Texto de: Pedro Gaião

Talvez você já tenha ouvido frases como: “Hoje você pode reclamar o quanto quiser, mas se não fossem as Cruzadas, hoje você seria obrigado ser muçulmano”, “sem as Cruzadas, hoje você não teria liberdade” e por aí a fora. Caso você tenha vindo a ouvi-las, quero que saiba que você não deve acreditar nelas. Por mais que a minha afirmação possa causar desconforto em alguns dos leitores, eu não posso ser conivente com essa linha de pensamento. Este tipo de jargão se baseia apenas em afirmações de cunho polêmico, agregando pouquíssimo entendimento histórico de fato. Eu vos afirmo: não existe nenhuma ligação plausível de causa e consequência entre as Cruzadas e a preservação de uma sociedade cristã na Europa, qualquer discurso que se apoie nesta afirmativa se reduz à uma falácia de falsa causalidade.

Se você não estiver com ânimo de ler toda a minha explanação do tema, eu sintetizo com um equivalente retórico: afirmar que as Cruzadas impediram a Conquista Islâmica da Europa é tão incoerente quanto afirmar que os indígenas impediriam a Conquista Portuguesa eliminando as forças francesas de seu solo. Espero ter-me feito claro o suficiente com isto. Se você invadisse o Califado Fatímida, os Almorávidas não parariam de avançar sobre território cristão; se você atacasse os Mamelucos do Egito, os Otomanos não parariam de avançar sobre território cristão.

Chega a ser curioso, por vezes, a forma como certas pessoas são incapazes de desconstruir um conhecimento prévio por puro apego emocional à ilusão de sabedoria que ela possuía anteriormente. Qual a dificuldade em entender que o Mundo Islâmico Medieval, assim como a América Pré-Colombiana, não era um bloco monolítico em questões administrativas, políticas e até religiosas? Sim, o Islã tem divisão interna; sim, houveram guerras por causa disto, perseguição e imposição de crença em zonas de influência; a fogueira dos muçulmanos era a crucificação, apenas entenda que o cristianismo não monopolizou a perseguição de heterodoxos.

Bom, eu já sei que mais cedo ou mais tarde alguém vai citar Thomas F. Madden como autoridade nas Cruzadas para validar a posição aqui combatida. De fato, Thomas F. Madden é estimado no meio acadêmico e recebeu seus louros por seus trabalhos no assunto, seria perda de tempo negar isto. No entanto, da mesma forma que eu reconheço Madden como um autor de certo prestígio, ele é péssimo quando se trata de imparcialidade e transmissão de fatos. É até hipócrita ele fazer justamente o que ele condenava nas obras de Steve Runciman, dizendo que sua presteza encontrava-se apenas “no entretenimento”. Sim, mesmo Runciman consegue ater-se à transmissão dos fatos históricos de forma satisfatória, característica que Madden convenientemente ignorará para dar espaço à sua propaganda, não limitada a um de seus livros, mas presente em todos os seus artigos e colunas de jornal que já tive a oportunidade de ler. Existem técnicas de propaganda exaustivamente usadas em seus trabalhos, como “cherry picking” (i.e. falácia de evidência incompleta) e “card stacking” (i.e. empilhar cartões), que tornam praticamente impossível aproveitar tais textos como material adequado para informar-se de um assunto que o leitor não domina. É por esses motivos que eu recomendo: não forme sua opinião por Madden. Se você tiver interesse busque por nomes como Jay Rubenstein, Jonathan Riley-Smith, Asbridge e até mesmo Runciman. Com isso você terá um apanhado geral de todas perspectivas acadêmicas e poderá formar sua opinião da melhor forma possível.

Antes de mais nada, quando me refiro às “Cruzadas”, falo somente das Nove Expedições com objetivo de libertar a Terra Santa e Jerusalém, seja por quais meios fossem estabelecidos (i.e. intituladas como Primeira Cruzada, Segunda, Terceira etc). Tendo com base isso, podemos retornar à era das Conquistas Islâmicas.

A partir do século VII, os árabes, inspirados pelo zelo religioso da nova religião islâmica, conduziram uma série de conquistas assustadoramente velozes e extensas: o Império Persa e boa parte do Império Romano Oriental seriam anexados pelo Califado Rashidun (i.e. “bem guiado”, em árabe). Tais conquistas puderam ser rápidas e eficientes nesta proporção graças ao julgo “suave” imposto aos nativos, que se demonstraram particularmente receptivos aos novos dominadores. Diferentemente do Império Romano, que impunha impostos pesados e perseguição religiosa aos heréticos, os árabes se apoiavam em um governo relativamente tolerante e que hoje poderia ser chamado de “minarquia”. As coisas, é claro, começam a mudar com a entrada da dinastia Omíada e, posteriormente, às aristocracias que usurpavam o poder de determinadas províncias e estabeleciam suas respectivas vertentes islâmicas em seus governos. A partir disto, os Estados Islâmicos que sucedem o Rashidun seriam caracterizados por flutuações na política de tolerância religiosa. Já no governo Omíada, os zoroastristas fugiriam da perseguição religiosa em direção à Índia; no Segundo Cerco Árabe à Constantinopla, os coptas desertariam do exército para buscar asilo com o imperador romano/bizantino, ainda que fossem considerados heréticos pelo Credo Calcedônio.

As conquistas, é claro, não parariam: avançariam sobre a Espanha e a Itália até quanto possível, sendo mutiladas naquela por batalhas como Tours-Poitiers (732) e Covadonga (718 ou 722). Em 846, Roma seria saqueada pelo emirado aglábida, um principado islâmico nominalmente vassalo do Califado Abássida. O referido saque obrigou o Papado a pagar tributo em forma de Jyzia para que não fosse atacado novamente, embora o risco nunca tenha desaparecido: segundo conta-se, Maomé teria revelado que as cidades de Roma e Constantinopla seriam “abertas” aos muçulmanos (i.e. conquistadas), mas que Constantinopla seria a primeira das duas. Desta forma, nunca poderíamos descartar uma real possibilidade destas cidades serem cobiçadas por determinados monarcas muçulmanos; digo “determinados” por que o reconhecimento de legitimidade dessa profecia não é universal no islamismo, principalmente entre os xiitas, a veem como uma falsificação. 

No Oriente, os bizantinos voltariam às ofensivas com a ascensão da Dinastia Macedônica (867 – 1056), que abalou a balança de poder na Ásia por meio das reconquistas da Anatólia, da Armênia e de parte da Síria. Boa parte dos Estados vizinhos converter-se-iam em vassalos tributários ou satélites; salvo o Califado Fatímida, que era xiita e controlava a Palestina na época. Um fator que viria a mudar esse cenário seria a chegada dos turcos pelo oriente, o qual discorreremos em breve.

O século XI também seria marcado pelo avanço da Reconquista na Espanha e na Itália, junto com o primeiro cisma da Igreja Católica, que a dividiu em duas esferas, a Ocidental (sob domínio central do Papa) e a Oriental (governo conjunto e descentralizado de bispos de relevância). Embora o Cisma tenha teoricamente eliminado oposições internas à soberania papal, não demorou muito tempo para que o próprio Papado se encontrasse na chamada Querela das Investiduras, ao qual saiu vitorioso. O episódio da Querela é parte fundamental na abordagem das Cruzadas, pois os novos dogmas e reformas eclesiásticas do Papa Gregório VII assegurariam uma centralização efetiva no Ocidente, exercendo agora um poder temporal estava acima até mesmo dos reis da terra. Sem este evento, seria extremamente improvável que sucessores de Gregório VII pudessem angariar tropas europeias da forma como se deu ao fim do século.

No Oriente, a Dinastia Macedônica terminou-se em crise sucessória; o Califado Fatímida, adepto do islamismo xiita, encontrava-se em uma série de guerras civis entre as etnias governadas; o Império Turco, construído à ferro e fogo, pressionava cada vez mais à Oeste. O Cataclisma se dá em 1071, quando um novo imperador bizantino, desejoso de afirmar-se no trono por meio de sucesso militar, comete um erro que custaria muito. Ele reafirmara um acordo de paz com o sultão turco, pondo fim na guerra entre ambos para que este se dedicasse à invasão do Califado Fatímida. O acordo era só uma desculpa para mover as tropas turcas para bem longe, de forma que os bizantinos invadissem seus domínios sem que lhes fosse oferecida grande resistência. Mas houve um problema: o sultão turco descobrira tais planos e nunca realmente abandonara a região, derrotando os bizantinos em Manzikert. A derrota mais foi resultado de faccionalismo político do que de incompetência militar: o comandante da retaguarda, adversário político do imperador, desobedeceu ordens expressas e desmanchou a formação, causando a dispersão das tropas que fez os turcos vencerem. Diferentemente do que certos autores gregos viriam a contar, as baixas não foram imensas, de forma que até os comandantes conseguiram fugir ou foram libertos depois de pagarem resgate. Mesmo com a captura do imperador, o sultão turco não tinha imposto condições pesadas pela vitória, pois sua intenção era continuar a conquista do Califado Fatímida, cuja questão religiosa – os turcos eram sunitas – pesava até mais que o seu equivalente com os cristãos; na época, esmagar um rival religioso interno – xiitas – era muito mais importante que combater os cristãos, de forma o próprio conceito de “Jihad” passou a ter um viés mais focado em combater heterodoxos do próprio islamismo do que tratar de infiéis. “Então por que os turcos conquistaram a Anatólia?” Simples: quando os oficiais voltaram para casa, cada um apoiara seu próprio pretendente ao trono, mergulhando o Império numa guerra civil que desviou os turcos de seu propósito original. Os Fatímidas foram deixados de lado e os turcos se expandiram na Anatólia Bizantina, tomando quase que sua totalidade. 

Neste cenário de caos, o general Aleixo Comneno, encarregado de eliminar outros generais usurpadores, usurpa o trono com o apoio da imperatriz prévia. Desde 1092, o Sultanato Turco Seljuque perdeu seu ímpeto de conquistas e fragmentou-se em guerras civis, permitindo que Aleixo pudesse explorar a situação para restaurar alguns dos antigos territórios do Império. No entanto, ele sentira que precisava de mais alguns cavaleiros ocidentais que lhe servissem de mercenários. Visando este objetivo, foi enviada sua famosa carta de apelo ao Papa Urbano II.

Relatando as inúmeras perseguições sofridas pelos cristãos orientais no Concílio de Clermont (1095), Urbano II cativara seus ouvintes de tal forma que estes clamavam por uma Guerra Santa aos gritos de “Deus o Quer”. Quanto a veracidade das perseguições relatadas, não há: não existe nada que prove que os turcos ou os fatímidas tinham travados as peregrinações ou faltado com seu serviço de proteger os peregrinos. Às vezes costumam citar a Grande Peregrinação Alemã (1064–65) como evidência para uma extensa pratica de banditismo, já que nessa ocasião os peregrinos alemães teria sofrido com “diversos assaltos de bandidos turcos”. O problema é: houve só um grupo de bandidos, e não era turco, era beduíno, um povo que estava em rebelião aberta contra os Fatímidas na época; quem salvou os peregrinos de tais bandidos foi, curiosamente, o governador Fatímida da região. Peregrinações, seja da França para Compostela ou daquela para Jerusalém, eram sempre perigosas, pois os peregrinos eram alvos fáceis e sempre andavam com muito dinheiro. A questão se torna ainda mais banal já que bastava fazer a travessia por mar e você evitava todo o problema dos bandidos muçulmanos. Estes relatos de perseguição proferidos por “testemunhas oculares” e pelo próprio Urbano II são lorotas grosseiras: relatos de que os bandidos muçulmanos bebiam o sangue e devoravam os corações dos peregrinos, de que os muçulmanos eram adoradores de demônios e de que os muçulmanos supostamente usavam os templos cristãos como estábulos para seus cavalos eram apenas algumas das propagandas que causaram comoção massivas nos corações ocidentais; haviam também estrelas cadentes, demônios voando no alto das igrejas e outras dezenas de eventos sobrenaturais respaldando a “necessidade” da Cruzada. Como Jacques Le Goff nota, a ameaça turca não havia sido invocada como pretexto para a Primeira Cruzada em seu devido tempo, sendo uma interpretação distorcida que os historiadores do século XII erroneamente assumiram como verdade para o século passado.

Dessa forma, existem poucos motivos factuais para a Cruzada acontecer, que mesmo assim aconteceu da forma errada: Aleixo queria um grupo modesto de cavaleiros sujeitos ao seu comando, não um exército autocéfalo de 20-30 mil homens que, por vezes, ameaçaram abertamente a soberania bizantina. Talvez ninguém personifique isso melhor que Boemundo de Taranto, filho do infame conquistador Robert Guiscard, aventureiro normando que invadira a Grécia nos primeiros anos do reinado de Aleixo Comneno; muito embora Boemundo não tomara parte nas guerras bizantino-normandas, ele de alguma forma se via digno de assumir o trono bizantino, desejo que declarara abertamente ao visitar Constantinopla na Primeira Cruzada, mas não “colocara em prática” por pressão dos demais líderes. Boemundo fora o único dos líderes da Primeira Cruzada que inicialmente recusara prestar o juramento de devolver as terras bizantinas, fazendo-o somente depois de Aleixo prostrar-se diante do mesmo e, em gesto de humilhação, implorar que o fizesse de bom grado. Aliás, vale notar que Aleixo já havia recebido essas tropas mercenárias desejadas mesmo antes da Cruzada em si: em 1086, Roberto I de Flandres encontrara Aleixo na jornada de retorno de sua peregrinação e prometera ajudar os bizantinos com 500 cavaleiros flamengos, o que foi feito.

O decorrer da Primeira Cruzada já é de conhecimento para alguns: massacres em todas as cidades conquistadas pelo exército cruzado, casos relatados de canibalismo, morticínio mútuo entre soldados e até o estabelecimento de gigantescos prostíbulos móveis que seguiram as tropas na marcha à Jerusalém. Se o estranhamento dos bizantinos com os francos não fosse suficiente, ainda teria isso: enquanto Aleixo liderava os bizantinos para ajudar os cruzados no Cerco à Antioquia, um dos líderes da Cruzada aparecera. Esthevam de Blois, que havia desertado da situação caótica do cerco, exclamava que a Cruzada tinha sido perdida, fazendo os bizantinos voltarem para casa. Isto fez os cruzados acharem que tinham sido abandonados, o que deu alguma justificativa para descumprir o juramento de devolver as terras conquistadas à Coroa Bizantina. Assim nasceu o Principado da Antioquia, governado por ninguém menos que Boemundo de Taranto, o fidalgo menos propenso à cumprir o juramento desde seu início.

As Cruzadas ajudaram o Império Bizantino a se reerguer? Pelo contrário. Não existe nenhuma evidência significante que prove que os bizantinos receberam grandes benefícios com as Cruzadas: poucas realmente combateram os inimigos dos bizantinos na época (os seljuques), focando-se mais nos Estados ao Sul; o Reino Armênio, que era vassalo bizantino, usou os cruzados para tornar-se cada vez mais independente da autoridade do imperador; por vezes as Cruzadas demandavam suporte bizantino para sua realização, algumas delas até exigiam, como a Cruzada Germânica (1197), que ameaçou anexar Bizâncio ao Sacro Império caso tributo monetário não fosse repassado, ocasião que esvaziou os cofres bizantinos e influenciou indiretamente no Saque de Constantinopla (1204); alguns participantes das Cruzadas, como o Kaiser Frederico Barbarossa, conspiravam ativamente para usurpar o trono bizantino, às vezes se aliando até aos turcos com esse propósito; além disso, veremos imperadores da Dinastia Comnena sendo obrigados a lutar com Estados Cruzados e até com os cavaleiros templários e hospitalários por questões de terras. E sim, também teve a Quarta Cruzada, que conquistou Constantinopla e repartiu a Grécia entre os nobres participantes e as Ordens Militares, substituindo o Império Bizantino por um Império Latino fraco, que impôs o catolicismo em detrimento da ortodoxia grega. Mesmo que um dos Estados Sucessores bizantinos tenha recuperado parte do que havia sido dominado pelos latinos, este novo Império fazia pouco mais do que tentar se defender e anexar os frágeis Estados Católicos na Grécia. Isto certamente facilitou a Conquista Otomana, que sem ter um baluarte poderoso para proteger a Europa Oriental, abocanhou a Península Balcânica com extrema facilidade, avançando para as portas da Hungria e, posteriormente, à própria capital do Ducado da Áustria. 

Quanto aos comentários finais sobre a Primeira Cruzada, ainda seria pertinente mencionar que a mesma foi muitíssimo facilitada pela fragmentação local dos Estados Muçulmanos: os príncipes tribais do Império Turco preferiam ser coniventes com a invasão dos francos para aumentar sua autonomia do que cooperar com as forças centrais do sultão; os Fatímidas se aliaram com os cruzados para que os mesmos prejudicassem os sunitas, seus inimigos políticos e rivais de Fé. No entanto, essa aliança foi desmanchada quando os cruzados tiveram que invadir domínio Fatímida para anexar Jerusalém e territórios adjacentes na Síria-Palestina. Os próprios muçulmanos nunca enxergaram a Primeira Cruzada como uma expedição religiosa, eles a viam como mais um tentativa típica de anexar a região, como generais bizantinos como Nicéforo Focas e Ioannes Tzimisces fizeram na Dinastia Macedônica. Estabelecidos na região, eles tornaram-se apenas mais um participante na complexa politicagem local, fato observado nas vésperas da Segunda Cruzada, quando o Principado da Antioquia e o Condado de Edessa participaram ativamente de uma disputa dinástica local apoiando lados opostos da mesma guerra, o que significava dizer que eles chegaram a lutar um contra o outro. 

Para resumo da ópera: não, as Cruzadas não salvaram a Europa, ainda mais quando só uma das nove atingiu sucesso. Muitas delas costumavam resultar em falência econômica dos Estados participantes, como foi o caso da Inglaterra na Terceira Cruzada e da França na Sétima. Por mais que elas tivessem promovido algum senso união na Cristandade Ocidental, essa “união” era extremamente frágil por si só, já que Estados Cristãos, católicos e protestantes, se alinhariam futuramente com otomanos para favorecerem os seus próprios interesses.

O que preservou a Europa, então? Eventos como a Batalha de Tours-Poitiers, a Reconquista (que em 95% dos casos não teve apoio de nenhuma Cruzada), os esforços da Hungria com o Exército Negro na segunda metade do século XV e, definitivamente, um Estado Bizantino poderoso o suficiente para sobreviver como baluarte da Cristandade por mais de mil anos no fronte oriental.