Texto de: Guilherme Freitas

Dihya, ou al-Kahina como ficou conhecida dentre os árabes, foi uma rainha guerreira que levantou resistência contra os Omíadas no Norte da África.

Após a unificação dos povos da Península Arábica sob a bandeira do Islã e o governo dos califas de Medina, os árabes embarcaram em uma série de conquistas espetaculares durante os séculos VII e VIII. Por volta do século VIII, criaram um império que compreendia os territórios entre a Península Ibérica no Ocidente até o Norte da Índia e a Ásia Central no Oriente, sendo uma das expansões mais rápidas e expressivas de todos os tempos.

A resistência contra as conquistas árabes variava de local para local, alguns governantes resistiam mais e outros menos, inclusive alguns chegaram a literalmente chamar os árabes para seus territórios, como foi o caso da Península Ibérica, e que viria a se repetir na Sicília no século IX.1

Dentre os locais que resistiram mais às incursões árabes temos o exemplo de partes do Norte da África, quando os conquistadores encontraram as tribos Berberes no Magrebe. No caso dos berberes, se tratava de um povo com uma longa tradição de independência, ainda vivendo sob a ótica e o sistema tribal.

Os berberes eram divididos em várias tribos que normalmente se encontravam em conflitos uns com os outros. Entretanto, eram capazes de se unir em confederações para expulsar os estrangeiros de seus territórios, como fizeram com os vândalos. Mas, devido ao caráter rival que mantinham entre si, esses laços contra os invasores costumavam durar pouco, nunca resistindo ao tempo a ponto de estabelecer um Estado Berbere mais unido e/ou centralizado. É nesse contexto que vemos al-Kahina, uma rainha berbere que se recusaria a se submeter às forças estrangeiras.

Os muçulmanos adentraram o Norte da África através do Egito. Já em 639, apenas 7 anos depois da morte do Profeta, o general Amr ibn al-As liderava um exército de cerca de 4 mil homens da região sul do Hijaz, iniciando a conquista do território egípcio. Logo recebeu reforços de mais 12 mil homens, ainda um valor pequeno, levando em conta o tamanho territorial do Egito e sua população. Em 640 derrotaram o exército Bizantino, em 641 conseguiram vencer as fortificações no atual Cairo e em 642 conquistaram Alexandria. Em resumo, demorou pouco tempo para que chegassem até o território ocupado pelas tribos berberes. 

Algumas décadas depois, o califa omíada Abdul Malik (r.685-705) indicou Hassan ibn al-Numan como o novo governador e comandante do califado ao Norte da África. Para al-Numan fora dado as receitas do Egito em sua totalidade para que pudesse formar e equipar um grande exército capaz de conquistar permanentemente o norte africano. Em primeiro lugar, seus objetivos eram de eliminar permanentemente a presença bizantina na região. Após retomar Qayrawan, que havia sido reconquistada pelo rei berbere cristão Kusayla2, atacou e conquistou Cartago. Não somente, mas destruiu o porto da cidade para impedir que barcos bizantinos chegassem na cidade. Após ocupar Cartago, Hassan enviou alguns destacamentos militares para guerrear e expulsar o que restara dos Bizantinos na região.

Aqui podemos ver al-Kahina, que entrou em cena na resistência contra Hassan ibn al-Numan e seu exército após a morte de Kusayla e a expulsão dos Bizantinos do Norte da África. Hassan criou políticas administrativos que permitiram a incorporação e assimilação dos berberes, garantindo sua cooperação e lealdade. Tais políticas seriam utilizadas também pelo seu sucessor, Musa ibn Nusayr, que continuaria o que foi iniciado por Hassan, terminando por completo a conquista do Norte da África por volta de 710.

Entretanto, Hassan recebeu a surpreendente notícia de que em Quraywan uma mulher conhecida pelos árabes como al-Hakina havia reunido uma grande força de berberes e declarado que seria ela quem expulsaria os árabes da Ifriqiya.

Recriação artística de um confronto entre al-Kahina e as forças árabes, Desperta Ferro Ediciones nº 46. Ilustração de Marek Szyszko

Infelizmente nos resta poucas informações factuais a respeito de quem foi al-Hakina, sendo muitas das narrativas sobreviventes mais lendas do que fatos históricos, nos restando uma imagem distorcida de quem ela realmente foi. O próprio nome dessa rainha guerreira é frequentemente debatido, uma vez que al-Hakina é um nome que os árabes a atribuíram, que significa “a feiticeira”, “vidente”, ”sacerdotiza” ou “bruxa”. Alguns dizem que seu nome real era Dihya, inclusive o grande historiador árabe Ibn Khaldun menciona diversas variações desse nome, dentre eles: Dahya, Damya e Damiya, que segundo ele também eram variantes do nome de uma tribo berbere.3

Depois de Kusayla morrer e da expulsão dos bizantinos do norte africano, al-Hakina se tornou a líder da resistência contra a invasão árabe sob o comando de Hussan ibn al-Numan.

Assim como demais informações a seu respeito, a descendência de al-Kahina também é incerta. Algumas fontes afirmam que ela era filha de Tatit, ou de Matiya (Matias ou Mateus), filho de Tifan (Theophanus). Isso pode significar que ela era uma berbere, mas com sangue bizantino greco-romano no meio, explicando sua autoridade sobre alguns dos bizantinos em seu domínio além dos seus seguidores berberes. Além disso, conforme relatado, ela tinha dois filhos de pais diferentes: um dos pais era berbere e o outro era grego. Várias tribos berberes em seu território, inclusive sua própria (Djawara) haviam sido convertidos ao Judaísmo, porém através do reinado de al-Hakina eles se converteram ao Cristianismo, mas ainda praticando-o em algum grau com xamanismos norte-africanos.4

Segundo as crônicas árabes, al-Hakina era uma profetisa, praticando adivinhações, que entraria em êxtase ao receber algumas revelações proféticas, ao ponto de ficar muito violenta. É provável que na época que enfrentou as invasões árabes ela já fosse idosa e viúva, e conforme Ibn Khaldun, teria falecido aos 127 anos, muito embora isso provavelmente seja mais uma de suas lendas e um exagero por parte do viajante muçulmano.

Quando os árabes venceram sobre o rival de al-Kahina, o rei Kusayla, chegando até as fronteiras de seu domínio, ela decidiu que era hora de agir e empurrar os invasores de volta. Portanto, ela reuniu todas as tribos Zenetas e marchou em direção de Hassan. Antes de se encontrar em batalha com o comandante árabe, al-Kahina destruiu a cidade de Baghaya para impedir que a mesma caísse em domínio dos invasores, que certamente poderiam usa-la como base para seus ataques em um posto mais avançado.

Os dois exércitos se enfrentaram em 696, no rio Meskiana. Ocorre que Hassan sofreu uma terrível derrota nesse embate tendo de deixar vários corpos de seu exército no campo de batalha, assim como soldados feridos e também 80 prisioneiros. A derrota foi tão alarmante que alguns cronistas chamaram a batalha de “rio maldito” (wadi al-balaa). Mais tarde Hassan seria derrotado em Gabès, sendo os árabes expulsos da Ifriqiya.

Como o objetivo de al-Kahina era simplesmente expulsar os árabes da região, ela retornou para seu território após a vitória em Gabès, mesmo tendo a oportunidade de avançar em direção à Qawrayan. Hassan então recuou, estabelecendo acampamento próximo de Barqa, no Leste de Trípoli, restabelecendo suas forças e esperando o momento certo para um contra-ataque.

Devido à ausência árabe agora na região, al-Kahina conseguiu expandir seus domínios, mesmo sem marchar para Qawrayan. Algumas fontes chegam a dizer que ela ocupou certa parte da Ifriqiya, porém não são unânimes na afirmação.5 Entretanto, ela tratava seus prisioneiros decentemente, e como de costume em algumas sociedades tribais, chegou a adotar um deles como filho, chamado Khalid ibn Yazid. Talvez tenha sido motivada por questões políticas, uma vez que a adoção de ibn Yazid poderia sinalizar uma vontade de estabelecer contato com os muçulmanos para impedi-los de novas incursões em seu território.

Entretanto, nada disso adiantou, uma vez que Hassan não iria desistir tão facilmente de conquistar o restante do Norte da África. Porém, na visão de al-Kahina os árabes estavam lá somente para pilhar, o que levou a rainha berbere a implementar a tática militar de “terra arrazada” em seus domínios6. Acontece que seus súditos não ficaram nada satisfeitos com suas propriedades sendo destruídas e suas terras completamente devastadas pela rainha, principalmente os mercadores, fazendeiros e citadinos que dependiam exclusivamente de suas terras e propriedades. Essa aplicação desastrosa da tática de terra arrazada levou vários súditos de al-Kahina a fugir, ou até mesmo pedir que Hassan intervisse.

Era o momento perfeito para a investida árabe. Hassan, um grande general, se mantinha informado de tudo o que ocorria nas terras de al-Kahina, sabendo dos desastres de suas políticas internas e do descontentamento por parte do povo. Nesse sentido, em 697-6997 marchou novamente para a Ifriqiya com seu exército, que por sinal havia recebido apoio do califa, contando também com vários opositores de al-Kahina que haviam se revoltado contra a rainha devido às suas políticas autofágicas. Até então era o maior exército muçulmano a marchar pela Ifriqiya8, e assim como outros locais e períodos da história islâmica, conforme o general muçulmano marchava na cidade, a população local o agraciava como sendo seu libertador, abrindo os portões das cidades para suas tropas voluntariamente.

Mais uma vez os dois lados se enfrentaram em Gabès, dessa vez com al-Hakina enfraquecida e desmoralizada. Agora o ocorrido foi diferente, pois a rainha berbere sofreu uma grande derrota, ao ponto de mandar seus filhos desertar para o lado árabe, sendo mais tarde acolhidos pelos mesmos.

A última batalha entre as forças de Hassan e al-Hakina ocorreu em 701 em Tarfa9, quando a rainha tentava fugir para sua fortaleza nas montanhas Aurés, sendo interceptada pelos exércitos árabes. Nessa ocasião seu exército foi completamente destruído, sendo ela morta também.

Após essa terrível derrota, os berberes da região montanhosa de Aurés pediram para os árabes por uma anistia, o que lhes foi garantido. Cerca de 12 mil berberes da região se juntaram ao exército árabe, se convertendo também para a religião islâmica, inclusive ficando sob o comando dos filhos de al-Kahina, que iriam ter um papel importante na conquista do restante do Norte da África, inclusive na conquista da Península Ibérica em 711.

Notas:

[1] Ver no caso da Sicília: Metcalfe, Alex (2009), The Muslims of Medieval Italy, Edinburgh: Edinburgh University Press;

[2] Kusayla havia se juntado com o exército Bizantino após fugir de seu cativeiro. Assim, suplantando o número dos exércitos árabes com sua aliança berbere-bizantina, destruiu as forças de Uqba ibn Nafi, um dos mais proeminentes comandantes durante as fases iniciais de conquista no Norte da África. Uqba foi morto juntamente com seu exército;

[3] Para os escritos de ibn Khaldun, ver: Kitāb al-Ibar (Livro de Conselhos) do mesmo autor;

[4] Mais informações em: ALI, Adam.The Berber Queen who defied the Caliphate: Al-Kahina and the Islamic Conquest of North Africa;

[5] Ibid.;

[6] A tática militar de terra queimada consiste em destruir qualquer coisa que possa ser proveitosa ao inimigo enquanto o mesmo avança ou recua em suas incursões. Exemplo: destruir colheitas para que o inimigo não possa ter fontes de comida em um cerco;

[7] As datas nas fontes são divergentes;

[8] Só por parte dos dissidentes berberes havia cerca de 24 mil homens;

[9] Ou Tarbaka, dependendo da fonte.

Bibliografia:

ALI, Adam.The Berber Queen who defied the Caliphate: Al-Kahina and the Islamic Conquest of North Africa. Medievalists Net;

KHALDUN, Ibn. Kitāb al-Ibar. Usually cited as: Histoire des Berbères et des dynasties musulmanes de l’Afrique septentrionale. French trans. by William McGuckin de Slane, Paul Geuthner, Paris, 1978;

METCALFE, Alex. The Muslims of Medieval Italy. Edinburgh: Edinburgh University Press. 2009;

HANNOUN, Abdelmajid. Post-Colonial Memories: The Legend of the Dihyā, a North African Heroine. 2001.