Nos últimos dias, protestos contra e a favor o governo dos Aiatolás têm causado tensão na República Islâmica do Irã. Os protestos iniciais, começaram após a morte, em circunstâncias ainda não esclarecidas, de uma jovem curda étnica em custódia da polícia iraniana, presa após não usar o hijab (o véu islâmico), o que pode ser considerado uma ofensa criminal no Irã, uma vez que o não-uso do hijab é crime legal. O resultado foram protestos organizados por setores liberais e de oposição ao governo dos, contando com cenas emblemáticas como mulheres colocando fogo em seus véus e cortando seus cabelos curtos, ao que foram respondidos com protestos ainda maiores, dessa vez a favor do governo e em defesa das leis.

Reza Shah nos anos 1930

Com efeito, as notícias naturalmente chegaram ao Ocidente, e não demorou muito para que acontecesse aquela mesma velha história de compartilhamentos de imagens do Irã pré-revolução, contendo mulheres de cabelos curtos andando de minissaias e roupas modernas, usando biquínis e maiôs nas praias, como se realmente todas as milhões de mulheres se vestissem dessa maneira ocidental e, da noite para o dia, fossem forçadas a se cobrir com o véu. Isso nunca aconteceu, mas o contrário sim: na primeira metade do século XX, tornou-se crime usar o véu em público. Milhões de mulheres iranianas foram, então, forçadas não a cobrir-se, mas a despir-se, sob a ameaça de levarem surras estrondosas da polícia do Xá. O que possivelmente aconteceu com a garota Mahsa Amini, de fato aconteceu com não uma, não duas, mas centenas de mulheres muçulmanas iranianas, mortas cruelmente em nome do “progresso” e da “modernização”. Aqui veremos a história delas.

Reza Shah, sua esposa Tadj ol-Molouk e suas filhas Shams e Ashraf, 8 de janeiro de 1936, trajando roupas ocidentais.

Em Dezembro de 1925, Ahmed Shah Qajar, membro de uma dinastia de origem túrquica que governava o Irã desde o século XVIII, foi deposto pelo militar Reza Khan, que logo depois foi proclamado novo Shah (ou Xá, isto é, Rei, Monarca) do Irã, iniciando assim a última dinastia persa em mais de 2 mil anos de monarquia, a dos Pahlavi, que teria fim com seu filho e sucessor, Mohammed Reza Shah.

Reza, um militar treinado pelos russos e com fortes laços com os britânicos, era um profundo eurófilo, que admirava toda a sociedade ocidental com seu industrialismo, seus costumes, seu progresso material e científico, olhando com insatisfação – se não desprezo – para a sociedade do próprio país, encarando-a como rural, atrasada e cega pela religião islâmica. Em virtude disso, e inspirando-se no ditador turco Mustafá Kemal Atatürk, seu governo foi logo caracterizado por esforços de modernização tanto econômicas quanto sociais, mas não políticas, pois apesar de não gostar das tradições nacionais, estava mais que interessado em manter a natureza absolutista de seu cargo, embora seja certo que assim o preferisse fazer numa roupagem moderna, republicana, tal como Atatürk. Com coroa ou não, Reza Shah fez-se valer de seu poder e tomou inúmeras medidas para modernizar o país, implantando ferrovias, criando bancos, escolas e universidades e, também, permitindo que as companhias petrolíferas estrangeiras, em especial as britânicas, tomassem conta da produção do país, tornando a Anglo-Iranian Oil Company numa quase monopolizadora da extração de petróleo do Irã.

Reza Shah, no entanto, logo demonstraria para o que veio: na ocasião de um feriado religioso xiita na cidade de Qom onde ele e sua esposa, a Sharhbanu, foram, sua esposa acabou por violar uma das regras do evento, perto do Santuário de Fátima (a neta do Profeta Muhammad), tendo sido chamada a atenção por um imã do local; o Shah, então, violou o santuário com seus guardas e espancou o imã, antes de prendê-lo. Reza sabia que não poderia fazer do Irã uma “segunda Turquia” sem copiar a Atatürk em tudo; “modernizar” o Irã implicava também em atacar e desmantelar os costumes e tradições religiosas dos iranianos, e isto seria feito, nem que para isso tivesse que atacar os próprios iranianos.

Eventos sociais onde o simbolismo da adoção de costumes ocidentais pela elite era lugar comum.

Em Dezembro de 1928, o Xá baixou um decreto que obrigava os iranianos – com exceção dos clérigos – a vestirem roupas ocidentais, o que naturalmente desagradou à imensa maioria da população por vários motivos, tais quais o choque cultural entre as tradicionais vestimentas persas e as ocidentais, a falta de disponibilidade das mesmas, uma vez que apenas lojas em grandes cidades as vendiam (e o preço não era tão modesto), além do fato de que os chapéus ocidentais, com suas abas, simplesmente impediam que a testa tocasse o chão ou a turbah (uma pedra que muçulmanos xiitas usam para fazer as rezas), uma vez que é tradição usar algo na cabeça para rezar, porem sem abas impeditivas. Além disso, o Xá também decretou o uso de cadeiras nas mesquitas, em imitação das igrejas cristãs, em contrariedade ao hábito islâmico de se sentar no chão do templo, o fim da segregação entre homens e mulheres seja em espaços públicos ou provados e a limitação de períodos de luto nacional a um dia (visando assim atacar rituais de luto comuns ao xiismo).

As medidas do Xá, assim como a crescente corrupção e os altos impostos acabaram por irritar os clérigos e os muçulmanos devotos, que em 1935 rebelaram-se no Santuário do Imã Reza (o oitavo Imame do xiismo duodecimano), proferindo sermões contra o herético Xá e gritando palavras de ordem como “O Xá é o novo Yazid” (em referência a Yazid ibn Muawiya, o tirano Omíada cujo o exército assassino o Imã Hussein e vários membros da Família do Profeta). Por quatro dias, o santuário permaneceu inviolado, mas depois que tropas do Noroeste do país chegaram, a rebelião foi sufocada, resultando na morte de cerca de 500 pessoas, incluindo mulheres e crianças.

A gota d’água, no entanto, foi logo no ano seguinte, quando o Xá Reza promulgou o khashf-ê hêjab, o “descobrir-se do véu”, que terminalmente proibia o uso do véu em público, fosse na rua ou em restaurantes ou em prédios governamentais. Inicialmente, o uso do véu foi desencorajado, mas não proibido, pelo Xá. Como sendo opcional, é custoso que o Xá e suas asseclas realmente cressem que as milhões de mulheres iranianas simplesmente jogariam seus hijabs no lixo ou no fogo; crendo ou não, o que se passou não chegou nem perto: apenas as mulheres da elite burguesa de Teerã e da nobreza andavam descobertas; mulheres que estudaram na Europa, casadas com estrangeiros, mulheres cristãs e herdeiras de grandes proprietários. Em outras palavras, quase ninguém não queria usar o véu, a imensa e quase total esmagadora maioria da população ainda o usava.

O decreto de 1936, no entanto, não deixava escolha: pontuava que qualquer mulher que usasse o véu em público estava cometendo uma ofensa criminal contra o Estado, dando à polícia o poder e o dever de usar a força para retirar-lhe o véu, ou então levá-la presa (o mais comum era que fossem espancadas). Do mesmo modo, professoras não poderiam usar o véu e nem permitir que suas alunas também o utilizassem, e estabelecimentos e instituições públicas (como hospitais) poderiam e deveriam recusar prestar serviços a qualquer mulher que vestisse um hijab.

Nesta imagem do Conselho Administrativo da organização feminina Jam'iyat-e Nesvan-e Vatankhah, Teerã, 1922-1932, as mulheres já se trajam de forma ocidental antes da implementação do Kashf-e Hijab do xá.

Como já foi dito, para garantir que o decreto fosse “respeitado”, a polícia valia-se da força: mulheres eram agredidas, com seus hijabs forçosamente removidos, além de terem também suas casas revistadas e seus véus confiscados. O clima geral resultante para as mulheres era de terror, de modo que muitas recusavam-se a sair de casa e algumas, mesmo, acabaram por cometer suicídio.

Esse decreto foi apoiado apenas pelos aliados de governo do Xá e por uma meia-dúzia de escritoras “feministas” pertencentes à alta classe iraniana que, do alto de suas torres de marfim, acharam estar prestando algum tipo de serviço às suas compatriotas ao apoiar um ato ditatorial de um tirano. A reação de todas as outras mulheres do país, no entanto, foicontundente e corajosa: simplesmente não pararam de usar, de modo que depois de um tempo, os policiais se cansaram de enxugar gelo e pararam de aplicar o rigor da lei nas pobres mulheres.

O Xá Reza Khan foi deposto não muito tempo depois, em 1941, depois de se aliar de maneira atrapalhada com Adolf Hitler e a Alemanha Nazista e ser invadido pelos britânicos e soviéticos, que instalaram seu filho, Mohammed Reza, para ser seu fantoche no trono iraniano. Sob o governo de Mohammed Reza, o uso do véu se tornou opcional em áreas públicas, mas não em prédios públicos: em repartições do governo, escolas e universidades, era ainda proibido seu uso; restaurantes, também, eram encorajados a não servirem mulheres que usassem o véu. Com o tempo, o não-uso do véu foi se espalhando da ínfima classe alta iraniana para a classe média em ascensão, embora o seu número continuasse pequeno.

O governo de Mohammed Shah não foi muito mais popular que o de seu pai, tendo governado principalmente através da intimidação, da tortura e da execução de seus inimigos políticos (e religiosos). Embora mais moderado em algumas questões que seu pai, Mohammed Shah era decididamente menos enérgico e mais truculento. Sua truculência, corrupção e ineficiência levaram em 1979 à Revolução Islâmica do Irã, quando o povo iraniano derrubou a monarquia e colocou seus clérigos, sob a liderança do Aiatolá Ruhollah Khomeini, no poder.

Mulheres iranianas usando véus durante a Revolução. O véu tornou-se um símbolo de oposição à ditadura do xá durante a revolução, e muitas mulheres o usavam como tal.

De repente, a situação girou em 360 graus: a partir de então, passou a ser obrigatório o uso do véu, e o seu não-uso tornou-se uma ofensa contra o Estado. A polícia, que a 43 anos antes tinha a tarefa de descobrir as mulheres, agora tinha a tarefa de cobri-las. O hijab foi decretado como obrigatório em todos os ambientes públicos, desde as ruas até escolas e prédios públicos. Muitas mulheres que apoiaram a Revolução, no entanto, sentiram-se traídas, pois não achavam que a situação mudaria tão rápido e o hijab tornar-se-ia obrigatório. Em resposta, centenas de mulheres, instigadas pela classe ocidentalizada do regime deposto – sem véu – marcharam pelas ruas de Teerã a 8 de Março de 1979, dia da mulher, protestando contra a instituição da obrigatoriedade do hijab. Desde então, não usar véu tornou-se um símbolo de subversão contra o governo dos Aitolás, do mesmo modo que usá-lo era símbolo de resistência contra o jugo dos Xás.

1979, Protestos do Dia da Mulher Iraniana contra o uso obrigatório do véu. Mulheres sem véu protestando contra a introdução do véu obrigatório. Embora muitas mulheres tivessem usado o véu durante a Revolução, elas não esperavam o uso obrigatório do véu após a derrubada do xá.

Esse toma-lá-dá-cá de políticas de vestimenta acabou enraizando-se profundamente na sociedade iraniana, polarizando-a, pelo menos no que diz respeito dentre as mulheres. A politização do símbolo religioso que é o véu islâmico é uma lástima para o Islã iraniano, pois foi ela que acabou gerando essa sucessão de políticas e governos radicalmente contrários. Como disse o cônsul britânico de Teerã na época da aplicação do khasf-ê-hêjab:

“Além do pão de cada dia, o que afeta mais amplamente as pessoas é o que toca o código de hábito social que, no Islã, é endossado pela religião. Entre os muçulmanos, os iranianos não são um povo fanático. O desvelamento das mulheres inaugurado no ano anterior ataca tanto o conservadorismo social do povo quanto seu preconceito religioso.”

As gerações mais antigas (e muitas novas também) têm uma tendência maior a usarem e apoiarem a política da República islâmica a respeito do véu, especialmente em áreas de interior. Enquanto isso, as gerações mais jovens e urbanas, tendem a rejeitar tais políticas e a rejeitar, juntamente com ela, o governo que a mantém. E, como podemos ver no relato, fica claro para nós que se hoje o Irã passa por protestos contra um governo clerical que obriga as mulheres a se cobrir, é porque anteriormente obrigaram-nas a se descobrirem, e isto produziu um trauma. E um trauma, produz reações exagerados, enquanto os exageros, geram discórdia.

Bibliografia

  • ABRAHAMIAN, Ervand (2008). A History of Modern Iran, Cambridge, UK; New York.
  • KATOUZIAN, Homa (2004). "State and Society under Reza Shah" in Atabaki, Touraj.
  • FORAN, John (2003). Theorizing revolutions. London: Routledge.
  • Mahsa Amini: What we know after 11 days of protests in Iran (2022). Aljazeera.