Hoje em dia, é comum para aqueles que vão tratar dos assuntos referentes ou perpassantes às comunidades culturais e étnicas que compões o Judaísmo em classificar três “tipos” de judeu: os ashkenazim, isto é, judeus europeus, com a palavra ashkenaz significando “Alemanha”; Sefaradim, para os judeus mediterrâneos e das nações árabes próximas à esse, com a palavra Sefarad significando “Espanha”; e, o terceiro (e mais recente), os Mizrahim, os judeus habitantes dos países árabes e do Oriente Médio num geral, com o radical Mizr significando, como nos outros casos, um país, o Egito, ou mesmo “Oriente”. Cada radical desses termos denota um lugar em particular cuja comunidade ou surgiu ou foi mais numerosa, com essa mesma comunidade não se limitando a ele: apesar dos ashkenazis terem sua origem na Alemanha, eles logo se tornaram mais numerosos no Leste Europeu, especialmente na Polônia e Rússia.

Essa terceira e última categoria citada, todavia, é recente e não é ‘tradicionalmente’ usada. Como podemos ver aqui mesmo nesta pequena introdução, o termo Mizrahim intercala-se com o Sefaradim para referenciar àqueles judeus oriundos dos países árabes do Oriente Médio e Norte da África, além da Turquia. Isso é ocasionado pois a própria identidade “Mizrahi”, ou “Judeus do Oriente” é, em si, não apenas um termo, mas uma fabricação cultural e étnica recente, de meados do século XX, criada para fins políticos e geopolítico em prol do então nascente Estado de Israel.

Há alguns anos atrás, o Knesset, isto é, o parlamento israelense, aprovou uma lei que determinava os imigrantes mizrahi que vieram a Israel em massa durante os anos 50 e 60 como sendo “refugiados de guerra”, em razão da Guerra de Independência. Essa proposta, apoiada principalmente pelos setores da Direita israelense, como o então primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seu partido Likud, coloca os mizrahis como pessoas refugiadas que, fugindo da “perseguição” islamo-árabe em seus países de origem devido às reações à Guerra de 48 que, após serem expulsas de suas casas, encontraram abrigo no acolhedor Estado de Israel. Veremos, todavia, que não foi bem assim.

Enquanto a região ainda era um Mandato Britânico, no início do século XX, a Palestina começou a receber um influxo um tanto quanto elevado e absolutamente incomum de imigrantes judeus (ashkenazis, isto é, europeus, em sua grande maioria) em seu território – ocasionado, principalmente, pela propaganda sionista que se intensificou após a tomada da região pelos britânicos após a Primeira Guerra Mundial e a própria Declaração de Balfour (1917), no meio do combate, onde os britânicos prometiam à comunidade judaica tentar formar para eles um território onde pudessem viver e ter autonomia, na Palestina. Essa imigração, contudo, começou a despertar a comunidade nativa de palestinos muçulmanos (e cristãos) e até mesmo de judeus que lá viviam – judeus esses que seriam chamados de ‘mizrahi’ no futuro –, que fizeram reclamações cada vez mais sonoras às autoridades britânicas, principalmente com o advento da atividade anti-britânica por guerrilhas e gangues judias de imigrantes ashkenazis, o que fez com que os britânicos proibissem a imigração judaica para a região.

Após a Segunda Guerra Mundial e a tragédia do Holocausto, a paciência judaica havia acabado e os ânimos subiram: os britânicos, frente a uma crescente maré de refugiados judeus da guerra e do genocídio, e pressionados, também, pela luta armada e terrorismo judaico de grupos extremistas como o Irgun e o Lehi, decidiram-se a abandonar a região, partilhando-a, antes, entre árabes palestinos e judeus. Como todos já sabemos, essa história não deu nada certo e ocasionou a Guerra de Independência de Israel, entre 1947 e 1949. Após a declaração de independência de Israel – que coincidiu com a própria guerra de independência – foram removidas todas as barreiras impostas pelos britânicos anteriormente para a imigração judaica na região, ao mesmo tempo que foram expulsos milhares de palestinos para que fosse “liberado espaço” para a povoação judaica, num episódio conhecido como Nakba (árabe para “catástrofe”).

Palestinos protestando contra a imigração judaica, 1937, Jerusalém.

Durante o período pré-independência, no final do século XIX, houve a imigração pequenas, mas notável, de alguns milhares de judeus iemenitas e judeus de outros países árabes, inspirados pela já efervescente propaganda sionista que despontava. E, também já nessa época, aqueles que mais tarde seriam chamados de “judeus do Oriente”, ou mizrahi, experienciavam preconceito por parte de seus correligionários – e futuros patriotas – askhenazim: um judeu de origem árabe chamado Gamliel Cohen, por exemplo, não conseguia encontrar um lar naquela terra que era dita pela propaganda sionista ser  o lar dos judeus; ele ia de kibbutz (um tipo de comuna agrícola judia na região da Palestina) em kibbutz, e ia não sendo aceito por onde passava; quando finalmente foi aceito em um, foi proibido de ouvir as músicas e língua árabe que cresceu ouvindo.

No final da década de 40, todavia, após o término da Guerra de Independência, os judeus iemenitas, bem como os judeus de outros países árabes, seriam trazidos em massa para o recém-nascido Estado de Israel. Seriam trazidos muitos judeus de diversos países através de operações especiais coordenadas em conjunto pelo Serviço Secreto Israelense – o Mossad –, o Ministério das Relações Exteriores e os altos membros do Governo, com ajuda de contatos locais, tanto na Europa quanto no Oriente Médio, numa extensa rede de networking. Na Europa do Leste, dominada pelo Comunismo Stalinista, a única forma de contar com a boa-vontade dos governos comunistas dos países-satélite da União Soviética era através do suborno: a Bulgária, por exemplo, chegou a pedir 50 dólares por judeu permitido a ser evacuado para Israel pelos responsáveis pela operação no país, ligados à Embaixada Israelense e a movimentos sionistas.

Esse grande primeiro movimento de imigração ao recém-nascido Estado de Israel foi impulsionado pelo governo israelense de Ben-Gurion e seu time de ministros para ajuda o novo país com seu ‘déficit humano’. “Antes éramos uma nação sem Estado. Agora, corremos o risco de virarmos um estado sem uma nação.” Disse Ben-Gurion em 1949. Desse modo, movimentos sionistas ao redor do mundo todo – dos EUA à Europa e sobre o Oriente Médio – articularam-se juntamente do Mossad e seus agentes que, tendo a tarefa específica de incentivar a imigração judia à Israel, passaram a criar uma rede de contatos com os governos europeus e com organizações e rabinos judeus em países árabes, bem como, também, com oficiais do alto escalão desses governos. A imigração era incentivada pelos agentes do Mossad com diferentes estratégias para cada comunidade em específico: no Leste Europeu, dentro da Cortina de Ferro, os agentes israelenses apresentavam esta chance de sair dos países como sendo a única; após a passagem da oportunidade, as portas se fechariam e eles não mais poderiam ter a oportunidade de ir embora, ficando confinados ao Bloco Socialista e seu destino. Nos países árabes, havia a promessa de uma vida melhor, mais digna e mais certa, segura, em Israel; além de semearem o medo de possíveis pogroms pelos muçulmanos enfuriados com a miséria dos palestinos, os agentes do Mossad em países como os do Norte da África, prometiam uma terra maravilhosa, com emprego e boa vida, aos judeus de lá, que muitas vezes não se convenciam a irem especificamente para Israel (embora com certeza iriam a outros lugares, como França e EUA). Estas promessas, todavia, revelariam-se vazias – pelo menos aos judeus de origem árabe.

No Marrocos, onde a comunidade judaica tem uma longa, rica e única história, houveram alguns agitamentos antissemitas durante a década de 40, agitados principalmente pelo governo colaboracionista dos nazistas da França de Vichy, que ficou no controle do Marrocos, Argélia e Tunísia de 1940 até a libertação do Magrebe, em 1942. Atentos à possibilidade de novos pogroms e vorazes para incentivar os judeus marroquinos a emigrar, o Mossad estabeleceu uma rede subterrânea na comunidade judaica marroquina que ia desde a propagação de panfletos e outros materiais sionistas, urgindo à emigração, até o armamento e treinamento de milícias judaicas para a autodefesa da comunidade de possíveis ataques. Apesar de todo esse esforço, os agentes israelenses viam-se de certa forma frustrados, uma vez que seus esforços para incentivar a emigração dos judeus marroquinos não vinham sendo tão bem-sucedidos, até mesmo pela relutância do governo do também recém-independente Marrocos em deixar seus cidadãos serem cooptados em massa a irem para uma outra nação que atacava países árabes. Ao fazerem reconhecimento de campo, os agentes sionistas ficaram entusiasmados pelo alto número de judeus marroquinos, embora decepcionados pelo que frequentemente chamam de “falta de civilização”, quando comparados aos imigrantes ashkenazis da Polônia, Hungria e Romênia. Apesar de serem “bárbaros”, o sionismo via neles uso: “Quanto mais eu visitava essas aldeias (berberes) e me familiarizava com seus habitantes judeus, mais me convencia de que esses judeus constituem o melhor e mais adequado elemento humano para assentamento nos centros de absorção de Israel. Foram muitos os aspectos positivos que encontrei entre eles: em primeiro lugar, todos eles conhecem (suas tarefas agrícolas), e sua transferência para o trabalho agrícola em Israel não envolverá dificuldades físicas e mentais. Satisfazem-se com poucos (necessidades materiais), o que lhes permitirá enfrentar os seus primeiros problemas económicos’’, disse Yehuda Grinker, um dos organizadores da emigração ilegal dos judeus do Magrebe para Israel, referindo-se aos judeus marroquinos. Imigrantes norte-africanos forneceriam a Israel mão-de-obra barata para substituir os trabalhadores árabes que faziam esse tipo de trabalho antes da independência. O padrão de vida do judeu norte-africano não era mais alto do que o do fazendeiro árabe, e sua “civilização’ era igual à do árabe, bem como sua língua franca; porque não substituir um com o outro, pensavam os políticos de origem ashkenazi. Esse pensamento “estatístico”, vendo os judeus “mizrahis” como pouco mais que recursos humanos para a mão-de-obra israelense e bucha de canhão para as Forças de Defesa de Israel se tornaria bem mais grave e desumano, como veremos mais à frente.

Crianças judias marroquinas celebrando um festival religioso no século XIX.

Na Argélia, a situação já era outra: quando os franceses tomaram o país na primeira metade do século XIX, eles trataram de, além de incentivar a imigração francesa ao país – dando origem aos pied-noirs, franco-argelinos –, começaram um processo de alienação da comunidade judaica local para cooptá-los a serem não apenas ‘franceses’, mas agentes coloniais colaboracionistas, algo que não agradaria aos pied-noirs cristãos. Na segunda metade do século XIX, o afrancesamento dos judeus no norte da África colonial francesa, devido ao trabalho de organizações como a Alliance Israelite Universelle e políticas francesas como o decreto de cidadania argelina de 1870, resultou na separação da comunidade dos muçulmanos locais. Após o Décret Crémieux de 1870, eles foram elevados do status de dhimmi de minoria protegida, parte da sociedade argelina muçulmana, ao status de cidadãos franceses do poder colonial. O decreto deu início a uma onda de protestos antissemitas liderados pelos pied-noirs (como os distúrbios antissemitas de 1897 em Orã), dos quais a comunidade muçulmana não participou, para decepção dos agitadores europeus. Apesar dessa rivalidade, o processo de integração judaico à identidade franco-argelina foi bem sucedida através da virada e século XX adentro. Durante a Guerra de Independência Argelina (1954 – 1962) foram feitas tentativas de evacuar algumas populações judias para Israel, mas esses esforços foram atrapalhados pelo conflito em andamento. À altura da Independência argelina, adquirida em 1962, foi aprovada no ano seguinte a Lei de Nacionalidade Argelina que restringia a nacionalidade a pessoas que tivessem duas linhagens ancestrais paternas muçulmanas e argelinas, ou seja, um pai ou dois avôs muçulmanos argelinos. Cerca de 800.000 franco-argelinos foram repatriados para a França, junto com uma parte da população judaica argelina, que optou por ir para a França, enquanto os outros foram, finalmente, para Israel.

Na Líbia dos anos 40 e 50, a situação não era tão favorável aos agentes da emigração israelenses quanto na Argélia: os judeus não tinham motivos suficientes para deixarem suas vidas lá – que eram bem confortáveis e estabelecidas, diferentemente da maioria dos judeus marroquinos – e nem sequer existia qualquer animosidade entre eles e a população local para motivar uma emigração. Isso frustrava os diretores da Mossad que, percebendo a relutância de muitos judeus de países árabes em deixarem seus países de origem, onde eram bem tratados e viviam a gerações, em troca de um país estranho e frágil, acabaram percebendo uma nova necessidade: a de “forçar” a emigração. “A imigração em massa chegará apenas como resultado da angústia. Esta é uma verdade amarga, gostemos ou não. Devemos considerar a possibilidade de iniciar a angústia, de trazê-la para a Diáspora... Pois os judeus devem ser obrigados a deixar seus locais de residência. Como disse o poeta: ‘Ele não acordará a menos que seja despertado pelo chicote, ele não se levantará a menos que seja forçado pelo saque’." Disse o um dos membros do Knesset em uma reunião com membros do Mossad e agentes de ONGs sionistas. Um dos líderes de uma dessas ONGs, em uma outra reunião, disse: "Mesmo os judeus que não desejam deixar [suas casas] devem ser forçados a vir...”.

Judeus líbios reunidos com seu rabino e seu hakhan, foto do final do começo do século XX.

Logo tornou-se claro, ao final dos anos 40, já, para os agentes sionistas que a diáspora não seria facilmente levada a emigrar; ela teria que ser provocada a sair de seus países. Tendo isso em vista, Em 14 de Janeiro de 1951, uma bomba foi lançada no pátio aberto da sinagoga Masuda Shemtov em Bagdá. O pátio servia de ponto de encontro para os judeus, antes de sua partida para o aeroporto, a caminho de Israel. No momento do ataque terrorista, o local estava lotado com várias centenas de pessoas. Quatro deles, incluindo um menino de 12 anos, foram mortos; cerca de 10 ficaram feridos. As autoridades iraquianas culparam dois ativistas da resistência sionista e os executaram. A embaixada britânica em Bagdá transmitiu a Londres sua própria avaliação dos motivos por trás do ataque: ativistas do movimento sionista queriam “mostrar o perigo” para os judeus do Iraque, a fim de estimular a emigração para o Estado de Israel; para isso, atacaram seus próprios correligionários a sangue frio, a fim de culpar “árabes antissemitas” pelo suposto ato terrorista. Foi nesse mesmo Iraque que, anos antes do atentado, havia começado o processo de incentivo e “contrabando” imigratório dos agentes israelenses e sionistas dos judeus do Iraque. Em conexão e acordo com o governo iraquiano do primeiro-ministro Nuri Said, os judeus iraquianos eram, no melhor estilo “coiote”, contrabandeados para o Irã para, de lá, voarem até Israel. Tal esquema continuaria por alguns anos, mas conforme ia continuando, mais ficava claro aos israelenses e seus agentes que muitos dos judeus do Iraque não queriam (e nem tinham porquê) emigrar. Daí, fez-se necessária a “forçação” através de terrorismo false-flag.

Os judeus da Síria foram aqueles que mais entusiasticamente deixaram seu país: a proximidade geográfica permita que eles fossem até o Líbano e, de lá, fossem andando ou de carro até Israel, com a anuência do governo libanês. A comunidade judia do Líbano, curiosamente, não demonstrou interesse nenhum em emigrar, com o Líbano sendo inclusive o único país das décadas de 40, 50 e 60 a não ter um declínio na sua população judia, mas um aumento (embora isso fosse mudar após o fim dos anos 60).

No Iêmen, que foi o lar de uma das mais singulares e significativas comunidades judaicas do Mundo, a atividade dos agentes israelense foi sintetizada na “Operação Tapete Voador”: durante mais de um ano, em mais de 450 voos, mais de 40 mil judeus iemenitas foram retirados de sua terra natal e levados á Israel, com muitos mais ainda sendo levados no decorrer dos anos 50. “A condição deles é lastimável [...] eles carecem totalmente de qualquer civilização, de modo que não sequer usam os banheiros disponíveis.” Diz um agente do Mossad em Áden sobre os iemenitas sob sua tutela, que aguardam evacuação. Do Iêmen, os judeus eram levados para Áden, e de lá iam para voo até Israel. O preconceito não era, todavia, apenas verbal: por medo de doenças e vermes, os judeus iemenitas tinham suas roupas tradicionais queimadas nos acampamentos de espera, recebendo em troca roupas ocidentais, vindas de Israel, as quais nunca tinham usado antes; as mulheres, sentiam-se nuas e humilhadas,; os homens, ridicularizados. Ao chegarem em Israel, todavia, essa humilhação não seria nada.

Judeus iemenitas com um Sifrei Torah em Áden, século XX.

Quando os assim-chamados “mizrahim” (que logo começou a ser o termo empregado pela casta ashkenazi-europeia de Israel para os imigrantes, ou “refugiados”, como querem alguns atualmente), sejam eles os imigrantes ilegais marroquinos transportados em navios precários e cheios pelo mediterrâneo, sejam eles os antiquíssimos porém “paupérrimos” judeus iemenitas chegavam a Israel, eram aglomerados em campos e construções superpopuladas, sem estrutura, com comida péssima e cobertores usados e mal lavados, como narra um jornalista israelense da época. Famílias inteiras eram forçadas a dividirem quartos e tendas com estranhos de diversas partes do mundo, falando as mais diversas línguas; mas nenhuma delas hebreu ou iídiche, como reclamou o próprio Ben-Gurion em seu diário. Enquanto a maioria dos judeus da maioria dos países árabes não podia levar junto grande parte de seus pertences pessoais, os iemenitas podiam. Porém, apesar disso, algumas das bagagens dos judeus que partiram, incluindo antigos rolos de Torá, joias e roupas bordadas, que eles foram encorajados a trazer com eles, desapareceram no caminho e misteriosamente "chegaram a lojas de antiguidades e souvenirs em Israel", de acordo com o escritor Tom Segev.

Judeus iemenitas leem a Torá num campo de imigrantes em Israel, início da década de 50.

Eles não eram, de fato, tão bem-vindos quanto pensavam. Zeev Sherf, um membro do governo de Ben-Gurion, declarou: "Onze ministros no governo - esse é o número ideal. Se deve haver um sefardita, terá de haver doze ministros." [1] Além de serem forçados a ficarem em campos de imigrante imundos, com “rios de excrementos” como denunciava um pasquim da época, na hora de serem alocados através do país, ficavam atrás, também, dos ashkenazis: Eles receberam a parte pior e menos lucrativa da agricultura do país - nas montanhas, na Galiléia e na Judéia. O solo rico e facilmente cultivado na região costeira e no sul foi dado principalmente a imigrantes da Europa. Durante o caos migratório que se seguiu entre os anos 1949 – 1954, os mizrahis não contavam apenas com a má sorte da superpopulação, falta de planejamento e descaso do governo, mas com a própria malícia de seus correligionários mais alvos e mais afortunados. Nessa primeva leva de imigrantes mizrahis, teve lugar um dos casos mais escandalosos e infames de Israel: o roubo de bebês mizrahis, tirados de suas famílias, para serem criados por famílias ashkenazis. Até hoje, a abdução desses bebês de diversas família – em sua maioria iemenitas – é considerado tanto um escândalo quanto um mistério em Israel, com ninguém sabendo (não, pelo menos, publicamente) o paradeiro das crianças abduzidas, numa espécie de versão Oriental do infamo caso argentino Las Madres de la Plaza de Mayo, que tiveram suas crianças roubadas pela Ditadura Militar Argentina e entregues a famílias de militares para serem criadas.

 

Não bastasse o descaso e crimes contra a humanidade perpetrados direta ou indiretamente pela Autoridade Israelense contra os seus recém-chegados “cidadãos”, o escritor e historiador israelense Tom Segev escancara ainda mais o racismo e a hipocrisia do governo de Ben-Gurion e seus camaradas ashkenazis: com a chegada de cerca de 10 mil imigrantes poloneses, discutia-se entre alguns membros do governo e do Knesset sobre o status dos poloneses ashkenazim que estavam chegando. Uma parte do governo queria – pasmem – dar-lhes preferência e privilégios sobre os outros imigrantes, e argumentando sobre as “péssimas e tenebrosas condições dos campos com ‘os orientais’,” discutiam se deveriam esvaziar os campos para melhor proveito dos polacos, ou se deveriam alocá-los em confortáveis hotéis, onde de lá procederiam a iniciar suas vidas com empregos que estariam a ser garantidos pelo governo.  Ao mesmo tempo, a Agência Judaica tentou fazer arranjos para sua habitação permanente, o que incluía a doação de casas já destinadas à imigrantes de países árabes, mas que não foram entregues ainda. Eles também buscaram obter orçamentos especiais para facilitar a aquisição de apartamentos aos ashkenazis, e chegaram mesmo a considerar um fundo especial para esse fim a ser angariado fora do país. Uma semana depois o Executivo discutia a atribuição de um campo especial para os imigrantes polacos, onde cada família ter uma sala separada – ao contrário dos cheios dormitórios no acampamentos de imigrantes mizrahis descritos por jornalistas –. O assim-chamado Departamento de Absorção comprometeu-se a fornecer tal acomodação para 2.000 imigrantes da Polônia. Itzhak Greenbaum, o Ministro do Interior, exigiu que as mesmas condições fossem fornecidas para todos os imigrantes poloneses, dizendo:

“... Em vez de colocar os judeus poloneses nesta situação [em campos cheios], seria melhor fazê-lo com os judeus da Turquia e Líbia. Isso não será difícil para eles. Você deveria saber disso, essas pessoas (da Polônia) vêm da Alta Silésia, onde cada família tinha um apartamento de 3 a 4 quartos, apartamentos alemães, móveis alemães, todo o conforto de uma cidade alemã... Há médicos entre eles... Você colocaria um médico em um acampamento como Beit Lidd ou Pardes Hannah - como você acha que ele vai sentir, o que ele vai pensar?” [2]

Enfrentando discriminação no país que os prometeu acolher de braços abertos, sem nenhuma expectativa empregatícia além de serem mandados a terrenos montanhosos à própria sorte, ou para serem jogados no exército, muitos sentiam-se traídos. “Eles mentiram para mim”, escreveu um imigrante da África do Sul para sua mãe. “Quero voltar imediatamente. Se eu não partir em uma semana, morrerei de fome. Por favor, querida, implore, peça emprestado, roube, penhore tudo o que você tem, apenas me mande o dinheiro, ou não vou aguentar mais uma semana... este é um país sem Deus.” A mãe nunca recebeu esta carta. Ela foi confiscada e guardada pelo Mossad, onde permaneceu em seus arquivos, com o carimbo “Detido pela Censura”.

Entre 1948 e 1951, 260 mil judeus imigraram para Israel de países árabes, dos quais cerca de 50 mil eram iemenitas, muitos por vontade própria, outros apenas por “todos estarem indo” e não desejarem ficar para trás, enquanto outros realmente temiam por suas vidas, apenas para enfrentar a discriminação Ashkenazi institucionalizada em Israel. Quanto aos judeus que optaram por ficar: em Áden, o emissário israelense Shlomo Schmidt, pediu permissão para propor que as autoridades iemenitas os expulsassem, mas as autoridades iemenitas não o fizeram. O governante de Bahrein pediu que 2.000 judeus fossem deixados em seu território, a fim de manter o mandamento islâmico de agir como protetor dos judeus. No Marrocos, a situação permaneceu normal, com o Rei Hassan inclusive convidando, mais tarde, os judeus marroquinos que foram para fora a voltarem, assim como também fizeram, depois de muitos anos, os governos do Iêmen, Egito, Iraque, Líbia e Sudão, especialmente à luz da discriminação racista ashkenazi institucionalizada a que foram submetidos em Israel. Nem Israel nem suas comunidades árabes judaicas atenderam aos apelos. A atitude “benevolente” dos governos árabes não é nada surpreendente, uma vez que Durante as ondas de perseguição na Europa medieval, muitos judeus encontraram refúgio em terras muçulmanas. Judeus expulsos da Península Ibérica foram convidados a se estabelecer em várias partes do Império Otomano, onde muitas vezes formavam uma próspera minoria modelo de mercadores que atuavam como intermediários para seus governantes muçulmanos. A recusa dos mizrahis em retornar, todavia, também não é surpreendente: se tornaria cada vez mais perigoso ser um judeu em países árabes, tendo em vista a escalada de radicalização que haveria em algumas vertentes do Islã nos anos 80 e 90, bem como a própria radicalização do movimento palestino à época; não apenas os mizrahim já estavam – apesar de tudo – construindo sua vida no novo país, como não tinham motivos para retornar para seus países, apenas motivos contra.

Uma mulher mizrahi vítima do roubo de crianças do início da década de 50 em Israel protesta por justiça.

Do mesmo modo, não é nada surpreendente a tratativa preconceituosa e racista dos ashkenazim de origem europeia contra os judeus de origem árabe quando nos propomos a olhar nos anos adolescentes da ideologia do sionismo – concebida em seio ashkenazita –, no final do século XIX e início do XX. Um dos maiores ideólogos do sionismo político e militante, o veterano da “Legião Judaica” do Exército Britânico da Primeira Guerra e ativista político Ze’ev Jabotinsky disse:

“Nós judeus não temos nada em comum com o que é chamado de Oriente, graças a Deus. Na medida em que nossas massas incultas [judeus religiosos] têm antigas tradições espirituais e leis que advém do Oriente, elas devem ser afastadas deles, e isso é de fato o que estamos fazendo em todas as escolas decentes, o que a própria vida está fazendo com grande sucesso. Estamos indo para a Palestina, primeiro para nossa conveniência nacional, [segundo] para varrer completamente todos os vestígios da alma oriental”. [3]

Jabotinsky, que foi o fundador da primeira organização sionista da história, a liga para jovens “Betar”, ativa na Polônia, Reino Unido e EUA do entreguerras (países pilares da comunidade ashkenazita), expressou nesta frase uma tendência que se tornaria cada vez mais comum e translúcida no movimento sionista como um todo: o ocidentalismo, em oposição ao “orientalismo”. Uma nação judia que não fosse “apenas” um lar para todos os judeus se refugiarem da perseguição, mas uma nação que mudasse o próprio judeu, tornando-o tal e qual os ingleses, americanos e alemães; uma “tocha da luz ocidental” meio do “mar de escuridão” do Oriente Médio. Podemos ver como esse discurso, essa ideia, preconceituosa e pró-europeia não se desfez com a fundação de Israel, mas se institucionalizou: os judeus árabes eram um “mal necessário” para Israel, que necessitava de braços para o trabalho pesado e para a empunhadura do rifle, braços substituíveis. Os modos e vidas “bárbaras” dos “judeus orientais” eram um incômodo, um estorvo para a ideologia sionista e seu racismo colonizador. Os árabes tinham acabado de ser expulsos a muito custo, agora trariam mais árabes? Ao menos, eram de fé judaica também, desabafavam alguns políticos e agentes do Exterior em suas cartas. Ainda hoje, apesar de terem seguido o plano das autoridade ashkenazis e se assimilado (em grande parte dos casos, ao menos), os mizrahis (principalmente as comunidades não-assimiladas) continuam a enfrentar preconceito dentro do Estado de Israel, e suas comunidades configuram entre as mais pobres e mal pagas dentro da comunidade judaica israelense, reforçando o discurso (que se prova correto) de que Israel não é meramente um estado, mas uma entidade racista e fundada no racismo, como tantas outras. Assim se esvai o discurso de “única democracia do Oriente Médio”.

Bibliografia

Livros:

  • [1][2][3] SEGEV, Tom (1986) 1949 – The First Israelis. Henry Holt and Owl Books.
  • BLUM, Yehuda Zvi (1987). For Zion's Sake. Associated University Presse.
  • HAKOHEN, Devorah (2003). Immigrants in Turmoil: Mass Immigration to Israel and Its Repercussions in the 1950s and After. Syracuse University Press.
  • SHULEWITZ, Malka Hillel (2001). The Forgotten Millions: The Modern Jewish Exodus from Arab Lands. Continuum International Publishing Group.

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