ouro”.9

Ainda tratando a respeito das influências, é provável que os nativos americanos tenham sido influenciados até mesmo na vestimenta, uma vez que o próprio Colombo ficou surpreso ao ver que os nativos vestiam roupas idênticas ao que ele havia visto no Ocidente da África. Inclusive o viajante italiano fez várias referências à vestimenta chamada “almaizar”, muito utilizada pelos muçulmanos da Espanha e Norte da África, importados para essas regiões (e também para Portugal) através do ocidente Africano.10

Também a respeito das vestimentas dos nativos, Hernan Cortes também atestou que se vestiam “no estilo da tapeçaria moura”.11

Assim como a troca em bens feitos de algodão era algo importante no mundo islâmico, também foi amplamente empregado como moeda de troca no Caribe e no resto da América Central. A consistente surpresa e os testemunhos dos Europeus a respeito da similaridade entre os designs e usos de tais objetos é outra prova contundente para a ligação entre dois mundos tão distantes geograficamente.

Mais evidências da presença dos muçulmanos africanos na América pré-colombiana podem ser observadas nos escritos de Manuel Orozco y Berra (Historia Antigua y de la Conquista de Mexico), que traça as primeiras colônias de negros vivendo na América Central e em partes do sudeste da América. O padre Francisco Garces (1738-1781) por sua vez encontrou negros vivendo junto com os indígenas Zunis na América do Norte.12

Segundo Jean A. de Quatrefages observou que os indígenas e os negros falavam línguas diferentes, e que conforme os índios da região, os negros foram os primeiros habitantes daquela terra (Novo México).13

Sendo uma das evidências mais fortes para o legado pré-Colombiano dos africanos nas Américas, o grupo étnico dos Garífunas nos chama a atenção, uma vez que também são conhecidos como os Caribenhos Negros.

Escrito por P.V Ramos em 1946, “Quando Colombo descobriu as Índias Ocidentais por volta do ano 1493 EC, ele encontrou lá uma raça de pessoas brancas (i.e. meio miscigenados) com cabelos “com aspectos de lã” [woolly hair] a quem chamou de Caraíbas. Eles eram marinheiros caçadores e lavradores, pacíficos e unidos. Eles odiavam agressão. A sua religião era o Maometanismo (Islam) e sua língua presumivelmente o Árabe.”14

Muito embora a historiografia tradicional argumente que os guarífunas sejam oriundos de relações entre os nativos locais e os escravos negros trazidos pelos europeus, não deixa de ser um fato curioso que as observações como a de Ramos sejam feitas, ainda mais com tantas evidências da presença africana islâmica anos antes de Colombo.

Em que pese haja a discordância de grande parte da academia a respeito da hipótese aqui levantada a respeito dos guarífunas descenderem dos mandigas africanos, existem vários pontos semelhantes ou idênticos ao da religião Islâmica em suas práticas habituais. A título de exemplo: os guarífunas não comiam carne de porco, sob hipótese alguma, isso apesar de conhecerem o valor que qualquer tipo de alimento podia representar para a sobrevivência. Não somente, mas o consumo de porco era um tabu para os guarífunas, que inclusive chamavam o animal de coin-coin ou bouirokou.15

Conforme atesta o The Handbook of South American Indians, os Negros Caribenhos são descritos possuindo como seu bem mais valioso um objeto chamado Caracoli, uma liga de ouro e cobre enquadrado em madeira com formato de uma crescente, que foi obtida através de incursões na América do Sul com os Aruaques.16

Em continuidade, os Guarífunas também possuíam um estrito senso de família, moralidade sexual e a crença em Um Criador.17

Assim como todo assunto acadêmico, existem oposições a respeito do que foi apresentado aqui por alguns acadêmicos. No que tange ao assunto de Abu Bakr II e os membros do Império Mali nas Américas, as objeções são amplas, como por exemplo a de Gabriel Halisp-Viera (1997)18, afirmando que “nenhum artefato genuinamente africano foi encontrado em um campo arqueológico de escavação no Novo Mundo”. Os dizeres de Viera não são únicos, encontrando eco em demais autores, como por exemplo Karl Taubes19, Michael D. Coe e outros acadêmicos.

Conclusão

Apesar de muitos acadêmicos afirmarem que não há artefatos genuinamente africanos encontrados na América antes de Colombo, vemos várias evidências que comprovam o contrário, indo desde moedas com cunhagem em árabe até mesmo variações linguísticas semelhantes às línguas africanas faladas por povos que partiram em expedições para o Novo Mundo.

Tais afirmações merecem ser analisadas com mais cuidado e sempre com o rigor acadêmico e científico necessários para qualquer tema historiográfico, uma vez que apesar da história ter ocorrido no passado, algum documento ou demais evidências podem mudar, sem sombra de dúvidas, nossa compreensão a respeito dos mais variados temas da historiografia.

Em resumo, os estudos devem ser orientados com a motivação de conhecer a verdade real, e não através de preconceitos eurocentristas em achar que sociedades africanas ou muçulmanas não eram capazes de chegar até aqui, pois o norueguês Thor Heyerdahl já provou em 1969 e 1970 que os povos da África tinham condições de cruzar o Atlântico, uma vez que ele mesmo o fez utilizando uma embarcação produzida por nativos africanos.20

Navio de junco Ra II utilizado na segunda viagem do explorador norueguês Thor Heyerdahl em sua tentativa de provar a navegação africana pré-colombiana às Américas. A primeira missão em 1969 falhou após o navio naufragar à 160 km das ilhas caribenhas. A segunda, em 1970, um pouco mais bem sucedidas, conseguiu chegar à Barbados.

Tais hipóteses não devem ser descartadas, pois podem um dia ser provadas de maneira irrefutável a sua veracidade, assim como foi com o caso dos vikings, cuja presença na América era amplamente descreditada, até que as viagens de Leif Eriksson (970-1020) se tornassem um fato indiscutível para a historiografia.

Notas e Bibliografia:

[1] O termo “Mansa” é uma palavra Mandinga que significa Sultão ou Imperador;

[2] “Lessons from Timbuktu: What Mali’s Manuscripts Teach About Peace | World Policy Institute“. Worldpolicy.org. 2013;

[3] Shihab ad-Din ibn Fadl al-‘Umari, Masalik al-Absar fi Mamalik al-Amsar, traduit par Daudefroy Demomtoyenes (Paris: KLibrarie Orientaliste Paul Geuthner, 1927), 74-75;

[4] Harold Lawrence, “Mandinga Voyages Across the Atlantic”, in Ivan Van Sertima, African Presence in Early America, 238, Mohammed Hamidullah, “L’Afrique Decouvre l’Amerique avant Christophe Combe”, Presence Africaine, XVIII-XIX, (Fev-Mai, 1958);

[5] Clyde Ahmed Winters, “Islam in Early North and South America”, Al-Ittihad, 1977. For more information see Idem, “The Influence of the Mande Languages on America”, a paper delivered at the 9th annual conference of the LIberian Studies Association, (Panel: Historical Ethnographics), Western Illinois University, March-April, 1977;

[6] H.T. Wilkins, Mysteries of Ancient South America (New York), 1974;

[7] Clyde Ahmed Winters, Islam in America, 60;

[8] Ibid, p.60;

[9] Peter DeRoo, History of America before Columbus (London/Philadelphia: J.P. Lippincott, 1900), 307;

[10] Thatcher, Christopher Columbus, p. 388, 393. 1903;

[11] Leo Weiner, Africa and the Discovery…Vol. 2, 37;

[12] Clyde A Winters, Islam in….America, 63;

[13] A. De Quatrefages, Histoire Generate des Races Humaines, Introduction a l’Etude des Races Humaines (Paris: A Hennuyer, 1889);

[14] P.V. Ramos, “History of the Caribs” in The Daily Clarion, Belize, Central America, November 5, 1946 taken from D. Taylor, The Black Carib of Honduras, 37;

[15] Charles de Rochefort, The History of the Carriby Islands, Translated by John Davis, two volumes (London: J.M. for Thos. Dring & John Starkey, 1966), 2, 273;

[16] Julian Steward (ed.), Handbook of South American Indians, 6 vols. (Washington, D.C. Smithsonian Institute Bulletin 143, 1950 vol. 1, 177;

[17] Quick, Abullah Hakim. The African, and Muslim, Discovery of America – Before Columbus. History Of Islam;

[18] Haslip-Viera, Gabriel; Ortiz de Montellano, Bernard; Barbour, Warren (1997). “Robbing Native American Cultures: Van Sertima’s Afrocentricity and the Olmecs”. Current Anthropology. 38 (3): 419–441;

[19] Taube, Karl (2004). Olmec Art at Dumbarton Oaks. Pre-Columbian Art at Dumbarton Oaks, no. 2. Washington, D.C.: Dumbarton Oaks Research Library and Collection; Trustees of Harvard University;

[20] Quick, Abullah Hakim. The African, and Muslim, Discovery of America – Before Columbus. History Of Islam.