Texto de: Michael Hamilton Morgan

Provavelmente não há ninguém que ilustre melhor os desentendimentos, às vezes trágicos, na relação de 1400 anos entre o Ocidente e o mundo árabe-muçulmano do que Ibn al-Nafis, o primeiro que temos registrado como o descobridor da circulação do sangue do coração para os pulmões em seu caminho de ida e de volta, trocando o dióxido de carbono residual pelo oxigênio vital.

Os mal-entendidos que ele personifica são muitos. Por exemplo, ele é um “propagandista” para aqueles que acreditam que o mundo árabe foi a semente para as descobertas e invenções europeias por séculos, e depois [os árabes] foram desacreditados quando a Europa cresceu para dominar o globo e reescrever a narrativa da descoberta científica. Ele é também uma negativa poderosa da tal “teoria da geladeira” dos orientalistas – refutada por George Saliba da Universidade de Columbia: isto é, que a ciência árabe-muçulmana era muito restringida pela religião para realmente inventar qualquer coisa, sendo útil tão somente para preservar o pensamento greco-romano, levando as traduções dessas obras para Europa, onde uma sociedade mais secular e livre usou para dar origem o Renascimento.

Al-Nafis refuta a crença ocidental de que o a ascensão do conservadorismo do Islã sunita do século XIII foi a causa do fim da invenção científica e médica naquela época nas sociedades islâmicas. E, finalmente, ele lembra ao mundo moderno a maneira de como as traduções medievais dos manuscritos árabes, agora em mãos europeias, levaram as ideias do Islã em sua Idade de Ouro para a Idade das Trevas da Europa medieval.

Visto de outra maneira, como as descobertas de al-Nafis ficaram na Europa por 400 anos, mas ocultas em um arquivo alemão até 1936 d.C., de modo que ele não recebeu crédito do Ocidente por sua descoberta, que foi na verdade para William Harvey em 1628? Por que al-Nafis foi vítima de mais outro esquecimento da descoberta de um Árabe por 4 séculos antes da “redescoberta” europeia, comparável à associação de palavras de Ibn Sina 800 anos antes da terapia da conversa de Sigmund Freud, ou a teoria de seleção natural de al-Jahiz 1000 anos antes de Darwin, ou o trabalho esquecido de Ibn al-Haytham no início do século XI sobre óptica, permitindo a descoberta de Copérnico da translação da Terra no século XVII?

Agora, para os fatos. Al-Nafis, conhecido durante a maior parte de sua vida como Ala al-Din Abu al-Hassan Ali Ibn Abi-Hazm al-Qarshi al-Dimashqi, nasceu em Damasco em 1213 e realizou seus estudos médicos no Bimaristan al-Noori – mesmo enquanto o mundo estava traumatizado pelo avanço implacável das tropas mongóis de Genghis Khan. Este holocausto militar de um século deslocou e matou milhões de pessoas, destruiu a cidade real de Bagdá e desestabilizou outras cidades ricas e antigas na Pérsia, Afeganistão e em outras partes da Eurásia.

Mas a resistência árabe finalmente tomou conta da Síria e do Egito, e assim Damasco e Cairo foram poupados dos horrores cometidos pelos mongóis, permitindo que essas duas cidades e seus intelectuais que haviam se refugiado do leste alcançassem patamares ainda maiores de realizações, assumindo o papel da agora destruída Bagdá.

Em 1236, aos 23 anos, al-Nafis acompanhou seu colega de estudos, Usaibi’a (um futuro historiador e biógrafo), e mudou-se para o Cairo, onde primeiramente trabalhou no Hospital Al-Nassri e, posteriormente, no Hospital Al-Mansouri. Ele até se tornou o médico-chefe de Mansouri. O Hospital Mansouri era um dos mais avançados do mundo, em uma cidade que atingia seu verdadeiro apogeu de poder, riqueza e influência.

Al-Nafis talvez tenha sido o médico particular do sultão mameluco al-Zahir Baybars al-Bunduqdari. Existem muitas perguntas sem respostas sobre al-Nafis. A mais antiga gira em torno de seu amigo sírio, Usaibi’a, que se tornaria um historiador respeitado e que escreveu extensivamente sobre sua época e os diversos expoentes médicos e pensadores que conheceu. Mas Usaibi’a nunca menciona al-Nafis. Os estudiosos de Beirute, Haddad e Khairallah, especularam em 1936 que houve algum desentendimento entre os dois em Al Mansouri, ou que Usaibi’a estava com inveja da genialidade de seu colega e assim o apagou da história.

Como o igualmente misterioso, gênio e imigrante, Ibn al-Haytham – pai da ótica moderna, que adotou o Cairo como seu novo lar depois de deixar o Iraque – Ibn al-Nafis era um muçulmano ortodoxo. Como seus colegas polímatas muçulmanos, al-Nafis escreveu sobre várias disciplinas, incluindo astronomia, teologia, lei islâmica e até mesmo sociologia. Ele até escreveu o que é talvez o primeiro romance de ficção científica da língua árabe, Theologus Autodidactus, sobre uma criança que cresceu em uma ilha deserta e que mais tarde entra em contato com o resto do mundo.

Para entender o homem e sua obra, deve-se ter uma compreensão bastante clara do contexto religioso em que ele atuou e também de como suas próprias crenças religiosas moldaram seu trabalho em meados e fim do século XIII. As visões mais comuns no Ocidente retratam aquela época como a de um crescente conservadorismo no Islã sunita, explicado em parte pela reação de al-Ghazali contra o pensamento helenístico; as Cruzadas; o fim dos Fatímidas e a invasão mongol. Todas essas coisas, aos olhos de historiadores ocidentais como Bernard Lewis, foram a sentença de morte da Idade de Ouro do Islã e o fim da invenção científica árabe-muçulmana. Que alguém como al-Nafis pudesse fazer seu trabalho naquela época parece a esses estudiosos um mero acaso ou uma anomalia.

Colocando de outra maneira, muito foi realizado nesse período de 1000 anos no que diz respeito ao suposto choque fatal das escolas da razão e da revelação no Islã e como isso influenciou a ascensão e queda da ciência islâmica e das descobertas feitas pelos muçulmanos no período de 800 a 1700 EC.

Não há dúvida de que houve uma diferença de opinião sobre como se deve interpretar o texto religioso. Mas não havia uma demarcação rígida, especialmente para pensadores devotos e brilhantes como Ibn al-Haytham, al-Kindi, al-Tusi e, claro, al-Nafis.

Havia um espectro, do mais literalista ao mais interpretativo e sofisticado. Mas pensadores destemidamente criativos como al-Nafis e Ibn al-Haytham, embora fossem devotos, eram livres-pensadores. Eles não viam conflito entre ser devoto religiosamente e ser um cientista, não imiscuindo teorias científicas ou médicas em assuntos de fé.

De acordo com Nahyan Fancy em sua dissertação de doutorado em Notre Dame, Al-Nafis estava mais ou menos no meio dos polos entre razão versus revelação, e não teve problemas com isso. O que ele não fez foi permitir que o texto sagrado tomado literalmente o afastasse da verdade científica. Assim como Ibn al-Haytham, ele acreditava que o papel de um cientista era descobrir a verdade da criação de Deus em todas as suas formas por exame direto, não tomando fatos científicos ou médicos cegamente como verdade ou com base em algum texto sagrado.

Mas ele seguiu devotamente os mandamentos e práticas religiosas. De acordo com Haddad e Khairallah, em seu leito de morte, al-Nafis recusou beber vinho para aliviar sua dor, sendo mencionado que ele expressou a crença comum de que a invasão mongol foi enviada por Allah para punir os muçulmanos por adotarem os modos degenerados da Pérsia e outras civilizações mais antigas.

Quando tinha 29 anos, no ano 1242 d.C., al-Nafis publicou seu Comentário sobre a Anatomia do Cânon de Avicena, contendo seus pensamentos revolucionários sobre a circulação sanguínea entre o coração e o pulmão. Mas, para realizar sua descoberta, al-Nafis teve que destronar a teoria da circulação criada por Galeno, o venerável pai greco-romano da medicina do século II d.C., que permaneceu inconteste por quase 1000 anos. Até mesmo Ibn Sina aceitou os pontos de vista de Galeno sobre a circulação sanguínea sem questionar.

Ibn al-Nafis descreve pela primeira vez a circulação sanguínea entre o coração e o pulmão.

Os historiadores da ciência agora sabem que os gregos, gênios da geometria e da filosofia e semeadores da democracia representativa, muitas vezes fracassaram em certos fundamentos da ciência empírica. Eles estavam presos demais em suas teorias e hipóteses imaginativas, não sendo colocadas à prova pela verificação científica.

Um exemplo que bem ilustra isso é a explicação de Ptolomeu sobre luz e visão. Ptolomeu teorizou que a luz era um raio que emergia do globo ocular e iluminava o objeto sendo observado. Isso hoje soa estranho e absurdo, mas como a teoria da circulação de Galeno, permaneceu sem ser contestada por cerca de 1000 anos, até que Ibn al-Haytham provou que a luz vinha de uma fonte de luz, atingia o objeto e era refletida de volta para o olho que a viu.

Agora imagine o que al-Nafis teve de enfrentar para desfazer as opiniões de Galeno. O primeiro obstáculo foi uma reverência inquestionável de longa data por ele que a maioria dos médicos árabes-muçulmanos haviam adotado; uma exceção foi o médico de Bagdá do século IX, al-Razi, em sua obra “Dúvidas sobre Galeno”.

Um segundo obstáculo igualmente desafiador era uma aversão geral à dissecação e vivissecção no mundo do século XIII. Al-Nafis não é claro sobre ter praticado (ou não) a dissecação. Mas ele, ou alguém próximo a ele, deve ter realizado.

Al-Nafis estava pronto para colocar Galeno à prova. Ele sabia que Galeno e os médicos do último milênio que o seguiram ficaram intrigados em como o sangue tingido de azul, rico em dióxido de carbono, nas veias, de alguma forma ficava vermelho. Ninguém fazia ideia dos gases no sangue que causavam essas duas cores. Ibn Sina e outros atribuíram as mudanças de cor ao “espírito” e à “força vital”.

Para explicar o movimento do sangue do coração para os pulmões e quando volta ao coração, Galeno teorizou que havia uma membrana porosa entre os ventrículos esquerdo e direito que deixava o sangue passar e começar sua jornada novamente. Galeno levantou essa hipótese em algum momento no final do segundo século d.C. ou início do terceiro.

Não havia evidência desses poros, mas como Galeno não viu outra explicação, eles “tinham” que estar lá. Isso é muito semelhante ao equante do estudioso grego Claudius Ptolomeu do século II d.C., uma fórmula matemática muito complicada usada para explicar os movimentos desconcertantes de planetas e estrelas pelo céu em um universo geocêntrico. O grande erro aqui foi a crença equivocada de Ptolomeu de que a Terra estava no centro do sistema solar. Galeno era havia cometido a mesma falha grega: um apego não-científico a sua hipótese não comprovada sobre o sangue.

Como o estudioso de medicina John B. West aponta em um artigo de 2008 no Journal of Applied Physiology, o Comentário de al-Nafis fez três revisões importantes em Galeno (usando uma tradução de Max Meyerhof):

1- “… mas não há passagem entre essas duas cavidades [ventrículos direito e esquerdo]; pois a substância do coração é sólida nesta região e não tem nem uma passagem visível, como algumas pessoas pensavam, nem passagem invisível que pudesse permitir a transmissão de sangue, como alegado por Galeno. Os poros do coração ali estão fechados e sua substância é espessa”.

2- “… o sangue depois de refinado nesta cavidade [ventrículo direito], deve ser transmitido para a cavidade esquerda onde o espírito [vital] é gerado… Pois a penetração do sangue no ventrículo esquerdo é do pulmão, depois de ser aquecido dentro do ventrículo direito e subir a partir dele, como dissemos antes”.

3- A descoberta final de Al Nafis foi seu palpite de que havia um pequeno fluxo de sangue entre a veia pulmonar e a artéria. Ele aparentemente não provou isso categoricamente, deixando para o italiano Marcello Malpighi provar quatro séculos depois, na época de Harvey: “E pela mesma razão existem passagens perceptíveis (ou poros, manafidh) entre os dois [vasos sanguíneos, ou seja, artéria pulmonar e veia pulmonar]”.

Al-Nafis viveu até 1288. Demorou mais três séculos para a Europa chegar ao que al-Nafis havia descoberto sobre a circulação sanguínea entre coração e pulmão, mas quando isso aconteceu, colocou suas descobertas a patamares ainda mais elevados. Al-Nafis e suas descobertas não foram reconhecidas pela ciência ocidental moderna até 1936.

Michael Servet (ou Miguel Servet, 1511-1553) foi o primeiro europeu a expressar teorias semelhantes. Este livre-pensador de muita coragem e por vezes impopular da Espanha, se viu no meio das acaloradas brigas religiosas entre protestantes e católicos na Itália, França e Suíça, e foi queimado na fogueira com todos os seus escritos em Genebra. Seus maiores crimes: rejeitou a doutrina cristã da Trindade e o rito do batismo, conseguindo ofender a Igreja Católica e o reformador João Calvino. Existem hipóteses de que ele possa ter lido o Alcorão. Não há prova de que tenha lido o Comentário de Ibn al-Nafis em qualquer idioma. Como um dissecador e pesquisador médico ousado e de pensamento livre, é possível que ele tenha descoberto a circulação sanguínea correta e inteiramente por conta própria.

Os escritos de Servet podem ter influenciado alguém como Realdo Colombo, bem como o aluno de Servet, Juan Valverde (cerca de 1525 a 1587) e possivelmente o belga Andreas Vesalius. Mas teria Servet influenciado William Harvey?

Realdo Colombo nasceu em Cremona, Itália, filho de um farmacêutico e viveu de 1516 a 1559. Ele estudou medicina e também defendeu teorias idênticas a al-Nafis e Servet. Ele poderia ter conhecido a descoberta de al-Nafis de manuscritos na Itália ou em outro lugar – talvez uma tradução medieval errante e agora perdida de Gerard de Cremona saindo da Espanha e de volta para sua cidade natal, Cremona? Não existe nenhuma prova documental.

Por último, William Harvey, da Inglaterra, também estudou na Universidade de Pádua de 1599 a 1602 e se formou em medicina. Ele então voltou para o norte e se tornou o médico do rei. Entre outros projetos, ele chegou a ser enviado para investigar mulheres acusadas de bruxaria, mas tornou-se completamente cético quanto à existência de bruxas.

Na atmosfera médica mais liberal de seu tempo, ele foi capaz de realizar dissecações importantes. Em grande detalhe clínico, ele trouxe as teorias de Ibn al-Nafis ao ponto mais sofisticado. A história médica do Ocidente credita-lhe a descoberta da circulação correta do sangue do coração para o pulmão, que ele publicou formalmente com grande aclamação em Frankfurt em 1628 CE. Agora a história está chegando ao fim e a jornada de 400 anos das ideias de Ibn al-Nafis a William Harvey está completa.

Então: Harvey tirou suas ideias de al-Nafis? A resposta final está enterrada no tempo. O melhor que se pode provar é que essas ideias árabes circulavam para o norte por vários canais e também surgiam de forma independente, e que a Itália era um ponto-chave para a inovação médica europeia; e todos os personagens tinham residência ou vínculos com Cremona ou Pádua ou outro lugar da Itália.

A afirmação mais cética sobre se Harvey estava claramente se inspirando em al-Nafis vem do estudioso da medicina John B. West em um artigo de 2008 no Journal of Applied Physiology. Ele vê uma possível ligação entre Ibn al-Nafis e Michael Servet – mas ele lança dúvidas sobre se Servet, por sua vez, influenciou Harvey, porque Servet e a maioria de seus escritos foram queimados com ele na fogueira por suas ideias e Harvey provavelmente nunca chegou a ver seus trabalhos.

Mas a evidência circunstancial de uma ligação direta é certamente intrigante: vários tradutores e pensadores trazendo algumas das ideias de al-Nafis para a Itália e a Espanha renascentistas.

Até que mais manuscritos sejam descobertos, o brilhante al-Nafis permanecerá uma figura misteriosa. Por que seu amigo historiador Usaibi’a foi para o exílio e nunca o mencionou? E por que não há registro de sua descoberta mais importante – a correta circulação do sangue – vindo explicitamente para a Europa, quando outros de seus escritos menores foram de fato para o norte e para o oeste?

A resposta ainda aguarda os pesquisadores nos arquivos empoeirados do Cairo, Damasco, Toledo, Belluno, Pádua ou mesmo da Alemanha. Até lá, o mundo deve se contentar em maravilhar-se com mais um gênio visionário árabe-muçulmano, séculos à frente de seu tempo, que ousou ver o futuro de um passado mal compreendido agora voltando para o esquecimento.

BIBILIOGRAFIA

-Haddad SI, Khairallah AA. A forgotten chapter in the history of the circulation of the blood. Ann Surg 1936; 104:1-8.

-Fancy NAG. Pulmonary transit and bodily resurrection: the interaction of medicine, philosophy and religion in the works of Ibn Al-Nafis (D. 1288). PhD Thesis. University of Notre Dame, 2006.

-West JB. Ibn al-Nafis, the pulmonary circulation, and the Islamic Golden Age. J Appl Physiol 2008; 105:1877-1880.

-Morgan MH. Lost History: the Enduring Legacy of Muslim Scientists, Thinkers and Artists. Washington DC: National Geographic Books/Random House 2007.

Fonte: Aspetar: Sports Medicine Journal